A Antologia chilena de contos de Lima Barreto, e outros lançamentos

A Antologia chilena de contos de Lima Barreto, e outros lançamentos

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É notável a elegância da coordenadora, Letícia Maria Vieira de Souza Goellner, das prefaciadoras, Dirce Waltrick do Amarante e Alessandra Ramos de Oliveira Harden, e das tradutoras/es, Letícia Maria Vieira de Souza Goellner, Vicente Menares Jiménes, Pablo Saavedra Silva e Ignacia Montero, de Antología de Cuentos Brasileños, de Lima Barreto (1881-1922), comemorando o centenário da morte do escritor, publicada em junho de 2022 em Santiago do Chile (Mago Editores), tanto no que se refere à escolha, quanto à interpretação desses escritos (sete contos e uma crônica, a saber: “Clara dos anjos”; “O Homem que sabia o javanês”; “Cló”; “A quiromante”; “A nova Califórnia”; “Sua Excelência”; “O feiticeiro e o deputado” e “Não as matem”), selecionados entre os 152 elencados, entre outros, na obra organizada por Lilia Moritz Schwarcz (Contos completos de Lima Barreto, Companhia das Letras, 2017), ao evidenciar atentamente os preconceitos de cor (preta) e de gênero (feminino) que amarguraram a vida de Lima, aqui no Brasil, em seu tempo, e que continuam amargurando milhares de vidas, não apenas aqui, mas em toda nossa “Latinoamérica”.

Mas não é, está claro, apenas a denúncia desses graves preconceitos e o ressentimento pelos seus efeitos que motiva a arte de Lima Barreto, enfaticamente qualificado por Francisco de Assis Barbosa (autor da primeira grande biografia do escritor, A vida de Lima Barreto, Edusp, 1988) como “o maior escritor brasileiro”. A sua arte, desde cedo, deveu-se à necessidade de expressar literariamente o que via, o que pensava, o que sentia, coisa que fez magistralmente, tanto na originalidade da estrutura, quanto na riqueza do léxico que caracterizam seus contos, por não falar aqui de seus romances, entre os quais os famosos Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909) e O triste fim de Policarpo Quaresma (1911). Em seus contos – e tomaremos os dessa Antologia como exemplo – há sempre e também, vividamente apresentada, alguma descrição, alusão ou referência, além do que a esses preconceitos, àqueles que Osman Lins chamou de Problemas inculturais brasileiros (Ed. Summus 1977) e que não só não foram superados, mas – ao contrário – foram se ampliando e se exacerbando a ponto de hoje poderem ser considerados endêmicos. Trata-se do fenômeno de “incultura” ou, como Lima a chamou em “A nova Califórnia”, de “caquexia dos trópicos”, atualíssima e tipicamente brasileira, que exemplificamos aqui pelos sucedimentos registrados pela imprensa e pelas redes sociais nos poucos dias em que foi escrito este artigo e que servem de eco aos descritos por Lima Barreto. Se não, vejamos.

Quanto à impunidade seletiva política dos crimes praticados no território nacional, narra Lima Barreto, no conto “A nova Califórnia”:

O único crime notado em seu pobre cadastro [da cidade de Tubiacanga] fora um assassinato por ocasião das eleições do município, mas, atendendo que o assassino era do partido do governo e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou os hábitos da cidade.

Será mera coincidência qualquer semelhança com o caso noticiado pela imprensa nacional em 11 de julho de 2022 e não julgado como crime político, resultando, entre outros, em pena muito menor para o réu: “X invade festa e mata Y a tiros no PR”, em que o assassino é do partido do governo e a vítima do partido da oposição?

Ou, mais pontualmente (Folha de S.Paulo, 27 jun. 2022), na crônica “Sempre dá para piorar”, sobre outro conveniente “cochilo” da justiça, diz a repórter Ana Cristina Rosa:

A PRF, por exemplo, resolveu liberar uma nuvem de fumaça sobre o caso Genivaldo de Jesus Santos, o homem negro morto por asfixia e insuficiência respiratória na espécie de câmara de gás improvisada numa viatura em Sergipe. Acionada por meio da Lei de Acesso à Informação, a corporação impôs sigilo secular sobre os processos administrativos que investigam a conduta dos agentes envolvidos.

Já, em “Clara dos Anjos”, deparamos com a seguinte descrição:

Chefiava os “bíblias” um americano, Mr. Sharp, homem tenaz e cheio de uma eloquência bíblica que devia ser magnífica em inglês, mas que, no seu duvidoso português, se fazia simplesmente pitoresca. Era Sharp daquela raça curiosa de yankees que, de quando em quando, à luz da interpretação de um ou mais versículos da Bíblia, fundam seitas cristãs, propagam-nas, encontram adeptos logo, os quais não sabem por que foram para a nova e qual a diferença que há entre esta e a de que vieram.

Tiveram, por acaso, os “bíblias” que para cá vieram mais tarde, luzes mais esconsas que a da interpretação de um ou mais versículos da Bíblia? Quem sabe? Leia-se uma resposta online no mestrado de Luiza Chuva Ferrari Leite, O plano de poder da Igreja Universal do Reino de Deus: estratégias territoriais da expansão neopentecostal no Brasil, de Salvador, Bahia.

