A pedra reiterada

A pedra reiterada

 

Wilker Sousa

Poucos poemas causaram tanta celeuma na literatura brasileira quanto “No Meio do Caminho”. Publicado originalmente nas páginas da Revista da Antropofagia, em 1928, e dois anos mais tarde em Alguma Poesia – livro de estreia de Drummond –, “o poeminha da pedra” incitou reações extremadas, tanto de enaltecimento quanto do mais ferino repúdio. A concisão, a coloquialidade e a repetição daqueles versos brancos eram a mais bem acabada realização dos ideais modernistas até então, o que despertou a admiração imediata dos expoentes do movimento: “Não pode haver dúvida: Carlos Drummond de Andrade é um dos grandes poetas do Brasil” (Manuel Bandeira); “O ‘No Meio do Caminho’ é formidável” (Mário de Andrade).

Por outro lado, essas mesmas características incitaram a ira dos herdeiros do “lirismo comedido” de Bilac, entre eles o jornalista Godin da Fonseca: “O sr. Carlos Drummond é difícil. Por mais que esprema o cérebro, não sai nada. Vê uma pedra no meio do caminho (…) e fica repetindo a coisa feito papagaio”.

Às críticas e aos comentários jocosos, Drummond mostrou-se primeiramente “seco e encalistrado”, depois simplesmente se acostumou. Com o passar dos anos, em vez de ostentar as glórias literárias recebidas como forma de resposta, optou por um caminho mais criativo e irônico. Após quatro décadas da publicação do poema na Revista da Antropofagia, em 1968 o poeta trouxe à luz o livro Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema, reunião de centenas de comentários acerca daqueles versos: “colecionei e publiquei tudo o que se escreveu sobre a pedra no caminho, pró e contra, (…) pois a essa altura a pedra havia assumido aspectos existenciais e filosóficos que nunca me passaram pela cabeça”, explicou em entrevista. Sob a organização de Eucanaã Ferraz, o livro acaba de ganhar uma reedição, acrescida das seções inéditas “Ainda a Pedra” – ampliação do material recolhido por Drummond – e “Biografia da Biografia” – composta de resenhas e comentários sobre o livro desde sua publicação. Na esteira do lançamento, CULT entrevistou premiados poetas brasileiros que falam sobre a relação que mantêm com o célebre poema.

Ao topar com a pedra
Com base no ensino tradicional de literatura brasileira, as aulas sobre modernismo habitualmente sucedem aquelas sobre parnasianismo. Familiarizados com o beletrismo e com o rigor dos poemas de Bilac e Alberto de Oliveira (ícones da escola parnasiana), os alunos costumam reagir com estranhamento ao tomarem contato com aquela “poesia antipoética” dos modernistas. Afinal, à primeira vista, qual parece mais poética: a pedra de Bilac: “E, pois, nem de Carrara / A pedra firo: / O alvo cristal, a pedra rara, / O ônix prefiro” ou a de Drummond: “No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho”?

“Li Drummond pela primeira vez aos 15 anos. A palavra que melhor define minha impressão não foi ‘gostei’. Foram: impacto e atropelo. O que era aquilo?”, revela Armando Freitas Filho. Reação semelhante teve Fernando Paixão, àquela altura fascinado por um soneto de Jorge de Lima: “Se bem me lembro, [o primeiro contato com “No Meio do Caminho”] foi por meio de um livro escolar e a primeira reação foi de estranhamento. Eu já andava às voltas com a poesia nessa época, mas havia me fascinado pelo ritmo de “O Acendedor de Lampiões”, de Jorge de Lima. Um soneto primoroso. (…) Como se trata de um continente muito diverso do fazer poético, confesso, a pedra passou despercebida nesse momento.”

Houve, porém, quem reagisse com admiração: “Eu estava lendo a obra completa do Drummond aos 16 anos, por sugestão da minha professora de redação e gramática. Aí topei com o poema naturalmente. Gostei das repetições. Elas criavam, e ainda criam, um ritmo hipnótico, encantatório”, relata Fabrício Corsaletti. Quanto a Marcos Siscar, o que mais lhe chamou a atenção foi o caráter iconoclasta e, portanto, provocador do poema: “Como muitos poetas iniciantes, certamente devo ter escrito alguns ‘No Meio do Caminho’ nessa época, incorporando o procedimento reiterativo que, a propósito da provocação, não deixa de transformar em monumento poético a experiência do obstáculo ou do bloqueio.”

