Arcas de Babel: Cide Piquet traduz Blas de Otero

Arcas de Babel: Cide Piquet traduz Blas de Otero
Cide Piquet e Blas de Otero Muñoz (Fotos: DIvulgação)

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Pra esta oitava Arca, o poeta Cide Piquet, que também é editor da Editora 34, traz uma série de poemas inéditos do espanhol Blas de Otero, que ele também apresenta.

Cide Piquet organizou e traduziu Só para maiores de cem anos: antologia (anti)poética, de Nicanor Parra (com Joana Barossi, Editora 34, 2018), Esta vida: poemas escolhidos, de Raymond Carver (Editora 34, 2017), Histórias para brincar, de Gianni Rodari (Editora 34, 2007), 20 haicais de Issa (plaquete eletrônica, Editora Igarapé, 2020), entre outros. De sua autoria, publicou malditos sapatos (Hedra, 2013) e Poemas e traduções (Quelônio, 2018).

***

Blas de Otero Muñoz foi um dos principais representantes da poesia social e da poesia intimista dos anos 1950 na Espanha. Nasceu em Bilbao, no País Basco, em 15 de março de 1916, terceiro filho de um casamento da rica burguesia local. A crise econômica no primeiro pós-guerra abala a fortuna do pai do poeta, que se muda com toda a família para Madri em 1927. Aos 15 anos, Blas perde seu irmão mais velho e, em seguida, o pai, assumindo o cuidado da mãe e das duas irmãs. Seu projeto de estudar Letras é relegado por uma carreira no Direito, desvio vocacional que estará associado a frequentes períodos de depressão. Participa da Guerra Civil Espanhola, primeiro num batalhão basco e depois, com a queda de Bilbao, é preso e mais tarde enviado pelo exército franquista à frente do Levante. Finda a guerra, volta a se ocupar do sustento da família, trabalhando como advogado e mantendo-se afastado da literatura por vários anos.

Influenciado pelas leituras de Juan Ramón Jimenez, Antonio Machado, Joan Maragall e, mais tarde, Rabindranath Tagore, Miguel Hernández e César Vallejo, entre outros, além dos filósofos existencialistas e dos grandes autores do século 19 e primeira metade do 20 (ingleses e franceses principalmente); e movido por um forte anseio de paz (tendo vivido as duas grandes guerras e a Guerra Civil Espanhola), sua obra será marcada pela luta por justiça social e pelo ideal de comunhão entre os homens. Os livros que publica no começo dos anos 1950 – Anjo ferozmente humano (1950) e Chamada de consciência (1951) – lhe rendem prêmios e grande reconhecimento.

Em 1952 vai a Paris em busca do ar livre que faltava em seu país, então sob a ditadura militar franquista, e vive um ano entre exilados espanhóis. Na volta, viaja pelo interior da Espanha, se integra a círculos operários e rurais, trabalha com mineiros, percorre os povoados do interior de Castela e Leão, vivendo do trabalho. Conclui o livro Peço a paz e a palavra (1955), iniciado em Paris, que causa grande comoção na poesia espanhola por sua valente denúncia, apoiada numa esplêndida linguagem poética atravessada pela tradição do Cancioneiro e do Romanceiro espanhóis, e calcada na experiência e na expressão populares. A partir de então, devido à censura na Espanha, se vê forçado a publicar no exterior. Seu livro En castellano (1959) é lançado em Paris (com um título francês, Parler claire), onde se autoexila e se filia ao Partido Comunista da Espanha.

Viaja nos anos seguintes à União Soviética, China e Cuba, a fim de conhecer a realidade dos países socialistas – ele que lutava com palavras por um mundo mais justo e feliz para “a imensa maioria”, a qual se erige como protagonista de seus poemas. Vive por três anos em Havana, onde se casa com Yolanda Pina e recebe o Prêmio Casa de Las Américas. Em 1967 se divorcia e retorna a Madri, onde reata os laços com Sabina de la Cruz, namorada dos tempos de juventude em Bilbao, com quem permanecerá até sua morte, a 29 de junho de 1979, em sua residência em Madri, por embolia pulmonar.

Para esta publicação, selecionei alguns de seus principais poemas, que venho traduzindo nos últimos anos e que, a meu ver, ecoam fortemente entre aqueles que, a despeito de tudo, ainda acreditam e lutam por um mundo mais justo e humano. – Cide Piquet

 

Ar livre

 

Se algo me agrada, é viver.
Ver o meu corpo na rua,
Falar contigo como um camarada,
Olhar as bancas e vitrines
E, sobretudo, sorrir de longe
Para as árvores…

Também me agradam os caminhões cinza
E muito, muito mais os elefantes.
Beijar teus peitos,
Me jogar no teu colo e te despentear,
Beber água do mar como cerveja
Amarga, espumante.

Tudo o que seja sair
De casa, espirrar de tarde em tarde,
Cuspir contra o céu da tundra
E contra as medalhas dos meus pares,
Sair
Deste cárcere espaçoso e triste,
Aligeirar os rios e os sóis,
Sair, sair para o ar livre, para o ar.