E ainda, no mesmo conto, sobre o mesmo assunto, Lima Barreto:

O povo não os via com hostilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas simpatizavam com eles, porque, justificavam, não eram como os padres, que para tudo, querem dinheiro.

Hoje, entretanto, nem mesmo essa justificativa o povo ainda pode dar: “… Entenda[-se] o esquema de propinas em barras de ouro com pastores que levou ex-ministro [pastor] à prisão [e de lá o tirou]”, como se lê em matéria da Revista Fórum de 17 de julho de 2022.

Em “O homem que sabia javanês” encontramos esta abertura edificante: “Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades para poder viver”.

Se as “partidas”, na época de Lima, eram pregadas em nível individual, atualmente (veja o artigo “A cartilha da corrupção”, publicado na revista Veja em 20 de julho de 2022) já o são em nível institucional e são pregadas diretamente… às leis: “Auditoria do Tribunal de contas do … aponta milhares de mortos e servidores públicos incluídos em programa milionário de alfabetização tocado pelo governo do…”

No conto “Cló”:

Lamentava-se que ele fosse um bacharel vulgar e um deputado obscuro. A sua falta de agilidade intelectual, de maleabilidade, de ductilidade, a sua fraca capacidade de abstração e débil poder de associar ideias não impediam que ele fosse deputado e bacharel.

Aqui está um bacharel [vulgar?] de hoje, acusado de vários crimes e foragido, se manifestando na rubrica Brasil Justiça, no artigo de Ricardo Chapola, na revista Veja, em 20 de julho de 2022:

Alguém já viu esse inquérito? Meus advogados não têm acesso ao teor, não sabem por que estou sendo investigado. Também me chama a atenção o silêncio da imprensa, que parece mais preocupada com a censura imposta aos jornalistas da Nicarágua.

E ainda, em “Cló”, agora sobre o carnaval:

Certamente, durante séculos de escravidão, nas cidades, os seus antepassados só se podiam lembrar daquelas cerimônias, de suas aringas ou tabas pelo carnaval. A tradição passou aos filhos, aos netos, e estes estavam ali a observá-la com as inevitáveis deturpações. Ele, o doutor Maximiliano, apaixonado amador de música, antigo professor de piano para poder viver e formar-se, deteve-se um pouco, para ouvir aquelas bizarras e bárbaras cantorias, pensando na pobreza de invenção melódica daquela gente. A frase, mal desenhada, era curta, logo cortada, interrompida, sacudida pelos rufos, pelo ranger, pelos guinchos de instrumentos selvagens e ingênuos.

Confronte-se o texto de Lima com outras “pobrezas”, acrescidas pelo carnaval de hoje, como lemos na reportagem “Apesar de suspensão oficial, carnaval julino toma ruas de S. Paulo”, publicado em O Estado de S. Paulo em 17 de julho de 2022: “dois banheiros químicos, insuficientes para evitar que o público urinasse em ruas vizinhas”.

Em “O feiticeiro e o deputado”:

A sua biblioteca tinha só cinco obras: a Bíblia, o Dom Quixote, a Divina comédia, o Robinson e os Pensées de Pascal. O seu primeiro ano ali devia ter sido de torturas. […]

A desconfiança geral, as risotas, os ditérios, as indiretas, certamente teriam-no feito sofrer muito, tanto mais que já devia ter chegado sofrendo muito profundamente, por certo de amor, pois todo sofrimento vem dele.

Leia-se de Ruy Castro em Folha de S. Paulo de 17 de julho de 2022: O que Millor Fernandes escreveu nos anos de 1970 e ainda faz total sentido, hoje, em 2022. Exemplos: “Outrora os melhores pensavam pelos idiotas. Hoje os idiotas pensam pelos melhores”. Ou “Os brasileiros têm suas trevas interiores. Convém não provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro”.

Em “Sua excelência”:

O ministro saiu do baile da embaixada, embarcando logo no carro. […] Todo ele era um poço de certeza. Estava certo de seu valor intrínseco, estava certo de suas qualidades extraordinárias e excepcionais.

A respeitosa atitude de todos e a deferência universal que o cercavam eram nada mais nada menos que o sinal da convicção geral de ser ele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios.

Da edição Brasil no El País, coluna de Juan Arias de julho de 2022:

Precisamos nos perguntar por que o político brasileiro poderia, hoje, como no passado Hitler, Mussolini ou o caudilho Franco, chegar ao poder, até mesmo pelas urnas, apesar de serem figuras folclóricas, inexpressivas, e com biografias insignificantes […]

Mais do que os valores que defendem, esses personagens inimigos da democracia e da liberdade são frutos dos erros dos que os precederam.

[…] Por trás desses personagens que estão mais para figuras do teatro do absurdo do que para guias mundiais e estadistas de alto nível, está a deteriorização de uma classe política e de uma sociedade na qual as pessoas perderam a confiança nos valores da democracia e da liberdade.

