Arcas de Babel: Masé Lemos traduz Pierre Alferi

Arcas de Babel: Masé Lemos traduz Pierre Alferi
Masé Lemos traduz Pierre Alferi: 'Um dos mais inovadores poetas de sua geração' (Fotos: Arquivo pessoal/Pieter Vandermeer)

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Nesta vigésima quarta edição, a poeta, tradutora e professora Masé Lemos traz do francês poemas inéditos de Pierre Alferi, que ela também comenta num instigante ensaio crítico. Poeta de importância inegável na cena contemporânea francesa, Alferi ainda é pouco conhecido no Brasil.

Masé Lemos é professora da Escola de Letras da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Doutora em Letras pela Université Sorbonne Nouvelle, pesquisa sobre a poesia brasileira, francesa e portuguesa contemporânea. Integra o conselho editorial da Coleção Ciranda da Poesia da EDUERJ e atuou também na Revista Inimigo Rumor. Publicou poemas e traduções de poesia em diversas revistas e antologias, além dos livros Redor (7Letras, 2007), Rebotalho (Cozinha experimental, 2015), No circuito das linhas (Oficina Raquel, 2016) e Belo Horizonte boulevards (coleção Megamini – 7Letras, 2018).

***

 

Pierre Alferi (1963) é considerado um dos mais inovadores poetas de sua geração. Doutor em filosofia, atualmente é professor na École Nationale Supérieure des Beaux Arts de Paris e tem trabalhando em colaboração com outros artistas, além de ser também desenhista. Com a também poeta e fotógrafa Suzanne Doppelt, parceira no livro Kub Or (1994), fundou a Revista Détail, e com o poeta Olivier Cadiot, La Revue de Littérature Générale, que, apesar de sua curta duração – foram apenas dois números entre 1995 e 1996 –, teve grande impacto na cena francesa. Com o escultor Jacques Julien, produziu o DVD Ça commence à Séoul (2007) e o DVD Cinépoèmes& films parlants (2006), e com o músico Rodolphe Burger os livros e DVDs Lon Chaney (2004) e Intime (2013).

Alferi, que também se dedica ao trabalho de tradutor – traduziu para o francês obras de John Donne, Giorgio Agamben, Louis Zukofsky e Meyer Schapiro, entre outros –, ainda é pouco conhecido no Brasil, tendo tido apenas um breve ensaio intitulado “Política” publicado na Revista Inimigo rumor nº 16, em tradução de Carlito Azevedo e Marcos Siscar, além de alguns poucos poemas dos livros Cinépoèmes& films parlants e Intime traduzidos e apresentados por Marília Garcia no site da revista Modo de usar & Co.

Em 2013, traduzi com Paula Glenadel o ensaio “Rumo à prosa” (Vers la prose) e, em 2015, Inês Oseki-Depré traduziu um ensaio de Alferi sobre Mallarmé, intitulado “De um teatro de papel”. O interesse em traduzir Alferi para o português faz parte de um esforço para expandir a concepção atual de escrita poética na direção de um trabalho que questiona tanto a poesia pura, a lírica da revelação e expressão, quanto a poesia do embelezamento do cotidiano. A forte articulação de sua poesia com outras artes, questionando fronteiras de gêneros, é outro ponto de interesse que encontramos em certa poesia brasileira contemporânea.

Trouxe aqui trechos dos seus dois primeiros livros: Allures Naturelles (Andamentos naturais) de 1991 e Le chemin familier du poison combatif (O caminho familiar do peixe combativo), de 1992, que marcam sua poética da busca de frases que visam a criar traçados rítmicos no mundo, e que tratam mais especialmente da experiência do corpo e suas percepções na grande cidade. Alferi, que é doutor em Filosofia, publicou o livro Guillaume d’Ockham, le singulier em 1989, e é nítida esta marca em sua poética. Assim como Ockham, recusa as teorias clássicas do conhecimento e se atém à descrição da experiência singular no mundo, pois segundo Alferi, a filosofia de Ockham “não trata do porquê, mas do como da experiência, não quer forjar uma fundação, mas retraçar uma gênese. Seu estatuto é o de uma fenomenologia.”

Em 1991 publicou o livro de ensaios Chercher une frase que gira justamente em torno da busca da relação da linguagem com o mundo e da busca do sentido e da forma sempre em movimento. Nos livros de poesia acima mencionados, Alferi parte de experiências e proposições pré-determinadas, a partir também da relação possível destas experiências com os mapas e traçados já determinados que funcionam como apoio referencial e palpável do mundo. Como ele mesmo explica em Chercher une frase: “(as frases da literatura são decalques sobre o mapa referencial: elas não modificam seus pontos, mas fazem ali uma escolha para traçar linhas rítmicas.)”

