O poeta e seu século: em busca de Nicanor Parra

O poeta e seu século: em busca de Nicanor Parra
O poeta Nicanor Parra em Las Cruces, Chile (Foto: La Tercera Chile/Reprodução)

 

Qualquer balanço crítico que propusesse estabelecer quanto da poesia chilena conseguiu cruzar a cordilheira, ser traduzida e chegar aos leitores brasileiros teria um resultado frustrante: Pablo Neruda e Gabriela Mistral, os dois poetas ganhadores do Prêmio Nobel, são a exceção. Nicanor Parra (1914-2018), outro dos grandes chilenos, teve que passar dos cem anos e morrer para merecer sua primeira antologia no Brasil, lançada no ano passado, pela editora 34, e remediar, ainda que emergencialmente, o deficit de poesia chilena de que se sofre por estas terras.

No Chile, tão logo morreu Parra, em 23 de fevereiro do ano passado, já se publicava a mais longa biografia do poeta – escrita nos dois anos anteriores: Nicanor Parra, rey y mendigo, de Rafael Gumucio (Ed. UDP). Tal livro bem que poderia ser a segunda aula do curso de Parra que todos precisamos fazer. Infelizmente, nada indica que será publicada por aqui. Como biografia, é um livro singular, que desperta uma série de perguntas.

O autor, quando se lançou a biografar o já centenário Parra, não tinha nenhuma afeição especial pelo poeta: quando, ainda adolescente, encontrou-o pela primeira vez – numa oficina literária em Santiago – estava decidido a não admirar a nenhum outro escritor além de si próprio (p. 402). Era o fim dos anos oitenta e, com o término da ditadura de Pinochet, a família Gumucio retornava de um longo exílio na França.

O respeito que o adolescente passou a ter pelo velho, que declarara aos participantes da oficina a importância decisiva de Kafka em sua formação literária, não pode então ser dimensionado por ele. Quase trinta anos depois, ao aceitar a encomenda de escrever sobre Parra, um enxame de perguntas rodeava sua cabeça. A principal delas é assim enunciada: “Por quê escrevo isto? Por que eu (…) e não todo mundo que conhece ele melhor do que eu? (…) Será que eu invento para Parra dúvidas e certezas que são minhas? A biografia é o gênero mais fictício de todos os gêneros literários. (…) Por que eu conto a vida de Nicanor Parra?” (p. 69)

O fato de que essas sejam as perguntas próprias do ofício do biógrafo não tira em nada a estranheza do fato de Gumucio enunciá-las publicamente: enquanto conta a vida de Parra, escreve suas próprias memórias e impasses. Além disso, embora o tamanho de Nicanor assombre o escritor, ele recusa a todo custo transformar seu biografado em mito. Recusa ainda fazer da biografia um livro de entrevistas, no qual o poeta se contaria a si mesmo, coisa que, no caso de Parra – egocêntrico e algo desmemoriado – poderia ser desastroso. A estratégia é outra: com um atrevimento notável, Gumucio faz-se, ele mesmo, personagem da obra, tornando-se não apenas testemunho, mas interlocutor das falas de Parra, que ganham circunstância e visualidade. Com rara felicidade, escreve: “Isto não é uma biografia de Parra, explico a todo mundo para quem explico o livro. Minto quando digo isso, e digo a verdade. Isto não é uma biografia de Parra. Isto é uma biografia com Parra. É uma biografia contra Parra.” (p. 164). O livro nos lembra a cada instante que o sujeito é feito de linguagem, que se constitui e se define nos seus torneios verbais com o outro. Assim é que o biógrafo compõe a imagem do velho poeta, não apenas com o que diz, mas com seus gestos teatrais, grandiloquentes, capturando-o em suas pantomimas.

Em que pesem todos os esforços do biógrafo para humanizar seu personagem, ele sempre se mostra grande demais. Parra não é Neruda – monumentalizado e morto – segue vigoroso, na iminência de morrer ou ser galardoado com algum Nobel de literatura. E enquanto Parra segue vivo, Gumucio vacila: há momentos reveladores do livro, nos quais o biógrafo explicita que a precariedade é seu método, e que ele se detém onde qualquer jornalista ou “biógrafo profissional” (o que quer que isso queira dizer) avançaria. Um exemplo é a carta de suicídio da irmã de Nicanor, a cantora Violeta Parra. O poeta oferece mostrar a carta ao biógrafo, a carta desejada por todos os fãs de Violeta, a carta historicamente importante e jamais mostrada publicamente, a carta, enfim, que Gumucio se recusa a ler: “mas sempre que chegava a hora da carta, eu descobria que tinha que ir embora, que estava tarde, que já estava ficando de noite. Que estranha lealdade era aquela que me impedia de ler a carta?” (p. 211). Leitores ansiosos esperarão o ressurgimento da missiva – manchada de sangue – ao longo do livro. Setenta páginas depois, Nicanor insistirá diante do biógrafo constrangido: “Quer ler a carta? Quer?” (p. 279)

Ao trazer para o centro de seu projeto biográfico o laço de confiança estabelecido com o velho poeta, ao fazer-se de escada para o biografado brilhar, Rafael Gumucio faz a escolha possível e paga o preço por ela: recusa o mito, mas sustenta a esfinge. Seu livro traz perguntas, inquieta, não se ocupa em oferecer respostas.

