Arcas de Babel: Adalberto Müller

Arcas de Babel: Adalberto Müller
Adalberto Müller traduz poetas de diversas nacionalidades (Foto: Manuel Müller Photography)

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Para comemorar esta vigésima edição, o poeta, ficcionista e professor Adalberto Müller escreve sobre tradução – experiência que o acompanha desde sua infância. O ensaio percorre uma série de poemas traduzidos de diversas línguas: do guarani falado por sua avó, do francês, do inglês, do russo e do alemão, língua paterna. Sua reflexão passa, assim, por Manuel Ortiz Guerrero, Ponge, Mallarmé, Williams Carlos Williams, Emily Dickinson, Marina Tsvetáieva e Paul Celan.

Adalberto Müller é professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFF. Foi professor/pesquisador visitante em Münster (WWU), Lyon2, Yale e na SUNY Buffalo. Publicou diversos livros de poesia, ensaio, tradução e narrativa, entre os quais: Transplantações: do jardim da minha mãe (Para.Texto, 2019); O traço do calígrafo: contos (Medusa, 2020) Poesia Completa de Emily Dickinson (Editora da UnB/Editora Unicamp, 2020, no prelo); Walter Benjamin: Teses sobre a história (com Márcio Seligmann-Silva, Ed. Alameda, 2020). Pequena filosofia do voo: contos (Patuá, em editoração) e  Francis Ponge: Partido das coisas (retradução, in progress).

 

***

 

TRADUÇÃO, FRONTEIRA, SUTURA

Adalberto Müller

 

Não sei falar de tradução sem recorrer à primeira pessoa. Não por solipsismo ou por soberba, mas porque a minha primeira pessoa já nasceu no ato de traduzir-se.

Explico.

Filho de uma paraguaia com um teuto-brasileiro, o processo de aquisição de linguagem se deu, para mim, sempre, como tradução. Além da situação bilíngue doméstica, comum a tanta gente neste mundo globalizado, nasci e fui criado numa fronteira seca: de um lado, Ponta Porã (Brasil), de outro, Pedro Juan Caballero (Paraguai). Pela manhã, estudava na escola Batista, à brasileira. À tarde, logo depois da siesta, ia para a casa da minha abuelita. Andando cem metros de casa, ficava a Avenida Internacional, e a linha imaginária que divide as cidades geminadas e dois países.  Do lado de lá, era uma cidade mais populosa, zona franca, cheia de lojas de produtos importados, muitos dos quais já falsificados (ou: traduzidos) no Paraguai, chamados de “primeira linha”.

Sempre me considerei um pouco de “primeira linha”, o que quer dizer não-original. Minha avó não gostava de falar português com os netos. Na família, do lado de lá, só se falava guarani, ou avañe’e. Para mim, hoje, o que ela dizia era poesia: ñe’e poty, a fala que floresce. No Paraguai todo se fala ainda o guarani, que é língua oficial como o castelhano. Cresci tentando entender essa língua misteriosa, que minha mãe usava para se comunicar com meus avós e com seus irmãos, mas que a nós era proibida. O que sei de guarani, aprendi na rua, e de tanto ouvir, sou capaz de reproduzir sem sotaque frases inteiras. Sobretudo das polkas e guaranias, que foram minhas músicas de infância. Como esta, favorita do meu pai, que traduzo tentando manter ao menos as rimas internas, tão importantes aqui:

Mombyry asyetégui aju ne rendápe romomorasêgui
ymaite guivéma reiko che py’ápe che esperansami…

 

De tão longe vem meu pleito, que soe em tua cabeça,
há tempos moras no meu peito, esperança minha…

 

Na verdade, trata-se de um poema de Manuel Ortiz Guerrero, o grande poeta romântico paraguaio, e mesmo sem entender guarani, dá para ver que há uma palavra reconhecível, esperansa (que tem um sufixo pós-posicional, -mi). O guarani usa palavras abstratas ou tecnológicas do espanhol, mas também tem palavras que expressam ao mesmo tempo o concreto e o abstrato, como “py’a”, que pode ser coração, as entranhas, as tripas, e também espírito, alma, consciência. Há duas formas de mescla entre o castelhano e o guarani: o jehe’a, que é o que vimos acima, e o yopará, em que o que a própria língua espanhola se contamina do guarani, ou flui com ele. O poeta Douglas Diegues, meu amigo de infância, transinventou o yopará para o que ele chama de “portuñol selvagem”. Ele tem todo o direito de fazê-lo, porque a fronteira é um pantanal de linguagens e ele tem instinto linguístico de poeta. O pantanal é um lugar de simbioses, de transformações, de traduções, e quem explorou melhor isso foi outro amigo e conterrâneo nosso, Manoel de Barros, que me ensinou a ser de bugre. Bougre, aliás, vem de búlgaro, diz o Littré.