 

Juntos

 

Esta terra, este tempo, esta espantosa podridão
que me acompanha desde que nasci
(porque sou filho de uma pátria triste
e bela como um sonho de pedra e sol; de um tempo
amargo como a borra
da história):
esta terra, este tempo que tiram de meus pés
até arrancar os ossos à minha última esperança,
ah, não poderão, não poderão jamais me vencer,
porque minha mão se estende e se agarra
a outra mão humana e a outra mão,
que me encadeiam, mãe imensa, a ti.

 

Por caridade

 

Laura,
pomba amedrontada,
filha do campo, que vida é esta,
dizes, com o filho nas costas
desde os vinte anos,
três anos na maternidade
esfregando o chão,
por caridade
(por caridade te deixam esfregar o chão),
agora na rua
e entre meus braços,
Laura,
te amo diretamente,
não
por caridade,
estás cansada
de tudo,
de passar frio,
do teu pequeno acordeom
entre as pernas,
do desamor,
mas não esqueças
(nunca),
eu te amo diretamente,
e não
por caridade.

 

No princípio

 

Se já perdi a vida, o tempo, tudo
o que atirei, como um anel, à água
se já perdi a voz para a tristeza,
me restam as palavras.

Se já sofri de sede, fome, tudo
o que era meu e resultou ser nada,
se já seguei as sombras em silêncio,
me restam as palavras.

Se abri os lábios para ver o rosto
puro e aterrador da minha pátria,
se abri os lábios quase até arrancá-los,
me restam as palavras.

 

Digo viver

 

Porque viver se fez vermelho vivo.
(E a cor do sangue, ó Deus, é encarnada.)
Digo viver, viver como se nada
houvesse de ficar de todo escrito.

Porque escrever é vento fugitivo,
e publicar, coluna encurralada.
Digo viver, viver à força, airada-
mente morrer, citar ao rés do estribo.

Retorno à vida com a morte ao ombro,
abominando o que escrevi: escombro
daquele ser que fui quando calava.

Agora volto a mim, à minha obra
mais imortal: aquela festa brava
do viver e morrer. O resto sobra.

***

Aire libre

 

Si algo me gusta, es vivir.
Ver mi cuerpo en la calle,
Hablar contigo como un camarada,
Mirar escaparates
Y, sobre todo, sonreír de lejos
A los árboles…

También me gustan los camiones grises
Y muchísimo más los elefantes.
Besar tus pechos,
Echarme en tu regazo y despeinarte,
Tragar agua de mar como cerveza
Amarga, espumeante.

Todo lo que sea salir
De casa, estornudar de tarde en tarde,
Escupir contra el cielo de los tundras
Y las medallas de los similares,
Salir
De esta espaciosa y triste cárcel,
Aligerar los ríos y los soles,
Salir, salir al aire libre, al aire.

 

Juntos

 

Esta tierra, este tiempo, esta espantosa podredumbre
que me acompañan desde que nací
(porque soy hijo de una patria triste
y hermosa como un sueño de piedra y sol; de un tiempo
amargo como el poso
de la historia):
esta tierra, este tiempo que tiran de mis pies
hasta arrancar los huesos a mi esperanza última,
¡ah, no podrán, jamás podrán vencerme,
porque mi mano se me va y se agarra
a otra mano de hombre y a otra mano
que me encadenan, madre inmensa, a ti!

 

Por caridad

 

Laura,
paloma amedrentada,
hija del campo, qué existencia ésta,
dices, con el hijo a cuestas
desde tus veinte años,
tres años en la Maternidad
fregando los suelos,
por caridad
(por caridad, te dejan fregar el suelo),
ahora en la calle
y entre mis brazos,
Laura,
te amo directamente,
no
por caridad,
estás cansada
de todo,
de sufrir frío,
de tu pequeño acordeón
entre las piernas,
del desamor,
pero no olvides
(nunca),
yo te amo directamente,
y no
por caridad.

 

En el principio

 

Si he perdido la vida, el tiempo, todo
lo que tiré, como un anillo, al agua,
si he perdido la voz en la maleza,
me queda la palabra.

Si he sufrido la sed, el hambre,
todo lo que era mío y resultó ser nada,
si he segado las sombras en silencio,
me queda la palabra.

Si abrí los labios para ver el rostro
puro y terrible de mi patria,
si abrí los labios hasta desgarrármelos,
me queda la palabra.

 

Digo vivir

 

Porque vivir se ha puesto al rojo vivo.
(Siempre la sangre, oh Dios, fue colorada.)
Digo vivir, vivir como si nada
hubiese de quedar de lo que escribo.

Porque escribir es viento fugitivo,
y publicar, columna arrinconada.
Digo vivir, vivir a pulso, airada-
mente morir, citar desde el estribo.

Vuelvo a la vida con mi muerte al hombro,
abominando cuanto he escrito: escombro
del hombre aquel que fui cuando callaba.

Ahora vuelvo a mi ser, torno a mi obra
más inmortal: aquella fiesta brava
del vivir y el morir. Lo demás sobra.


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