Nossa casa sem paredes

Nossa casa sem paredes
(Arte Revista CULT)

 

 

Na PUC-Rio, nos anos 90, falavam muito dele pelas aulas e pelos corredores.

O homem que morava em uma casa sem paredes.

Desejando de antemão, de modo bastante adolescido, contrariar certo senso comum e, ao mesmo tempo, caindo em sua mais vulgar armadilha, tal como o ateu fervoroso que, ao negar, com dor, adora Deus, tanto quanto, ou mais, o adoram seus mais fanáticos e sofridos súditos, tracei, de imediato, sobre o rosto dele uma figura um tanto pedante. Fiz dele, tristemente, mais um desses tantos que se dizem abertos aos devires do mundo, prontos a pregar a desconstrução das velhas dicotomias entre o palco e a plateia, o museu e o mundo, o mundo acadêmico e as ruas, o eu e o outro, mas, bem de outro modo, ainda se fazem crentes no protegido prestígio umbilical de suas velhas auréolas de citações apanhadas no lodo do macadame de algum bulevar da zona sul.

Nada disso se confirmou quando, alguns anos depois, e eu menos dolorosamente adolescido, nossos corpos se tocaram.

Ele chegou como sempre chega. Como quem não quer nada, querendo tudo com a vida. Veio fazer parte de minha banca de qualificação de doutorado. Me deu um beijo na boca e me disse: “aceita. aceita o amor à vida vinda; faz falta não fazer vida vir”. Pergunto se posso publicar isso. “Sim, pode tudo. Sou seu”. Nos tornamos o seu-meu-nosso e o muito mais de um longo e inacreditável porvir.

Ele sempre chega como quem não quer nada. E, é certo, não quer mesmo nada a priori, querendo tudo o que há de nascer entre nós. Com ele, exercita-se, de modo afiadíssimo, a mecânica dos que não se preparam para. Vão-se os rostos já sabidos, as classificações dos que só desejam ficar por dentro do glossário. Ficam os muitos olhares atravessados pela alquimia dos corpos, o calor dos gestos, a energia de algo que nunca se pode dizer e diz. Agora sim: ele é a própria sua/nossa casa sem paredes.

Seu “outrar-se” é radical. Com ele, jogamos todos no time dos que não têm. Ficamos nus. Confortavelmente nus diante de uma vida que nos ultrapassa e nos possui, uma vida-outra que já é. Com ele, viver, sendo perigoso, para lembrar o clássico mote de Riobaldo, é também “muito confortável”. Ou, como bem desdobrou, com ele, seu irmão-poeta-pensador Alberto Pucheu: “apesar do perigo é necessário viver, ou, talvez, melhor, mesmo com o perigo, é confortável viver, ou talvez melhor – uma lição de fortes – porque há o perigo é confortável viver.”

Com ele, aprendemos a nos confortar na escuridão. Todos, ele nos diz, podem mover-se nela, com ela e, entre as coisas mais banais (preparar o café, arranjar a conferência, abrir um livro, conversar com o garçom), conquistar uma vida de artista. Confortar-se: obrar-se. Dar forma ao contínuo informe da vida. Uma casa sem paredes, mas não sem arquitetura. Espécie de arquitetura musical. Muitas portas se abrirão. Aprenderemos a dançar novamente.

Uma clínica de artista: tornar-se, não o senhor, mas a enzina de novas ecologias-obras-vidas. Não é preciso dizer nada antes. Tudo está entre. Em Clínica de artista, não há internos. Externa-se o que deseja, no campo do corpo-pensamento, a expansão cósmica. O disparar de muitas conexões entre: veias, línguas, bocas, portas, dedos, mãos, olhos, buracos no céu e na rua, descobertas de inusitadas janelas em detalhes e decotes dos que se tocam.

Projeto estético, ético e político. Luta-se basicamente por: possibilidades de dar mais vida à vida, o que significa lutar pela diferença e, ao mesmo tempo, pela partilha. Com Nietzsche, ele pensa e pratica uma vida nobre. O direito a não seguir o rebanho. O constante escapar das etiquetas e moralidades sintáticas, semânticas, sonoras e plásticas. Outra universidade se projeta. O encontrar signagens inauditas. Com Cristo (alguns talvez diriam: e também com Marx), deseja, mais que a comunhão das diferenças, a ampliação dos acessos às possibilidades de sua produção.

Um dia ele me disse: “sou um homem com dívidas com os pobres e com os que precisam de algo”. Sua dívida não se deixa tombar em culpa (gestos de subtração da vida), mas se multiplica em gestos de compaixão forte. Gestos de luta apaixonada. O lutar com.

Com ele, luta-se, em diversas camadas e frentes de possíveis micros e macros políticas, por justiça. Todos, não só podem, mas devem poder, conquistar uma vida de artista. O direito ao básico (o comer) e ao máximo (reinventar a comida). Distribuição de renda e de nobreza. Biscoito fino para todos.

Tá na cara. Tudo nele constitui. Um enorme e constante exercício de amor.

Uma vida de artista se tece pela arte da entrega. Tudo está entre: irmãos e amados. Assim ele nos chama. E nós o acolhemos e escolhemos como aquele que nos pede em casamento e nos promete o outro. Sopro de novas relações.

Há o amor e há o martelo. Exercício de resistir e dizer não: a tudo que nos impede e golpeia a vida. Com ele, também nos convidamos aos contragolpes. Cortar certas conexões corpóreo-afetivas (as que nos fazem funcionários vulgares do fascismo nosso de cada dia) e deixá-las sangrar. Clínica para se livrar do peso do mundo e ganhar mais vida, mais amor.

Não se ama, com ele, tudo e todos. Ama-se o que, conosco, se livra. Ama-se o que se admira (assim ele nos diria): passagens pelo corpo de “um pássaro que, quase morto, ainda voa”. Ama-se um amor que jamais será televisionado. Ama-se o que se guarda em um qualquer canto secreto de nossa casa sem paredes.

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