Acima de tudo, o contato prematuro com essas línguas me fez entender cedo a questão da intraduzibilidade, que é a grande escola da tradução e da invenção. A rigor, como disse Benjamin, nada é traduzível, não apenas a poesia. Mas a poesia é – ao contrário do que disse o senhor Robert Frost – o lugar onde a tradução – a boa tradução – se torna experiência de invenção. E não me refiro apenas à poesia em versos. Traduzir alguns parágrafos de Virginia Woolf ou de Jean Giono (que são prosadores cujo estilo eu mais cobiço) pode ser tão difícil quanto traduzir um soneto de Mallarmé.            Digo isso por experiência própria.

Por isso mesmo, considero que todo tradutor é um pouco fronteiriço. Ele tem que cruzar a “Avenida Internacional” e logo depois a linha imaginária que separa as línguas e as culturas, levando o sentido das palavras de um lado para outro. Mas quando traduz a ñe’e porã, linguagem bela (dos xamãs e dos poetas), ele tem que levar, além do sentido, o “canto e a plumagem” das palavras, como dizia G. Rosa – diplomata-tradutor-xamã. Além da significação, ele tem que ter um ouvido afinado para os sons, mas sem descuidar da imagem, ou melhor, das imagens que as palavras desenham.

Creio que o texto “O engradado”, que traduzi com Carlos Loria nos anos 1990, e que agora retraduzo, dá uma ideia clara desse trabalho de contrabando fronteiriço:

 

O ENGRADADO

A meio caminho de engraçado e degradado a língua portuguesa tem engradado, simples caixote com claraboias destinado ao transporte dos frutos que, com a mínima sufocação, contraem fatalmente uma doença.

Agenciado de maneira que no termo de seu uso possa ser quebrado sem esforço, não serve duas vezes. Assim sendo, dura menos ainda que os víveres fundentes e nebulosos que encerra.

Ali nas esquinas das ruas que levam ao mercado, reluz com o brilho sem vaidade do pinho branco. Novinho ainda, e levemente aturdido por se encontrar numa pose desajeitada no olho da rua sem retorno, esse objeto é, em suma, dos mais simpáticos, – sobre a sina do qual não convém, entretanto, ficar repisando.

 

LE CAGEOT

A mi-chemin de la cage au cachot la langue française a cageot, simple caissette à claire-voie vouée au transport de ces fruits qui de la moindre suffocation font à coup sûr une maladie.

Agencé de façon qu’au terme de son usage il puisse être brisé sans effort, il ne sert pas deux fois. Ainsi dure-t-il moins encore que les denrées fondantes ou nuageuses qu’il enferme.

A tous les coins de rues qui aboutissent aux halles, il luit alors de l’éclat sans vanité du bois blanc. Tout neuf encore, et légèrement ahuri d’être dans une pose maladroite à la voirie jeté sans retour, cet objet est en somme des plus sympathiques – sur le sort duquel il convient toutefois de ne s’appesantir longuement.

 

Todo leitor de Ponge sabe que ele está brincando com uma falsa etimologia, que aproximaria “cageot” (caixote de feira), “cage” (gaiola) e “cachot” (masmorra). Por outro lado, “cageot” também parece ser uma palavra-valise criada pelas duas outras palavras, embora não seja. As três palavras existem no francês e são bastante comuns. A tradutora italiana, Jaqueline Risset, chegou a brincar com casetta (cabana), cassata (espécie de bolo de queijo e sorvete) e cassetta (caixote). Outros tradutores preferem manter a palavra francesa no original, abdicando de traduzir. Estou entre os tradutores que não abdicam da tarefa do tradutor (e a leitora de W. Benjamin sabe a que me refiro). Gosto que o meu engradado o tenha sido lembrado por Manoel de Barros, num poema de Tratado geral das grandezas do ínfimo.

