A poesia em tempos de terrorismos

A poesia em tempos de terrorismos
(Arte Revista CULT)

 

Poesia trata do complexo, do ambíguo, do aporético, do intensivo, do que não se pode resumir a uma só possibilidade. Mais do que o empreendimento de uma alternativa qualquer a vir à tona, a poesia realiza uma abertura de possibilidades, um impossível que afeta as possibilidades ao transformá-las e desviá-las, que nos lembra, a cada momento, das potencialidades– e das impotências – dos sentidos, dos afetos, dos pensamentos, das ações e da vida. Poesia se coloca, então, como uma dimensão política como poucas outras, uma dimensão que o que se entende habitualmente por política deveria e precisaria mesmo escutá-la, ao invés de desprezá-la ao extremo como se tem feito em nosso tempo tão sombrio, tão restritivo, tão autoritário, tão propositalmente enfraquecedor do outro, quem quer que seja esse outro se estiver fora do poder – e mesmo os que estão no poder pouco sabem do viver em sua diversidade para além da conquista do privilégio dos autobenefícios econômicos ao qual reduziram a política, se é que se pode manter tal nome.

Nosso tempo, entretanto, ainda é também de poesia, de poemas escritos em nosso tempo, de poemas que, escritos em nosso tempo, de alta relevância para o nosso tempo, resistindo, sentem e pensam o nosso tempo, como espero que, pelo que foi aqui apresentado ao longo desses meses, tenha se tornado minimamente claro. Com uma aposta infinitamente singular e sempre em vias de se fazer, a poesia estabelece seu lugar dos impasses mais dramáticos que vivemos, como um acontecimento a poder aproximar as pessoas de uma escuta mais do que necessária ao que não se sabe do outro e de si e de hoje, como o acolhimento da alteridade desconhecida e como sua indiscernibilidade, mesmo que incomunicável, com o outro. Mesmo que assumindo um fazer infinitamente difícil, talvez a poesia ainda seja uma tentativa de nos livrar e o nosso tempo de nossas e suas amarras constitutivas.

Um poeta português que muito admiro, António Franco Alexandre, escritor, entre muitos livros, do excepcional Quatro caprichos, certa vez escreveu: “[…] não encontro nenhum conceito simples de ‘poesia’. Muitos críticos têm o ar de julgar que todos os poetas (escritores de versos?) querem fazer o mesmo, só o fazem melhor ou pior, enquanto creio que tentam fazer coisas inteiramente diversas”. Neste blog, com os 30 textos dos convidados (mais o meu de abertura e este de encerramento), jamais se tratou de se tentar um caminho único da poesia nem de privilegiar um tipo específico de poemas, mas de uma abertura a alteridades das mais diversas. Quando fui chamado para fazer o blog que intitulei de “O cuidado da poesia – poemas do e para este tempo”, no site da Revista CULT, quis me colocar, sobretudo, na função de um curador, não de um autor de textos; escrevi apenas o primeiro, lançando a ideia que me movia, e este, último, sem querer de modo algum ser a palavra final do que aqui ocorreu.

Sendo a poesia desde sempre uma dimensão em que as alteridades comparecem, que elas comparecessem através de mim dos modos que fossem os que os convidados julgassem os mais pertinentes. O aspecto restritivo se deu, obviamente, nas escolhas que fiz, tentando privilegiar, na medida de minha capacidade de escolha e dos aceites dos convidados, intervenções que, longe de serem exclusivas, quiseram ser algumas das que podem ser lidas como relevantes de nosso tempo; conscientemente e com riscos, mesmo os admirando muito, evitei escolhas de alguns poetas que, tendo maiores visibilidades dentro do meio, são mais conhecidos de leitores minimamente interessados em poesia e mesmo para além deles. Achei oportuno que uma diversidade de poetas menos lidos ganhasse voz. Em alguns casos, pedi depoimentos a poetas e editores; em outros, escolhi quem escreveria e sugeria um tema que eu sabia ser de seu foco de maior interesse; tiveram casos, muitos, em que eu escolhia a pessoa para escrever e ela indicava sobre o que ou sobre quem gostaria de escrever (jamais me contrapus a qualquer escolha feita). Tenho plena consciência de que este blog se coloca então entre mim e os outros, entre mim e os que, generosamente, aceitaram escrever, entre mim e os que foram escritos por tantos, entre mim e também os que, por motivos pessoais, apesar de convidados, não puderam escrever. Que suas ausências sejam a indicação afirmativa de todas as outras intervenções que aqui faltaram e certamente continuam e continuarão faltando.

Por fim, agradeço o generoso e corajoso convite de Daysi Bregantini, editora da excelente revista CULT, que, também com seu estímulo, me deu total liberdade, ajudando a dar igualmente maior visibilidade a alguma poesia contemporânea brasileira e a algum pensamento que ela pode disparar. Agradeço igualmente a Amanda Massuela e a toda equipe da revista CULT. Agradeço ainda a todos que, escrevendo ou sendo mencionados, participaram de “O cuidado da poesia – poemas do e para este tempo”.