Um homem chamado Nicanor

Nessa biografia com Parra, será preciso encarar Gumucio. Conviver com o humor amargo do biógrafo que se faz personagem, tímido e confuso, por vezes atormentado, e que em companhia de sua esposa benevolente e suas duas filhas pequenas, persegue o rastro do poeta, ora hospedando-se por meses ao lado de sua casa, ou em viagens erráticas pela Europa, em busca de depoimentos. Eis o preço para chegar ao outro, o velho fanfarrão e piadista; o que nasceu num povoado de camponeses, enfrentando a pobreza e se dedicando aos estudos, enquanto seus irmãos, entre eles Violeta, faziam apresentações musicais e circenses em troca de algumas moedas ou de um pedaço de pão; o que se tornou aluno do internato para ter alojamento e comida garantidos; o que virou físico e nalgum momento fez da anti-matéria o ponto de partida de sua anti-poesia; o que viveu de bolsas e prêmios e amores, para fugir da pobreza, do Chile e da mediocridade; o que buscou para si um lugar na poesia chilena que não fosse o de Neruda; o que escolheu o absurdo, a negação da metáfora e o humor cru para criar sua primeira poesia; o que, em 1969, pensou ter atingido o ponto de chegada de sua obra, sem saber que ainda lhe restava quase meio século de vida.

Assim, as diferentes décadas do poeta na biografia vão revelando-o, nas mais diversas aventuras, um personagem sempre renovado. Uma das interessantes estratégias do biógrafo consiste em ceder a palavra aos que conviveram com o poeta ao longo da vida. Desse modo, recebemos as imagens menos virtuosas de Parra, livres de qualquer idealização: a sueca Sun Axelson conta, em primeira pessoa, como viajou de seu país a Santiago, a pedido do amado, para ser absolutamente desprezada por ele – então vivendo com Inga Palmer, outra sueca, que terminou abandonando-o também; o escritor Jorge Edwards e outros contemporâneos oferecem a imagem de um homem muitas vezes obcecado com a figura de Neruda e com seu desejo de alcançar o Nobel.

Nesse sentido, um dos períodos mais reveladores é o dos anos setenta, quando o poeta, já nacionalmente consagrado, homem vaidoso, perde-se em meio ao mundo polarizado da Guerra Fria, cometendo deslizes à esquerda e à direita: em Cuba, passa de figura querida e jurado frequente do Prêmio Casa de las Américas a persona non grata, ao defender a plenos pulmões a homossexualidade de Allen Ginsberg – poeta a quem hospedara por uma temporada em sua casa chilena; nos EUA, é fotografado tomando chá, em abril de 1970, na Casa Branca com a primeira dama do governo Nixon, no momento em que as bombas caíam pesadas no Vietnã e no Camboja; três anos depois, vivendo em Manhattan como professor convidado da Columbia University, estampa a página do New York Times numa foto ao lado dos Black Panthers, e é automaticamente convidado a se retirar do país; em seguida, no próprio Chile, a esquerda local perde a paciência com ele, que lança poemas de escárnio, os Artefatos, contra a UP (Unidad Popular), que acabara de eleger Salvador Allende presidente, figura que Parra não tolera.

Quando Pinochet chega ao poder, primeiro celebra que o país tenha se livrado do marxismo e não tenha se tornado uma Cuba – conforme diz em depoimento a Víctor Jiménez, em 2009 (citado à pág. 327), mas logo Parra se dá conta das atrocidades do regime e passa a fazer-lhe oposição. Curiosamente, para isso, se vale dos mesmos Artefactos, antes dirigidos à UP, e que agora se voltam contra Pinochet e seus apoiadores. Sua oposição será também com o recurso a vozes alheias do passado chileno, que passam a servir o que já vai ficando difícil de dizer em voz própria. Assim surgem livros, revistas e um espetáculo circense com sua marca pessoal: a revista Manuscritos (1975), o espetáculo Hojas de Parra (1977) e os Sermões e Prédicas do Cristo de Elqui (1977). Ler sobre o período da Guerra Fria e as estratégias e posicionamentos dos artistas chilenos diante de um mundo em convulsão é particularmente instrutivo para o momento brasileiro, em que a arte – mais uma vez – debate-se ao tentar encontrar um discurso e uma estratégia adequados ao presente distópico.