Ponge, como sabemos, foi um leitor prematuro de Mallarmé. Mas Mallarmé é um Ponge sem o partido das coisas. Em Mallarmé, a tessitura de sons e imagens chega a um extremo em que as coisas parecem se desfazer na medida em se transformam em puro ritmo. Assim é o famoso “Soneto em -ix”, que não é mais difícil de traduzir do que de entender. Minha tradução toma como ponto de partida a de Augusto de Campos, cujos trabalhos, acredito, deveriam ser parte de uma formação obrigatória de qualquer tradutor de poesia:

De unhas puras, no alto, dedicando o seu ônix,
A Angústia, à meia noite, sustém, lampadófora,
Tanto sonho vesp’ral queimado pela Fênix
Que não recolhe cinerária qualquer ânfora

No salão vazio, em credências: nenhum ptyx,
O bibelô abolido de inânia sonora,
(Pois o Mestre hauriu já os seus prantos no Styx
Com o único objeto que o Nada condecora).

Mas no vitral vacante ao norte, agora
um ouro jaz, segundo a imagem que a decora,
de unicórnios em fogo contra a ninfa-nixe,

Ela, nua defunta ao espelho, embora
No olvido que a moldura encerra se fixe
De cintilações tal septeto sem demora.

 

Ses purs ongles très haut dédiant leur onyx,
L’Angoisse, ce minuit, soutient, lampadophore,
Maint rêve vespéral brûlé par le Phénix
Que ne recueille pas de cinéraire amphore

Sur les crédences, au salon vide: nul ptyx,
Aboli bibelot d’inanité sonore,
(Car le Maître est allé puiser des pleurs au Styx
Avec ce seul objet dont le Néant s’honore.)

Mais proche la croisée au nord vacante, un or
Agonise selon peut-être le décor
Des licornes ruant du feu contre une nixe,

Elle, défunte nue en le miroir, encor
Que, dans l’oubli fermé par le cadre, se fixe
De scintillations sitôt le septuor.

 

Gosto de ver nesse poema a Angústia personificada, de unhas negras, luciferina (“lampadófara”) como a noite estrelada, observando uma cena de vitral em que um unicórnio ataca uma ninfa germânica (nixe, uma palavra tão intraduzível como a nossa Iara ou Iemanjá). Mas é uma imagem que se esvai, junto com outras – como a do Mestre (o poeta, um deus, um demônio?) que vai buscar seu pranto do Estige, o rio do inferno grego. No final de contas, o que resta do poema é a mesma coisa que se encontra na sala vazia, sobre uma espécie de altar (a credência) onde se depositavam as urnas funerárias, um objeto que só apraz ao Nada: “aboli bibelot d’inanité sonore”. É quase um tatibitate, como a criança que diz: “uni-du-ni-tê…”. E, como tal, deve ser traduzido (decidi preservar o “abolido”, que ressoa em “Un Coup de Dés”, outra metáfora da poesia do nada: “um lance de dados não abolirá o acaso”).

Mallarmé e Joyce são casos extremos para um tradutor. Casos que exigem uma atenção concentrada para recriar imagens densas e sons dançantes, sem perder de vista os aspectos semânticos da relação entre as palavras e as coisas. Mas às vezes a simplicidade de um poema de William Carlos Williams (uma simplicidade re-buscada) pode ser tão ou mais difícil que a complexidade de Mallarmé:

so much depends
upon

a red wheel
barrow

glazed with rain
water

beside the white
chickens

 

tanta coisa depende
dum

carrinho vermelho
de mão

brilhando de gotas
de chuva

além das galinhas
brancas

 