PARA QUE POETAS EM TEMPOS DE TERRORISMOS?

na disputa entre o estado e o terrorismo,
na conciliação do estado com as empresas
pelo lucro do capital acima de tudo,
na sobreposição do templo com o banco
dispondo a cada momento da fé ou do crédito
de todo exército com as armas em sua defesa,
na definição do dinheiro (que já foi chamado
de homem) como o único animal que bombardeia,
fico com as pessoas comuns, quaisquer,
com os rios, os bichos e as matas, com os que sentem
na pele até não serem mais capazes de sentir.
terrorista, hoje, é o outro, o que, coisificado, escapa
às diversas escalas, maiores ou menores,
da época do pau de selfie que vivemos,
terrorista, hoje, repito, é o outro, o inferno
do outro, o outro enquanto inferno, terror.
abrir as portas para o mais próximo, para o mais
parecido, para o semelhante, é um gesto belo
e necessário, mas é pouco quando, ao mesmo tempo,
o outro, quem quer que seja o outro,
o outro mesmo, o tido como o mais distante,
é trancafiado do lado de fora, bombardeado,
e, antes, fabricado para ser exatamente o outro
a ser atacado, para dizer que o ato do outro
fabricado é um ato de guerra, unact de guerre,
anactofwar, contra isso que nós somos,
contrece que noussommes, sendo que isso
que nós somos é imposto como
toda humanidade e os valores universais,
all humanity and the universal values,
como eles disseram com cinco
anos de intervalo ou ao mesmo tempo
na mesma fala ensaiada na mesma língua
de guerra, do aniquilamento do outro, que falam.
it’s war, baby, c’est la guerre, mon amour,
lafranceesten guerre, america is at war,
vamos tomar um champanhe com os diretores
dasamarco, da billiton, da vale do rio doce,
do jornal o globo, comprar todos eles,
a maioria dos políticos e sair o quanto antes
com a petrobrax (e com o que mais der)
debaixo do braço, c’estlaguerre, macherie,
it’swar, darling, nós, os civilizados,
declaramos “guerreaux barbares”,
gozemos então sinistramente com as mortes
dos outros, somos franceses, somos americanos,
somos franceses, somos americanos, somos
franceses, somos nós, somos… que ninguém
pergunte pela porra disso que nós somos
porque talvez não sejamos mais porra nenhuma.
é guerra. é guerra, declara o estado, no mesmo
impulso colonialista de sempre, é guerra, declaram
os estados, favorecendo-se irresponsavelmente
a si mesmos, forjando um laço interessado
com a opinião pública midiática, quando, no fundo,
coloca-se, com a mídia, autoritário, entre uma pessoa
qualquer e outra, entre uma pessoa qualquer
e a vida e o mundo, entre uma pessoa qualquer
e si mesma, escondendo-se ali e ali atuando,
eis a guerra, o espetáculo de hoje, o rompimento
de todos laços sociais e de intimidade. eis a guerra.
é guerra por lá, é guerra declarada por aqui,
o crápula criminoso do presidente da câmera
declara guerra à presidenta da república
(e a todos os cidadãos que participaram de sua eleição)
aceitando um pedido de impeachment forjado
para tentar se livrar das milhares de acusações
comprovadas dentro e fora do país
contra ele, chantageando-a, chantageando-nos
e parando toda movimentação política
propositiva, dizendo, ainda, com desfaçatez,
que não faço o pedido de impeachment
por nenhuma motivação de natureza política,
é guerra, eis a guerra, o líder do partido
da presidenta na câmera declara em seguida
que vamos para a guerra, é guerra, eis a guerra,
o presidente de um movimento popular
diz que seu exército está pronto para ir às ruas,
é guerra, eis a guerra, a polícia executa cinco jovens
negros que comemoravam o primeiro emprego
de um deles com 111 tiros metralhados,
com 111 tiros fuzilados, contra o carro
em que estavam, contra seus corpos
e contra suas vidas, porque negro jovem não pode
viver neste país que mata 84 negros por dia,
a maioria jovem, guerreaux barbares. é guerra.
é guerreaux barbares. é guerra, eis a guerra,
a polícia do governador de são paulo
solta bombas, sprays de pimenta, cassetadas,
porradas, tiros e o que mais houver
de horror nos estudantes adolescentes de escolas
públicas (les barbares) que se manifestam
contra o fim da escola pública, contra o fechamento
de 94 escolas públicas decretado pelo governador
e o governador diz que há motivação política
por detrás da ocupação das escolas pelos alunos,
mostrando que motivação política
não pode mais haver no estado
de polícia, no estado de guerra,
exatamente a mesma compreensão de política
do presidente da câmara, ou seja, de novo,
de que não pode haver política, apenas
a instauração da era do fim da política, do início
da era da era da polícia, é guerra, eis a guerra,
o chefe de gabinete da secretaria estadual
de educação de são paulo afirma que a situação
com os alunos adolescentes é de guerra
e que o governo vai desmoralizar e desqualificar
o movimento estudantil na base da porrada
e da violência generalizada. é guerra.
é guerra por lá, por aqui, por aí, por sei lá onde,
por toda parte. o oriente é terrorista, a áfrica
é terrorista, a natureza é terrorista, manifestantes
são terroristas, professores são terroristas,
alunos são terroristas, educação é terrorista,
bebês são terroristas, negros são terroristas,
pobres são terroristas, índios são terroristas,
catadores de latas são terroristas,
travestis são terroristas, transexuais
são terroristas, mulatos, albinos e mosquitos
são terroristas, mulheres são terroristas,
homens são terroristas, como são terroristas…
hoje, em qualquer lugar do mundo,
terrorista é o outro, quem quer que seja
o outro, você, quem quer que você seja,
o outro, mesmo que o outro no meio de nós
e o outro em cada um de nós. somos todos,
as pessoas comuns, quaisquer, terroristas.
para que poetas em tempos de terrorismos?
para que poetas em tempos de terrorismo
religioso de todos os lados do planeta? para que
poetas em tempos de terrorismo da verdade
plena e integralmente revelada? para que poetas
em tempos de terrorismo midiático? para que
poetas em tempos de terrorismo econômico?
para que poetas em tempos de terrorismos?
o último poeta morreu em 1914, ele disse.
não há mais poetas, os poetas morreram.
sobrevivemos, destroçados, em pequenas comunidades
que nem comunidades são, sobrevivemos esquecidos
em nossas solidões, sobrevivemos impotentes
diante dos terrorismos de todos os dias, diante dos
micros e dos macros terrorismos, sobrevivemos,
de algum modo (ainda que não nos matem
nem nos prendam e que nos deixem ter,
ao menos a alguns de nós e por outros motivos
que não a poesia, algum dinheiro para sobreviver),
sobrevivemos, de algum modo, então, como os índios,
como os garotos do tráfico, como os homens-bombas,
como os enlameados, como os mortos
pelo tráfico, como os mortos pelos homens-bombas,
como os mortos e desabrigados pelas mineradoras…
mas nunca como os donos do tráfico, das indústrias
bélicas, dos estados, dos que levam os homens-bombas
a se tornarem homens-bombas (afinal,
ninguém nasce homem-bomba
como ninguém nasce poeta).
o que sobrou para nós foi a nossa impotência,
o último reduto de uma força – frágil – crítica –
que podemos ter, a que pode mostrar
como poucas outras os poderes estabelecidos
que nos assolam. enquanto nossos fantasmas
ainda se fazem, de algum modo, percebidos,
ao menos por nós mesmos e por um ou outro
que não fazemos ideia de quem seja,
seguimos como conseguimos seguir,
porque também os fantasmas
que somos, que já buscamos
algum tipo de pertencimento,
buscamos, agora, somente o que fazer
com o quase total despertencimento
em que nos encontramos no mundo atual.