“Nunca me esquecerei desse acontecimento”
Por ocasião do lançamento de Alguma Poesia, em 1930, Murilo Mendes enviou uma carta a Drummond, na qual explicitava sua reação à leitura do “poeminha”: “É o tipo de poema no meio da cabeça da gente. Nunca me esquecerei. Não sai”. De fato. Lá se vão mais de 80 anos e a poesia brasileira permanece sob o impacto provocador da pedra, conforme explica Armando Freitas Filho: “Mesmo inconscientemente pagamos pedágio ao nosso poeta maior. Essa pedra, para sempre, é a minha Esfinge antes da Esfinge: não pergunta nada, mas me encara. Ou, então, é como a de Sísifo: missão e sina, acompanha minha vida, e minha poética”.

A exemplo de Armando, na medida em que passou a conviver com a poesia de Drummond, Fernando Paixão fez o percurso do estranhamento à influência: “Sem querer, a pedra também se tornou um elemento recorrente em meus versos – gosto, sim, de interrogar a sua forma e (falta de) sentido. E também admiro a sua lição de concisão e minimalismo. Prova que é possível fazer boa poesia com poucas palavras”. E, ao que parece, a lição drummondiana continuará a se impor como contraponto a toda poesia comedida, cuja perenidade se limita à data de publicação. “Ao tornar-se parte das coisas supostamente superadas, [‘No Meio do Caminho’] poderia ter passado a soar ingênuo, não fosse a dobra inquietante que a memória e o cansaço existencial continuam imprimindo ao poema iconoclasta”, analisa Marcos Siscar.

Uma Pedra no Meio do CaminhoBiografia de um Poema
Carlos Drummond de Andrade
Org.: Eucanaã Ferraz
IMS
344 págs. – R$ 50

(2) Comentários

  1. UMA PEDRA “FILOSOFAL” – Talvez o único poema na história que recebeu uma biografia (1), esta coletânea de críticas e artigos escritos sobre o texto, ora louvando, mas a maioria atacando o poeta. Publicado pela primeira vez na “Revista da Antropofagia”, ano I, n.3, jul. 1928, “No meio do caminho”, como disse Mário de Andrade em carta ao jovem Drummond (orientando por aquele): “Acho formidável. Me irrita e me ilumina. É símbolo”(2). Mário já definiu: a pedra seria uma “referência de um objeto ou acontecimento presente a um objeto ou acontecimento não-presente, ou cuja presença ou não-presença seja é indiferente. Nesse sentido mais restrito […] é a característica fundamental do comportamento humano, porque permite a utilização do passado (o que ‘não está mais presente’) para a previsão e o planejamento do futuro (o que ‘ainda não está presente’). Nesse sentido, pode-se dizer que o homem é. por excelência, um animal simbólico, e que nesse seu caráter se radica a possibilidade de descoberta e de uso das técnicas em que consiste propriamente sua razão” (3). A pedra é símbolo, a vida uma redescoberta… Eterna aprendizagem (“Mestre não é quem sempre ensina, mas quem, de repente, aprende” – Guimarães Rosa) Poema situação: o limite , assim como em “José” (1942), onde não há alternativas – o problema se faz poesia, matéria para a vida. E o poeta canta esse filosofar de forma lírica…O por vir será, sendo, atravessaremos, como diz Maikovski : “As ameaças/ e as guerras/ havemos de atravessá-las,/ rompê-las ao meio/ cortando-as/ como uma quilha corta/ as ondas” (4)

    (1) ANDRADE, Carlos Drummond. “Uma pedra no caminho: biografia de um poema”. Apres. Arnaldo Saraiva. Rio de Janeiro: Ed. Do autor, 1967
    (2) ANDRADE, Carlos Drummond de; ANDRADE, Mário. “Carlos e Mário: correspondência entre Carlos Drummond de Andrade (inédita) e Mário de Andrade”. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002, carta de 1/8/1926, p.232
    (3) ABAGNANO, Nicola. “Dicionário de filosofia”. 5.ed. rev. amp. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.864
    (4) MAIAKOVISKI, Vladimir. “E então, que quereis?” (1927). In:_______. “Antologia poética”. Est. bio. trad. Emílio C. Guerra. 6. Ed. São Paulo: Max Limonad, 1987, p. 185 (Série Literatura, 3)

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