Williams parte de uma geração que se cansou de metáforas e da proliferação de imagens e sonoridades (que abundavam na poesia dos pré-rafaelitas como Dante G. Rossetti, ou em místicos como W.B. Yeats). Os imagistas, como foram denominados, queriam chegar à imagem quase transparente das coisas através de uma linguagem despojada. Isso não quer dizer que considerassem se entregar ao desleixo verbal, ou que descuidassem do ritmo: aqui, a quebra da palavra wheelbarrow no terceiro verso cria uma relação nova entre a imagem e o ritmo, que passa por uma delicada releitura da prosódia das próprias palavras, como se elas pudessem, pela leitura atenta, tornar-se poemas isolados. Por outro lado, o poema dirige a atenção da leitura para uma sinfonia de cores e de brilhos que se dão no espaço do cotidiano, ao mesmo tempo em que ressalta o modo como mesmo as coisas mais simples estão em relação com outras coisas, já que o universo inteiro está em devir (Williams é contemporâneo de Whitehead, filósofo que via a natureza quântica do universo e da vida atravessando tudo em devir).

Antes de Williams, Emily Dickinson já havia criado uma maneira de buscar as coisas com a linguagem. Mas para ela, como para Mallarmé, a linguagem estava cheia de lacunas, ou de fraturas. A mesma crise que aflige Mallarmé, e antes dele Pascal (a sensação de estar em meio a um imenso vazio na solidão cósmica), transforma a linguagem de Dickinson numa espécie de matéria instável, porosa. Além do mais, Dickinson também se vê diante do horror da primeira guerra moderna (a Guerra Civil americana) e está no limiar da emancipação feminina (embora ainda sinta o peso da opressão machista). Por isso, traduzir Dickinson exige duas operações: a costura e a sutura. A costura corresponde, no meu caso, ao esforço de traduzir um texto integral e “fidedigno” (uma vez que ela nunca publicou, e dela restam apenas manuscritos, alguns dos quais quase ilegíveis). A costura também tenta se aproximar de uma “fidelidade” tradutória, mas não apenas aos aspectos semânticos: também aos aspectos rítmicos e imagéticos. A sutura, por outro lado, joga com o imponderável, tenta traduzir o imponderável, mantendo o grau de indecidibilidade do texto.

Dizer a Beleza reduz
Contar o encanto é indigno
Há um Mar assilábico
Do qual ela é só o signo
Meu desejo busca a palavra
E falha, mas se anima
Do Arroubo, como se Jóias
De introspectivas minas –

 

To tell the Beauty would decrease
To state the spell demean
There is a syllableless Sea
Of which it is the sign
My will endeavors for its word
And fails, but entertains
A Rapture as of Legacies –
Of introspective mines –

 

De onde saíram essas “Jóias”? perguntará a minha leitora. Bem, minha tradução reflete um trabalho de quase oito anos, que foi o tempo que levei para traduzir os trinta e cinco anos de trabalho de Dickinson. Às vezes, uma palavra usada por ela em 1859 reaparece em 1878 ou 1883, combinada com imagens semelhantes. De modo que muitas vezes eu estou remetendo o leitor, num poema como esse, a outro, e a outro, e a mais outro, embora cada um deles seja legível por si só. Ao mesmo tempo, há uma relação disfarçada entre as “jóias da coroa” e o “legado” ou “herança”. Entre o roubo e o arroubo. Essa é uma situação de sutura.

Ora, o que é a fronteira, senão essa situação-sutura, em que os significados das palavras nunca se estabilizam, porque você está constantemente passando de um lado para outro?

A sutura é a própria tradução.

É um abismo, uma voragem, mas também um chamado. E é preciso ter coragem. Como neste poema de Marina Tsvetáieva, que traduzi recentemente, já que estou num processo de entender o Russo, para voltar enfim, quiçá, à língua de minha mãe, che-sy, o avañe’e. Já percebi que há semelhanças entre essas duas línguas tão distantes. E não são poucas!

Onde a mão esquerda e a mão direita,
Tua alma à minha alma estreita.

Juntas vivendo o êxtase que esquenta
onde a asa esquerda, onde a direita?

Mas o tufão gira – e o abismo espreita
E direita, e esquerda –, arrebenta!

 10 de Julho de 1918

 

Как правая и левая рука,
Твоя душа моей душе близка.

Мы смежены, блаженно и тепло,
Как правое и левое крыло.

Но вихрь встаёт — и бездна пролегла
От правого — до левого крыла!

