Arcas de Babel: Andrea Zanzotto e Patricia Peterle
A poeta Patricia Peterle e o poeta Andrea Zanzotto (Foto: Divulgação)
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras.
Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Hoje a poeta, professora e tradutora Patricia Peterle traz do italiano uma série ainda inédita de poemas de Andrea Zanzotto. Ela também apresenta a poesia deste importante poeta italiano que será em breve publicado em livro pela Editora 7Letras.
Patricia Peterle é professora de Literatura Italiana na UFSC. Doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ, tem Pós-doutorado em História pela UNESP e em Poesia Italiana pela Universidade de Gênova. Traduziu textos de Giovanni Pascoli, Giorgio Caproni, Enrico Testa, Eugenio De Signoribus, Giorgio Agamben, Roberto Esposito, Franco Rella. Também atua na Pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Italianas da USP e é pesquisadora do CNPq. Escreveu e organizou diversos ensaios publicados no Brasil e na Itália. Publicou poemas em revistas. Alguns de seus livros são no limite da palavra: percursos pela poesia italiana (7Letras, 2015) e A palavra esgarçada: poesia e pensamento em Giorgio Caproni (Rafael Copetti Editor, 2018).
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Andrea Zanzotto
Li pela primeira vez os versos de Andrea Zanzotto (Pieve di Soligo 1921- Conegliano 2011) nos primeiros anos da universidade. Fui fisgada por seus versos, mesmo tendo a sensação de que havia entendido sem ter entendido, e essa sensação de incompletude me fazia voltar aos poemas que permaneciam “suspensos”. É preciso confessar que ainda hoje essa sensação persiste.
Poeta italiano, de uma pequena cidade localizada na região do Veneto, Pieve di Soligo, bem próxima aos alpes, Andrea Zanzotto estabelece uma profunda e especial relação com a topografia e a natureza desse espaço. Seus poemas nomeiam coisas concretas na medida em que o sujeito se sente parte dessa geografia e é também operado pelos inúmeros detalhes que compõem a paisagem, que passa, assim, a dar o compasso da morfologia de seus versos. O encanto com os elementos dessa natureza conduz à radical impossibilidade da experiência, a fugir de qualquer sonho de apropriação do real. Tal paisagem (e seu imaginário) se registra ainda num outro nível, uma vez que ela também pertence à memória íntima e familiar que o acompanha desde a infância por meio da pintura do pai Giovanni, um antifascista que irá sofrer perseguições por seus posicionamentos.
Andrea Zanzotto em sua juventude teve um período de exílio na Suíça e lutou como partigiano durante o Resistência italiana, as marcas e os espectros desse período estão em seus versos. Atento observador, ele registra a profunda mudança ao longo dos anos que descarna tanto a paisagem como o modo de ser e de estar no mundo, consequências também do boom econômico e do frenético lema de um progresso a qualquer custo. O que Pasolini chamou mais tarde em seus Escritos corsários de “mutação antropológica”, Zanzotto já vinha a seu modo registrando em ensaios, poemas e textos em prosa. Lacerações da paisagem e lacerações do eu. Numa resposta ao crítico Alfonso Berardinelli, do final da década de 1990, ele fala que todo esse progresso desenfreado produziu um estado de cadaverização, que não deixou impune nem a língua.
Mas, CUIDADO! Aqui é preciso não cair em sorrateiras arapucas. Não há nesse poeta uma visão nostálgica ou um lamento pela perda de uma suposta língua. Os poetas da tradição italiana (Dante, Petrarca, Leopardi) ocupam a mesma página que os amados Paul Celan, Höldernlin, Rilke e que outras diferentes linguagens como a da publicidade e a científica, não descartando o uso de imagens, desenhos que desafiam a própria língua. Uma pluralidade e uma polifonia que não são excludentes, aliás, são necessárias para tratar do cotidiano, de uma esfera privada que chega até a econômica, ecológica.
A reflexão sobre a linguagem é um elemento-chave nessa poética, não somente pela terapia que ele seguiu devido a crises de depressão e insônia, mas pela leitura assídua de textos de Jacques Lacan, a quem ele dedica o texto “Na vizinhança de Lacan” (1979). A desconfiança no significado veiculado pelo significante é trazida para sua poesia, é o significante que forma a experiência do sujeito. Zanzotto em sua poesia vai traçando um percurso de aproximação cada vez maior com a língua infantil, pré-lógica – aquela que se subtrai ao controle –, e com o dialeto, como já apontaram Massimo Cacciari e Giorgio Agamben. Nessa busca em que está em jogo a possibilidade impossibilidade da palavra, ele chega à beira do não-pronunciável e do silêncio, principalmente nos livros a partir do final da década de 1960. A experiência com Fellini no filme Casanova que acaba contribuindo para a escrita de Filò (1976) é nesse sentido muito significativa. A ideia de canto é sim algo distante dessa escrita, mas há uma música sedutora que perpassa pela ruína, pelo destroço por aquilo que faz parte do residual, como se vê nos poemas abaixo. Na perspicaz visão do crítico Andrea Cortellessa, é no fundo do “negativo” que se encontram os restos mais coriáceos de vitalidade.