Como se tudo isso não fosse o bastante e restassem ainda ao poeta outras quatro décadas, ele continuou vivendo, amando e publicando livros. Seu prestígio nacional e estrangeiro cresceu, com a circulação de seus poemas pela City Light, a editora dos beats, e elogios ao norte e ao sul, de gente tão distinta como podem ser Harold Bloom e Roberto Bolaño. Parra resolveu ainda revisitar seu passado de pesquisador (de física) em Londres e decidiu traduzir e trazer à luz sua versão do Rei Lear, de Shakespeare, com a linguagem popular de sua poesia, alternando-se registros altos e baixos, com uma tradução que não se parece com nenhuma outra em língua espanhola, mas se parece com Shakespeare e com Parra: Lear rey y mendigo.

Rafael Gumucio, é preciso que se diga, teve o mérito de enfrentar essa vida, com seu protagonista vivo e diante de si. Sua biografia não é uma narrativa caudalosa, mas uma série de pequenas narrativas, ensaios, reflexões, que vão compondo um mosaico que avança cronologicamente, embora sempre com alguma interpolação do tempo presente, ou da própria juventude de Gumucio. Há passagens luminosas, como a síntese que alcança ao tratar das lições que Parra aprendeu de Eliot, sobre a tradição: Parra lamenta não poder aplicar a lição de Eliot no Chile, país que carece de um poema épico nacional (como o Martín Fierro dos argentinos); mas logo o livro mostra como o poeta encontra a tradição em sua própria casa, com sua irmã Violeta (pp. 195-9). Há momentos menos felizes da obra, quando atabalhoadamente se propõe a fazer um balanço histórico da revolução cubana em cinco páginas (p. 304-308).

O importante é que a biografia de Rafael Gumucio é um livro de pesquisa, reflexão e  invenção, no qual enfrenta com fôlego e humor um homem talentoso e apaixonado como Nicanor Parra, e que o resultado é tanto uma experiência audaciosa com o gênero biográfico quanto um estudo consistente sobre a escrita e as estratégias de sobrevivência do poeta.Tudo isso tem muito tem a nos ensinar, latino-americanos em busca do canto, da justiça e do pão. Uma obra cuidadosa e emocionada, enfim, que consegue fazer-nos refletir sobre a arte e a poesia na América Latina do século 21.

Três poemas de Nicanor Parra, por Wilson Alves-Bezerra

Auto-retrato

Considerai, garotos,
Esta língua roída pelo câncer:
Sou professor de um liceu obscuro,
Perdi a voz em minhas aulas.
(Depois de tudo ou nada
Dou quarenta horas semanais.)
E o que achais da minha cara estapeada?
Não é que dá pena de me olhar?
E o que dizeis deste nariz apodrecido
Pela cal do giz degradante.

Em matéria de olhos, a três metros,
Não reconheço nem minha própria mãe.
O que é que eu tenho? – Nada.
Eu estraguei meus olhos nas minhas aulas:
A luz ruim, o sol,
A venenosa lua miserável.
E tudo isso para quê?
Para ganhar um pão imperdoável
Duro como a cara do burguês
E com sabor e com fedor de sangue.
Para quê nascemos como homens
Se nos dão uma morte de animais!

Pelo excesso de trabalho, às vezes
Vejo formas estranhas pelo ar,
Ouço corridas doidas,
Risos, conversas criminais
Mirai as minhas mãos
E estes pômulos brancos de cadáver,
Estes escassos pelos que me restam.
Estas negras rugas infernais!

Mesmo assim eu fui já como os senhores,
Jovem, cheio de belos ideais,
Sonhei fundindo o cobre
E limando as faces do diamante:
Eis-me hoje aqui:
Detrás desta mesa desconfortável
Embrutecido pela balbúrdia
Das quinhentas horas semanais.

(De Poemas y antipoemas, 1954)


A montanha russa

Durante meio século
A poesia foi
O paraíso do tonto solene
Até que cheguei eu
E me instalei com minha montanha russa.

Subam, se quiserem
Claro que não me responsabilizo se descerem
Soltando sangue pela boca e pelo nariz.

(De Versos de salón, 1962)


Epitáfio

Eu sou Lucila Alcayaga
vulgo Gabriela Mistral
primeiro me deram o Nobel
e depois o Nacional

apesar de eu estar morta
ainda me sinto mal
porque não me deram nunca
o Prêmio Municipal

(De Calcetines huachos, sem data)

Todos os poemas são do livro El último apaga la luz. Obra Selecta. Organizado por Matías Rivas (De Bolsillo, 2017)

Wilson Alves-Bezerra é crítico, tradutor e escritor. Escreveu Vapor barato (Iluminuras, 2018), O pau do Brasil (Urutau, 2016), entre outros

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