Rosa entre línguas: ‘A rosa de ninguém’, de Paul Celan, e outros livros

Rosa entre línguas: ‘A rosa de ninguém’, de Paul Celan, e outros livros
A poesia de Celan tenciona o material linguístico, numa “forte tendência ao emudecimento”, como diz o próprio poeta

 

A leitura dos poemas de Paul Celan desperta aquele desejo de traduzir que Ricœur situa aquém de todo projeto de tradução, como sua condição de possibilidade. Não que seja fácil traduzi-los, ou que as traduções que lemos na edição bilíngue d’A Rosa de Ninguém (Niemandsrose), recentemente publicada pela Editora 34, não sejam excelentes. Penso, aliás, que a inegável qualidade do trabalho do tradutor Maurício Cardozo contribui para potencializar esse efeito.

O desejo de traduzir – e também de interpretar –, que acomete os leitores de Celan, parece vir da própria dicção singular do poeta, ela própria marcada pela experiência dos limiares entre línguas e pelo endereçamento ao outro. Carregadas de ressonâncias plurilíngues, suas construções dialógicas antecipam “algo visível, algo audível, a/ liber-/ anda palavra-tenda:/ Juntos.” (“Anábase”, p.123).

Judeu romeno de expressão alemã, Celan viveu num ambiente multilíngue, que incluía também o russo e o francês, além do ídiche e do hebraico. Vítima da perseguição nazista, responsável pela morte seus pais, o poeta, que também esteve aprisionado num campo de trabalhos forçados, radicou-se na França depois da Segunda Guerra, e casou com a artista francesa Gisèle de Lestrange, com quem teve um filho. Apesar disso, continuou a escrever sobretudo em alemão, sua língua materna.

Manteve sempre uma intensa atividade como tradutor de poesia de diversas línguas, inclusive do português, e a redação d’A Rosa de Ninguém, realizada entre 1959 e 1963, foi acompanhada pela tradução de Óssip Mandelstam. Essa experiência de leitura e tradução foi tão importante que Celan dedicou sua coletânea ao poeta russo, também judeu, evocado em vários poemas, como “Tarde com circo e cidadela”, que Cardozo transcria mantendo a forma poética e as rimas (p.131):

 

Brest ardia em anéis de crepitude
na tenda, o tempo-tigre saltitante,
foi lá que te ouvi cantar, finitude,
foi lá que te vi, Óssip Mandel’Stame.

O céu pendia sobre o ancoradouro,
sobre a grua, a gaivota-rapineira.
O finito cantava, o duradouro, –
você é Baobá, nau canhoneira.

Saúdo o pavilhão tricolorido
com uma palavra em russo –
Perdido era Não-perdido,
e o coração, lugar inconcusso.

 

Além da influência das outras línguas que atravessaram sua experiência e escrita, Celan se insurgia contra a contaminação das palavras e da própria literatura pela ideologia nazista, fazendo um uso deslocado e singular do alemão. A apresentação do tradutor, que abre esta edição, destaca a recusa do poeta em inscrever sua obra nos lugares comuns da tradição lírica alemã, e sua opção pela ruptura dos automatismos, desviando-se de certas expectativas através de inovações sintáticas e da invenção de neologismos, como em “Salmo” (p.67):

 

Ninguém nos molda outra vez de terra e barro,
ninguém encanta nosso pó,
Ninguém.

Louvado seja você, Ninguém
Por ti queremos
florescer
De encontro
a ti.

Um nada
Éramos, somos, continuaremos
sendo, florescendo:
a rosa de nada, a
rosa de ninguém

Com
o estilete almaclaro
o estame celestiarido,
a corola rubra
do nosso canto que a palavra purpura
sobre, ó por sobre
o espinho.

 

Através dos neologismos e construções sintáticas inabituais, recursos que Cardozo transcria lindamente, Celan se confrontava a um desafio comum aos poetas de expressão alemã do pós-guerra. Segundo Ingeborg Bachmann, numa das conferências que deu na universidade de Francfort em 1959, esta geração poética viveu numa “época de extrema penúria da palavra” e procurou “infligir feridas à noite”. Nela, podemos incluir aliás a própria poeta austríaca, uma das mais importantes interlocutoras de Celan, além de amante e correspondente.

Apesar das dificuldades do idioma poético de Celan, Cardozo contesta, em sua apresentação, a ênfase no hermetismo e no obscuro, associada ao pathos do indizível, que caracterizou uma primeira recepção brasileira do poeta. Coerentemente, o tradutor mantém em português a linguagem predominantemente coloquial d’A Rosa de Ninguém. Busca também valorizar os endereçamentos que caracterizam a poética celaniana, explicitando seu desejo de interlocução.

A poesia de Celan tenciona o material linguístico, numa “forte tendência ao emudecimento”, como diz o próprio poeta, no discurso que fez por ocasião da recepção do Prêmio Georg Büchner, em 1960, durante o processo de escrita d’A Rosa de Ninguém. Neste ensaio, intitulado O Meridiano, ele afirma que o poema seria “linguagem, tornada figura, de um ente singular”, e em versos d’A Rosa de Ninguém, evoca um “calar, cozido como ouro, em/ mãos/ carbonizadas” (“Alquímico”, p.71). Mas este silêncio não se fecha em si mesmo, num hermetismo que recusaria toda comunicação, mas busca a “abertura/ negrecida, inquerida/ por ideias cheias de dedo/ quanto à __ /quanto ao quê? // Quanto ao irrepetível, quanto a isso, quanto a/ tudo.” (“À la pointe acérée”, p.115)

Ainda segundo as formulações d’O Meridiano, o poema “quer ir ao encontro de um Outro, precisa desse Outro, de um interlocutor”. De acordo com Stéphane Mosès, um dos mais importantes leitores da obra de Celan, dois movimentos se cruzam em sua poesia: a atualização do evento pela enunciação poética e a orientação utópica de um endereçamento à alteridade, que se abre ao futuro da recepção. A leitura de seus poemas solicita e interpela, demandando uma atitude produtiva e atenta. Talvez por isso desperte o desejo de traduzir, ou incite a prolongar a leitura pelo estudo crítico.