O título do livro Os andamentos naturais, remete aos movimentos dos cavalos que não são “naturais”, mas ensinados, – dressage – como aliás o salto enjambé, caro ao pensamento do verso. Como se sabe, existem vários tipos de andamento, tais como o passo, o trote, galope macio, galope pleno e diversas subdivisões que são no livro explorados. Alferi, não sem ironia, se afasta do lirismo espontâneo, e submete-se a proposições maquínicas, para a criação de frases. Vejamos a quarta-capa deste livro:

Gênero: poesia, feita aqui de movimentos os mais cotidianos do corpo, do olhar e do pensamento, refeitos e repensados.

Tema: variedade destes movimentos (deriva, queda, oscilação…), curvas descritas durante um transporte – natação, memória ou caminhada – pequenos gestos, pequenos movimentos.

Forma: sintaxe destes movimentos, ritmo que faz cruzar o passo, versos enjambés

Andamentos naturais: maquínicas e forçadas, como é a marcha dos animais.

 

Genre : poésie, faite ici des mouvements les plus quotidiens du corps, du regard et de la pensée, refaits et repensés.

Sujet : variété de ces mouvements (dérive, chute, oscillation…), courbes décrites lors d’un transport – nage, mémoire ou promenade -, petits gestes, petits mobiles.

Forme : syntaxe de ces mouvements, rythme qui fait franchir le pas, vers enjambés.

Allures naturelles : machinales et forcées, comme est la marche des animaux.

 

O livro é dividido em dez partes ligadas aos temas: pressão, dissipação, inércia, circulação, condensação, deriva, translação, queda, oscilação e recuo, funcionam como proposições, próximas à arte conceitual, para que o corpo experimente o mundo, ao criar intensidades e buscar frases. Na parte 6, intitulada “Deriva”, alusão ao grupo situacionista e a sua prática de experimentação da cidade, os versos são cortados de maneira a criar uma sonoridade estranha, não melódica, com palavras que são repetidas e que tomam outros caminhos rítmico e temático:

 

menos que um acordo, o acorde
é uma virtualidade da mesma
dimensão que o tédio, a espera,
de toda sensação: no lugar
de reconciliar várias ele interpreta
cada uma delas; mas às vezes
bem trás da melodia
(derivando, derivado,
sampleado) que ele soa estranhamente
falso; então sentimos que o entusiasmo
não mais que o desgosto, o belo conjunto
de tudo o que sentimos, não são
aceitos: em desacordo constante
com nada, esse nada que, finalmente
existe e sai de tudo ileso.

*

moins qu’un accord, l’accord
est une virtualité de toute
hauteur comme l’ennui, l’attente,
de toute sensation : au lieu
d’en concilier plusieurs il interprète
chacune ailleurs ; mais quelquefois
si loin derrière la mélodie
(dérivant, dérivé
samplé) qu’il sonne étrangement
sinon faux ; alors l’on sent que l’enthousiasme
non plus que le dégoût, le bel ensemble
de tout ce que l’on sent, ne sont
de mise : en constant désaccord
avec rien, ce rien qui, après tout
existe et sort de tout indemne.

*

Já o terceiro poema da parte 4, “Circulação”, trata da experimentação pela observação de corpos em movimentos, corpos concretos, em situação, contextualizados, mesmo que pouco visíveis. O interesse é a descrição do movimento físico, ou ainda, como um possível filme poderia reter aquilo que está em circulação. Aqui os procedimentos do cinema ficam mais evidentes, com o uso dos cortes dos versos para fabricar a montagem dinâmica de imagens:

 

3. uma imagem menos nítida
que o fundo: um rosto que se vira
o movimento do rosto, sua imagem fixada
retirada, para encarar
o olhar que faz pose mas não
o olhar encarando, rastro do olhar varrendo
uma porção do disco, não se sabe ainda
se ele posa. A imagem tomada
da circulação relança-a
tem necessidade de retomadas e como ela
ela exige que vários movimentos, reta e
curva descritas de um jorro, se componham para a
descrever. Essa imagem
é a imagem retida.

*

3. une image moins nette
que le fond : un visage qui se tourne
le mouvement du visage, son image arrêtée
prélevée, pour faire face
le regard qui se pose mais non
le regard posé, la traînee du regard balayant
une portion de disque, on ne sait pas encore
s’il se pose. L’image prise
de la circulation la relance
a besoin de reprises et comme elle
elle exige que plusieurs mouvements, droite et
courbe décrites d’un jet, se composent pour la
décrire. Cette image
est l’image retenue.