(5) Comentários

  1. Querido Alberto, terminar por que? Esse blog para nosso deleite deveria ser eterno. Parabéns pela excelente trabalho e que outros apareçam. Do seu sempre admirador Marcio

  2. A poesia em tempos modernos, desempenha um papel de grande potência para a sociedade, pois nele o poeta vai descrever o que está sendo vivido e o seu relato, sempre buscando uma reflexão. Atualmente, temos mais liberdade de expressão, comparado aos tempos de ditadura militar, mas ainda persiste a restrição de opiniões, por exemplo, na política. O senso crítico deveria ter um destaque maior, deixando de lado a alienação imposta no cotidiano, por meio da mídia.

  3. “abrir as portas para o mais próximo, para o mais
    parecido, para o semelhante, é um gesto belo
    e necessário, mas é pouco quando, ao mesmo tempo,
    o outro, quem quer que seja o outro,
    o outro mesmo, o tido como o mais distante,
    é trancafiado do lado de fora, bombardeado,
    e, antes, fabricado para ser exatamente o outro
    a ser atacado, para dizer que o ato do outro
    fabricado é um ato de guerra, unact de guerre,
    anactofwar, contra isso que nós somos,”

    na poesia é lindo, fabricar propriedades mesmo que virtuais, tomar o espaço virtual e levantar muros para eliminar quem não está de acordo, quem pensa diferente, dominar essa diferença como afronta…isso não é poesia, é vida de poeta contemporâneo, gaiola. É essa a estética? Estamos fritos. A reprodução totalitária , autoritária, protofascista é essa atitude, entrar no espaço e ao invés de caminhar por ele tratar de levantar muros para o exibicionismo, para a vaidade social e bloquear o diferente. Uma baraço Pucheu

  4. Caro Alberto, prezados e queridos da poesia. Que texto forte! Alberto, parabéns por colocar aqui nossas lutas mais interiores (e exteriores)! Sim, estamos todos em guerra; talvez a maior delas seja, de fato, contra nossos íntimos fantasmas.

  5. Esse texto, esse blogue, e s grande pergunta do poeta Pucheu tudo isso aqui que aqui oposto é o que melhor fala da força da resistência. Para quê poeta em tempos de terrorismo?

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