 

Palavra de ir-ao-fundo,
a palavra que lemos.
Os anos, as palavras desde então.
Somos nós, ainda.

Sabe, o espaço é infinito,
sabe, você não precisa voar,
sabe, o que se inscreveu em teu olho,
profunda-nos o fundo.  

 

“‘A atenção’ – permitam-me que cite aqui, seguindo o ensaio de Walter Benjamin sobre Kafka, uma frase de Malebranche – ‘a atenção é a oração natural da alma’”, diz Celan n’O Meridiano.  Esta primeira tradução completa d’A Rosa de Ninguém, que inaugura uma série de edições brasileiras dos livros publicados em vida pelo poeta, marca uma nova etapa na recepção brasileira, realizada até aqui através de antologias, e certamente suscitará a atenção de muitos leitores.

Patrícia Lavelle é poeta e tradutora, professora da PUC-Rio, fez doutorado em Filosofia na EHESS-Paris.


[não-ficção] 

Por Redação


O que sonham os brasileiros em tempos de pandemia? Essa pergunta é respondida neste livro em que é apresentado o estudo Sonhos confinados em tempos de pandemia, que articulou o trabalho de pesquisadores especializados em escuta psicanalítica de diversas regiões do Brasil, resultando num vasto acervo de relatos sobre as angústias, medos e frustrações vividas durante o período de confinamento. “Mais do que nunca, precisamos narrar nossa vida interior”, escreve Sidarta Ribeiro sobre a pesquisa.

A autora, jornalista estadunidense e ganhadora do prêmio Pulitzer, por meio de uma análise comparativa entre Estados Unidos, Índia e Alemanha nazista, defende a ideia de que o mundo como o conhecemos foi moldado pela noção de casta e que as hierarquias rígidas e arbitrárias continuam a dividir as sociedades. Wilkerson analisa os efeitos desse diagnóstico na cultura, política, educação e saúde, fornecendo pistas importantes para entender a crise global da democracia.

Primeiro livro de não ficção da autora de A cor púrpura, definido no subtítulo como prosa mulherista. Reúne ensaios que abordam os principais temas de sua vida: o feminismo negro, a literatura, a luta contra o racismo e a valorização da cultura negra nos Estados Unidos. Ao longo do livro, somos apresentados a personalidades negras que deixaram legados importantes, mas foram vítimas de apagamento histórico, como a escritora e antropóloga Zora Neale Hurston e a poeta Phillis Wheatley.

Para dar conta do mundo atual, os autores, ambos filósofos, propõem uma contra-história do capitalismo, tendo como eixo a relação entre política e guerras. Entende-se guerras no plural: ecológica, racial, entre nacionalidades, contra as mulheres, os indígenas, os pobres. “A expansão contemporânea da financeirização pilota uma guerra civil global e dita suas polarizações”, afirmam Alliez e Lazzarato. O livro integra a coleção Explosante, dedicada a obras que procuram as convulsões criadoras.


[ficção] 

Após a morte simultânea de seus pais, Cecília volta a Goiás para velá-los. Morava havia anos no Rio de Janeiro, onde tentava recomeçar a vida e esquecer um relacionamento fracassado. A aparição de um familiar desconhecido levanta suspeitas sobre o possível assassinato dos pais. Paralelamente a suas investigações para descobrir a verdade, corre a história de João, veterinário de Brasília, desesperado para conseguir dinheiro e fazer um tratamento experimental com o filho Adam, que tem paralisia cerebral. No encontro da trajetória das duas personagens pode estar a chave para desvendar o mistério.

Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras, várias autoras

Cento e oitenta escritoras participam dessa obra, em um importante panorama da literatura brasileira contemporânea. Em comum, as autoras passaram pela Flup – Festa Literária das Periferias e inspiraram-se em Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras escritoras negras brasileiras a ter projeção literária internacional. Os registros literários são diversos, passando do conto à crônica, do diário ao relato autobiográfico, mas seguem a tradição inaugurada por Carolina de Jesus. Como escreve a poeta Conceição Evaristo, a autora de Quarto de despejo “inaugura uma linha matricial, de mulheres negras, de mulheres pobres, na literatura brasileira”. 

Apesar de sucintos, os quatro contos reunidos no livro atravessam em profundidade o espaço e o tempo. Além de escritor, o moçambicano João Paulo Borges Coelho é historiador e reconstrói crítica e artisticamente uma parte da história africana em seus contos. Assim, os três últimos séculos de Moçambique são delineados em histórias que entrecruzam o Congo a China e personagens e acontecimentos históricos, como a Independência de Moçambique, em 1975.

 Em seu livro de estreia, o poeta natalense interpõe vislumbres e paisagens de sua cidade a referências literários como Nicanor Parra e Roberto Bolaño e imagens de inspiração surrealista. Os 84 poemas são divididos em três eixos: “Tábuas de maré”, dedicado à topografia de Natal; “Tábuas de horário”, no qual dialoga com suas referências e inspirações; e “Os aterrados”, mais voltados ao ambiente urbano. Como escreve a poeta Maria Luiza Chacon na orelha do livro, são poemas que figuram o extraviado, o esquecido e mesmo o não vivido, “seja por meio dos lugares abandonados, da musa sem nome, da cidade arrasada ou do trem fantasma que nomeia a obra”.


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