Os três poemas escolhidos para Arca de Babel são inéditos em português e fazem parte do volume Primeiras paisagens, a primeira tradução de Andrea Zanzotto no Brasil, que abarca seus três primeiros livros (Dietro il paesaggio 1951, Elegia e altri versi, Vocativo 1957), a ser publicado no segundo semestre de 2021 pela 7Letras e pela Rafael Copetti Editor. “Primavera de Santa Augusta” faz parte de Dietro il paesaggio [Por trás da paisagem], “Primeira pessoa” e “De um eterno exílio” de Vocativo.
Traduzir poesia é sem dúvida um desafio, um colocar-se à escuta do outro com os nossos ouvidos. Traduzir é sobretudo um desejo de compartilhar aquele objeto amado, de dar uma outra possível vida a ele.
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Primavera di Santa Augusta
Alla pioggia dei monti, dei castelli,
le bandiere cadono in sfacelo;
leggero come scheletro
m’avventuro in questo giorno
che selvoso si versa sul mondo.
Dietro cieche evasioni di ghiacci
e i filtri densi delle paludi,
nell’azzurro defunto delle valanghe
arrestate dal tuo silenzio
arrestate agl’inizi del mio terrore,
vacillano le scale dell’inverno;
per un’altra fronte della pioggia
primavera dolce
tuona sui monti
La tua vicenda avvampa
ancora, discendi in tumulto
dalle madide chiome dei paesi
coi torrenti del cielo e delle strade,
e snudi abissi sotto le mura
e sotto i treni
immoti davanti alla sera.
Le voci della vera
età chiara ti fanno
ma gli occhi restano spenti
su questa terra che di te s’estenua
e dal tuo volto vinto da morte
il mio conosco.
Primavera de Santa Augusta
Na chuva das montanhas, dos castelos,
as bandeiras cedem em esfacelo;
aéreo como esqueleto
me aventuro nesse dia
que selvoso se espalha no mundo.
Por trás de cegas evasões de gelos
e os filtros densos dos pântanos,
no azul defunto das avalanches
detidas pelo teu silêncio
detidas no início do meu terror,
vacilam as escadas do inverno;
por uma outra frente da chuva
primavera doce
troa nos montes
A tua história inda
inflama, desces em tumulto
das copas encharcadas das aldeias
com torrentes do céu e das ruas,
e despes abismos sob os muros
e sob os trens
imóveis diante da noite.
As vozes da real
idade alva te fazem
mas os olhos ficam sem luz
nessa terra que de ti se extenua
e por teu rosto vencido por morte
o meu conheço.
Prima persona
– Io – in tremiti continui, – io – disperso
e presente: mai giunge
l’ora tua,
mai suona il cielo del tuo vero nascere.
Ma tu scaturisci per lenti
boschi, per lucidi abissi,
per soli aperti come vive ventose,
tu sempre umiliato lambisci
indomito incrini
l’essere macilento
o erompente in ustioni.
Sul vetro
eternamente oscuro
sfugge pasqua dagli scossi capelli
primavera dimora e svanisce.
Tu ansito costretto e interrotto
ora, ora e sempre,
insaziabile e smorto raggiungermi.
Ora e sempre? Ma se di un bene
l’ombra, se di un’idea
solo mi tocchi, o vortice a cui corrono
i conati malcerti, il fioco
sospingermi del cuore. E là nel vetro
pasqua e maggio e il rissoso lume affondano
e l’infinito verde delle piogge.
Col motore sobbalza
la strada e il fango, cresce
l’orgasmo, io cresco io cado.
Di te vivrò fin che distratto ecceda
il tuo nume sul mio
già estinto significato,
fin che in altri terrori tu rigermini
in altre vanificazioni.
Primeira pessoa
– Eu – em frêmitos contínuos, – eu – disperso
e presente: nunca chega
a tua vez,
nunca toca o céu do teu real nascer.
Mas tu despontas por lentos
bosques, por lúcidos abismos,
por sóis abertos como vivas ventosas
tu sempre humilhado lambes
indomado rachas
o ser macilento
ou irrompente em ustões.
No vidro
eternamente escuro
foge páscoa dos mexidos cabelos
primavera demora e se esvai.
Tu arquejo obrigado e rompido
ora, ora e sempre,
insaciável e abatido alcançar-me.
Ora e sempre? Mas se de um bem
a sombra, se de uma ideia
só me tocar, oh vórtice ao qual vão
os impulsos incertos, o brando
empurrar do coração. E lá no vidro
páscoa e maio e a briguenta luz afundam
e o infinito verde das chuvas.
Com o motor balança
a rua e a lama, cresce
o orgasmo, eu cresço eu caio.
Viverei de ti até que absorto exceda
o teu nume no meu
já extinto significado,
até que em outros medos tu rebrotes
em outras desativações.
Da un eterno esilio
eternamente ritorno
e coi giorni mi volgo e mi confondo,
vado, da me sempre più lontano,
divelto per erbe prati e tempi
d’ottobre
e silenzi confidati agli orecchi
da stelle e monti.
De um eterno exílio
eternamente retorno
e com os dias me volto e me confundo,
vou, de mim sempre mais longe,
arrancado entre relvas prados e tempos
de outubro
e silêncios confiados no ouvido
por estrelas e montes.