10 июля 1918

 

Marina Tsevetáieva viveu na fronteira da história moderna, a revolução Russa de 1917, pela qual lutou, e na qual viveu de forma dilacerada, vendo os amigos mortos e exilados pelos embates políticos. No trágico e épico “Poema do fim” («Поэма конца», 1924), Tsvetáieva foi capaz de dizer de uma forma insuperável que o amor é sutura, mas o tempo acaba abrindo os pontos de qualquer costura:

 

[…] Ибо – без лишних слов
Пышных – любовь есть шов.

Шов, а не перевязь, шов – не щит.
– О, не проси защиты! –
Шов, коим мёртвый к земле пришит,
Коим к тебе пришита.

(Время покажет ещё, каким:
Лёгким или тройным!)

Так или иначе, друг, – по швам!
Дребезги и осколки […]

 

O amor – (sem inchaço
retórico) – é sutura.

Sutura – não curativo.
Sutura – não armadura.
Sutura: costura-se o morto
-euemvocê – à sepultura.

(Tempo, incisão, pontos:
firmes ou frouxos?)

Por fim, amigo – vai-se
a costura! Estilhaços! […]

 

É interessante que Décio Pignatari (autor da outradução citada acima) traduza  шов (chov) por sutura, já que essa palavra pode ser costura ou sutura. Mas o amor, любовь (liúbov) diz Tsvetáieva, não é curativo (ou melhor, atadura, перевязь, pierevaiaz) ou mesmo escudo (щит, xít, palavra muito próxima de шит, chit, esta sim, costura). A costura-sutura da tradução é assim. Como uma ferida que nunca cicatriza.

Esse mesmo poema de Tsvetáeiva foi citado por outro poeta que viveu na fronteira trágica da história do século XX, Paul Celan. Celan, oficialmente romeno, nasceu na Bucovínia, uma grande fronteira entre o mundo eslavo, o mundo grego-latino, o mundo islâmico e o europeu. Filho de judeus que foram assassinados brutalmente pelos alemães nazistas, Celan escreveu sua obra num alemão atravessado por outras línguas e culturas, sobretudo a judaica. O verso que ele cita do poema de Tsvetáieva se relaciona com os primeiros pogroms do regime soviético, mas também à condição de errância do poeta na modernidade: “Поэты – жuды!” (Os poetas são judeus). Esse verso aparece citado como  “все поэты – жuды” (todos os poetas são judeus) em um poema de Die Niemandsrose,  que é uma espécie de antibíblia do holocausto. Ou melhor, é um livro que tenta operar uma sutura na história esgarçada pela violência do fascismo. É também um dos maiores desafios à tradução, pois Celan escreve a partir de uma situação-fronteira, e de uma linguagem mesclada, jehe’a, como diria em guarani.

Não vejo melhor maneira de concluir este texto, de traçar, ao fim dele, uma linha imaginária, para demarcar o lugar onde toda tradução se abre como ñe’e poty, língua-florescente para traduzir a dura fala de pedras e de cinzas-que-florem em Celan:

A SÍLABA DOR

Deu-se a Ti, à mão:
um Tu, imortal,
a quem todo Eu veio a si. Levou
palivres Vozes ao redor, formas-vazio, tudo
foi um em ti, mistura
desmistura
e nova mistura.

E cifras eram
contecidas no
Indexifrável. Uma e Miluma e
abaixo e avante
grande como o mim, mínima, des-
madura e pré- e pós-
metaformosa em
antes germinuncas.

Esquecido concepto
para o Olvidável, Meio-Terra, Meio-Coração
boiando,
afundando e boiando. Colombo,
o In-
temporal no Olho, a Máter-
flor,
morto mastro e vela. Tudo turbulindo

livre,
descobrível,
a florir a Rosa-vento, des-
folhando, Mundo-mar
a florir noite e dia. Em luz negra
do ermosulco. Em féretros,
urnas e canopos
acordam infantes
jaspe, ágata, ametista – Povo
Raiz e Tribo, cegueira

Assim seja

atado em
cordas-serpentes
livres –: um
nódulo
(e contra-e-mas-e-duplo-Mil-e-
nós-de-areia)
o noctívagos Olhos
da Estrela-Daninha no abismo
só-, só-, só-
letrando, letrando.

 

PS: Original, na voz de Paul Celan.


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