Em “A matemática não falha”:

Neste [lugar] como naquele, nesta ou naquela profissão, tenham-se as melhores ou as piores aptidões, o que se nos pede nessa sociedade burguesa e burocrática é muita abdicação de nós mesmos, é um apagamento de nossa individualidade particular, é um enriquecimento de sentimentos comuns e vulgares, é um falso respeito pelos chamados superiores, e uma ausência de escrúpulos próprios, de modo a fazer os delicados e tímidos de consciência não suportar sem os mais atrozes sofrimentos morais a dura obrigação de viver, respirar a atmosfera deletéria de covardia moral, de panurgismo, de bajulação , de pusilanimidade, de falsidade, que é a que envolve este ou aquele grupo social e traz o sossego de seus fariseus e saduceus, um sossego de morte da consciência.

Leia-se, em O Estado de S. Paulo, 17 de julho de 2022, na página “Notas e Informações”:

As nações mais prósperas, sob todos os aspectos, são aquelas entendidas por seus nacionais como um projeto de construção coletiva para o qual cada indivíduo ou grupo contribui na medida de sua responsabilidade. É a essência da cidadania. Isso não implica, obviamente, a supremacia do pensamento único, nem tampouco majoritário, isto é, não significa impor às minorias a mera condição de espectadoras ou coadjuvantes. Trata-se, muito ao contrário, de uma exortação à consciência de cada um dos cidadãos […]

Da página Economia & Negócios de O Estado de S. Paulo, 17 de julho de 2022, coluna de Celso Ming:

A área de maior incerteza continua sendo o comportamento das contas públicas. Com apoio do congresso, o governo vai atropelando a constituição e as leis que cuidam do equilíbrio fiscal. E há o fator político-eleitoral que pode bagunçar tudo ainda mais…

E ainda, em “O homem que sabia o javanês”: “O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras nesse Brasil imbecil e burocrático”.

Em Folha de S. Paulo, 17 de julho de 2022, no ensaio de Bernardo de Carvalho:

Não é a primeira vez nem será a última que a produção científica é atacada em investidas autoritárias:

[…] No momento em que o Brasil mais precisou da ciência, os governantes optaram por ignorá-la. Ao contrário, perseguiram, censuraram e tentaram calar os pesquisadores que cometeram a desfeita de avisar à população que não precisava ser assim […]

Finalmente, em “A cartomante”:

Saiu, foi à venda e consultou um jornal. Havia muitos videntes, espíritas, teósofos anunciados, mas simpatizou com uma cartomante cujo anúncio dizia assim: “Madame Dadá, sonâmbula, extralúcida, deita as cartas e desfaz toda espécie de feitiçaria, principalmente a africana. Rua, etc.”

Paralelamente, como conclusão, leia-se este anúncio, na Folha de S.Paulo de 17 de julho de 2022:

BENZIMENTO
Mais de 60 anos de benzimentos e trabalhos com ervas sagradas.
Cortamos maldições familiar (sic).
Quebra de demandas, feitiços, inveja no amor, saúde e na justiça.
Libertação de enfermidades, vícios, insônia, depressão e solidão.
Alcance o emprego tão desejado.
Amém.

Aurora Bernardini é professora, escritora e tradutora. É doutora pela USP com tese sobre o futurismo russo e italiano e fez livre-docência na mesma instituição sobre a poeta russa Marina Tsvetáieva. Já traduziu mais de cinquenta livros, além de ter organizado obras como O futurismo italiano: manifestos, Mitopoéticas: da Rússia às Américas e A estrutura do conto de magia.


por Redação

Os Waimiri-Atroari são um povo indígena que habita o sudeste de Roraima e o nordeste do Amazonas. Na década de 1970, foram os principais agredidos pela construção da rodovia BR-174, que passa pelos estados de Mato Grosso, Rondônia, Amazonas e Roraima e vai até a Venezuela. Alvos de diversas invasões, os Waimiri-Atroari foram presos, escravizados, torturados e assassinados pelo governo militar então em voga. Sobre esse painel histórico ambienta-se o novo romance de Frei Betto, iniciado há cinco anos. Com farta pesquisa historiográfica, a obra aprofunda nossa compreensão desse evento histórico e reafirma a urgência de repensar a relação do Estado brasileiro com os povos originários, sempre marcada por muita violência e abusos.

No livro de estreia do paulistano Renato Fonseca, acompanhamos a relação de Teobaldo, um velho moribundo, cheio de vícios e frustrado com o fim decadente de sua vida, com seu filho, Júlio, sensível, talentoso, com uma deficiência intelectual e alvo constante do rancor da figura paterna. Em um cotidiano melancólico e agressivo seguimos essa perversa relação parental, que esgarça os laços e o tecido social até o ponto de os personagens precisarem revisitar seu passado, seu presente e suas questões para reordenar o ordinário. Como escreve Felipe Ramos na orelha da obra, “somos convidados a olhar com repulsa a nossa própria imagem, em uma leitura envolvente, ácida e poderosa”, no que, espera-se, seja o “anúncio de que esse bom homem, um dia, será o último”.


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