 

O livro O caminho familiar do peixe combativo também traz uma proposição em sua quarta-capa:

O narrador se submete a quatro experiências. A primeira é de sair. A segunda, de passar o tempo. A terceira, de voltar para casa. A quarta, de olhar.

Relato de uma aventura.

 

Le narrateur se soumet à quatre expériences. La première est de sortir. La deuxième, de passer le temps. La troisième, de rentrer chez soi. La quatrième, de rentrer chez soi. La quatrième, de regarder.

Récit d’une aventure.

*

O livro é dividido em quatro partes e cada uma se abre com experimentos científicos copiados diretamente de J. von Uexküll (1864-1944), biólogo e filósofo conhecido pelos seus estudos sobre o comportamento dos animais em seus habitats e pela criação da noção de Umwelt. Alferi se utiliza desses experimentos para perceber o comportamento humano nas grandes cidades e em especial na emblemática Paris. Trago aqui a primeira destas experiências:

 

Para fazer essa experiência
coloca-se em um aquário
uma divisória de uma borda à outra
furada em dois lugares
e uma segunda no meio
perpendicular e livre. Então
mostrando-lhe uma presa
direcionamos um peixe combativo
pela primeira passagem
ao longo da segunda divisória
pela segunda passagem
numa ronda. Em seguida
vendo presas ao seu alcance
refaz todo o desvio. Assim
a jovem chuca retorna
a seu ponto de partida
que ela tinha reconhecido
vindo pelo outro lado.

*

Pour faire cette expérience
           on place dans un aquarium
une cloison d’un bord à l’autre
percée en deux endroits
et une seconde au milieu
perpendiculaire et libre. Alors
en lui montrant une proie
on entraîne un poisson combatif
par le premier passage
le long de la seconde cloison
par le second passage
dans une ronde. Ensuite
voyant des proies à sa portée
il refera tout le détour. Ainsi
le jeune choucas retourne
à son point de depart
qu’il n’avait pas reconnu
          en venant par l’autre côté.

 

Termino com dois poemas desta primeira parte do livro O caminho familiar do peixe combativo onde as referências da cidade ficam mais palpáveis e também as relações de opressão cotidiana dos trajetos entre casa e trabalho.

 

O olhar tateia as paredes

 

a cidade não tem mapa, não vemos o mapa
os sinais da pista são precisos e discretos
retemos imagens ativas e sua ordem
tudo pode assim ser apreendido de cor
a gente avança mas se pergunta, em certos momentos, se realmente
a gente avança mas se pergunta, em certos momentos, se realmente
uma passada vale uma frase
o trajeto não tem desenho, não se vê o desenho
os passos de orientação são cálculos míopes
a gente avança em um tubo capilar onduloso
tudo é compacto opaco em volta.

 

Le regard tate les parois

 

la ville n’a pas de plan, on ne voit pas le plan
les signes de piste sont précis et discrets
on retient des images actives et leur ordre
tout peut s’apprendre ainsi par coeur
on avance mais on se demande, à certains moments, si vraiment
on avance mais on se demande, à certains moments, si vraiment
une enjambée vaut une phrase
le trajet n’a pas de dessin, on ne voit pas le dessin
les pas d’orientation sont des calculs myopes
on avance dans un tube capillaire onduleux
tout est compact opaque autour.

 

*

 

Desci. A rive gauche seria pedestre, ociosa
e a rive droite, agitada, servida. Da linha nº 1
quase só conheço o trecho da Bastille à Concorde
onde eu fazia baldeação de manhã às 7h30
e à noite às 6h. Mudos, todos os rostos são belos.
A tirania dos empregadores se apoia entre outros
no primeiro axioma de Euclides. Gosto de olhar as pessoas
pelo reflexo delas na janela, deixar a mão no trinco
quando a porta se fecha, o barulho que ele faz.
A rede subterrânea é o contrário de um labirinto.

 

Descendu. La rive gauche serait piétonne, oisive
et la rive droite, affairée, desservie. De la ligne nº 1
je ne connais guère que le tronçon de Bastille à Concorde
où je prenais une correspondance le matin à 7h30
et le soir à 6h. Muets, tous les visages sont beaux.
La tyrannie des employeurs s’appuie entre autres
sur le premier axiome d’Euclide. J’aime regarder les gens
par leur reflet sur la fenêtre, laisser la main sur le loqueteau
quand la portière se ferme, le bruit qu’il fait.
Le réseau souterrain est le contraire d’un labyrinthe.


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