A ética do silêncio na era Bolsonaro

A ética do silêncio na era Bolsonaro
Bolsonaro deu aplicabilidade institucional e profissional à ética do silêncio (Foto: Marcos Corrêa/Fotos Públicas)

 

A era Bolsonaro escancarou a mais perigosa face da ética do silêncio no Brasil. Temos uma história social e institucional em que a constatação de condutas que ferem a universalidade dos pactos são invisibilizadas por quem está em posição de denunciá-las. Tradicionalmente, essa indulgência era costurada por refinadas estratégias de cooptação ou chantagem, mas a ação antiética carecia de blindagens contra exposições excessivas para que o sistema de faltas pudesse prosperar como que às escondidas. A era Bolsonaro deu ensejo para que o antiético se tornasse orgulhoso de si. O sistema adquiriu novos atores e novas práticas que, em vez de apregoar a ocultação do cometimento de falta, sofisticaram-no e o engrinaldaram – o escárnio como cartão de visita.

Em que consiste essa ética do silêncio? A sua premissa fundamental é a da imperturbabilidade como virtude: não diga o que eu faço para que, quando você o fizer, eu também me cale. É uma promessa de retribuição a um potencial alcaguete, hoje, pela falta que se espera que ele cometa amanhã. Um compadrio de infratores. A premissa se confunde com a censura ao dedo-duro, ao pelego, ao judas, ao sabotador – censura totalmente respaldável nos episódios em que o denunciante ou crítico busca vantagens que não alteram as assimetrias e injustiças que atravessam a sua própria experiência e a de quem é denunciado. Mas essa premissa não é orientada por um mérito. Ela apenas oferece o silêncio como celebração de um acordo horizontal entre atores/juízes e juízes/atores. Ora, é justamente essa falta de mérito da imperturbabilidade o que faz com que o erro e o crime sejam opções em pé de igualdade às condutas ilibadas e legais.

A ética do silêncio carrega ainda um apelo coercitivo semiexplícito: chamar alguém à moralidade seria sujeitar-se a uma retaliação consensuada do caso. Evita-se chamar a atenção da pessoa que joga lixo no passeio ou não recolhe os dejetos dos cães, do condutor que estaciona na vaga reservada, do vizinho que agride a esposa etc., e então se torna difícil denunciar o colega (professor) que não cumpre o programa de ensino, ou o colega (policial) que abusa das mulheres a quem conduz até a residência após terem sido vítimas de algum crime, ou o colega (médico) que aplica tratamentos clínicos arriscados sem eficácia comprovada. O episódio do desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha Siqueira, condenado por insultar um guarda civil municipal em Santos, trouxe à tona uma série de condutas que o perito em leis adotava e contra as quais nada era feito. A complacência com a falta em qualquer domínio das relações humanas no Brasil torna-se, assim, mais do que uma exceção, um sistema. Eis a ética do silêncio.

A era Bolsonaro tem modificado e aprofundado essa ética, agregando a ela sibilinos instrumentos de articulação. Das muitas incapacidades do presidente, uma das mais notáveis é a de produzir consensos e viabilizar parceiras. Ele é um homem de conflitos, que se veste e se alimenta deles. Quando candidato, conseguiu que, excitados pelo ódio e pela sanha antipetista, se aninhassem em sua figura, por identificação ou por interesse, agentes das forças armadas, das polícias, da imprensa, das igrejas, da classe médica, do setor empresarial, do poder judiciário e do segmento artístico e desportivo, só para citar alguns. Através do recrutamento para o conflito contra as esquerdas, Bolsonaro deu aplicabilidade institucional e profissional à ética do silêncio, provocando um clima de instabilidade permanente.

 

A principal contribuição do
presidente consiste em
tornar as faltas cometidas
por cada um dos agentes nas
profissões e nas instituições
um motivo de jactância.

 

 

Elas passaram a prescindir da indulgência ou da cumplicidade de quem as reconhece, sendo paulatinamente estimuladas como regra. E isso sem que o sistema de faltas ruísse. A crítica institucional a tais práticas é rapidamente podada pelas campanhas de descrédito propagada por correntes nas redes sociais ou pelas ameaças à liberdade ou à prosperidade de que gozam os possíveis delatores em seus respectivos estamentos. Não seria preciso dar exemplos, mas o farei.

Membros das Forças Armadas no governo participam ou são cúmplices de crimes contra a constituição protagonizados pelo presidente, e eles prevaricam, silenciando-se ou relativizando a gravidade dos fatos. Repetem truísmos como o da missão de defender a constituição, mas, na prática, permitem que membros – da ativa e da reserva – declinem de parte das tarefas que deveriam cumprir. A nota que o senhor Augusto Heleno dirigiu ao STF em maio de 2020, apoiada por segmentos das Forças Armadas, é um exemplo.

A imprensa profissional assiste à desinformação massiva e criminosa praticada por rádios e TVs do eixo Sul-Sudeste conhecidas de todos. Contenta-se em criticar pontualmente certos youtubers e blogueiros, e as operações do gabinete do ódio, como para mostrar algum serviço nesse campo; quando o mais importante trabalho seria revelar como certa imprensa profissional, em busca de visualizações no Youtube, está respaldando e conferindo selo de verdade a correntes de Whatsapp que repercutem as maiores indignidades – como as que induzem idosos a recusar a vacina. As empresas de telecomunicação e os setores de informação precisam deixar claro os custos que os profissionais da área haverão de arcar manchando os seus currículos por integrar equipes que propagam fake news.

Os pastores evangélicos de igrejas de alcance médio e pequeno, que somam a maioria dos líderes religiosos do segmento, ainda não formaram uma frente, uma congregação, um conselho capaz de criticar o grande pastorado que está diretamente associado a Bolsonaro. Ao contrário, calam-se diante dos abusos e das imoralidades que cometem pastores donos de TV e de canais prósperos no YouTube – o Jóquei Club do pastorado –, bem como das absurdas narrativas de acobertamento que ilibam os bolsonaristas aos olhos das massas.

Os conselhos estaduais e regionais de medicina assistem, passivamente, em sua maioria, ao escárnio dos médicos que receitam medicamento para tratamento precoce da Covid-19, ocultando a responsabilidade social da profissão na parcimônia do silêncio, como se mais valesse o compromisso da imperturbabilidade do que o da ciência e da vida. O que fazer com esses médicos que, em nome da popularidade que adquirem fazendo fotos com Bolsonaro e referendando suas irresponsabilidades, traem o juramento de Hipócrates?

O empresariado não toma qualquer providência contra a FIESP e contra os empresários que promovem o caos, sequer ao menos manifestando desprezo aos que desdenham das mortes fabricadas pela pandemia. E os políticos que representam o empresariado, como os do partido Novo, mal conseguem atenuar o flerte de um de seus principais quadros, o governador de Minas, com a agenda bolsonarista.

O judiciário e o Ministério Público escondem-se diante da desordem inflamada por bolsonaristas em seus domínios institucionais. Prostram-se como quem não sabe o que fazer face o opróbrio.

Em suma, corporativistas, oligarcas, plutocratas seguem sendo o que sempre foram: na hora de construir o seu quinhão, desmoronam o todo. Agora, mesmo insatisfeitos e acometidos pelo senso de que há algo errado, atuam com venalidade. A ética de que falo promove o silenciamento do que precisa ser reparado e corrigido com os ecos dos erros barulhentos propagados como que aos festejos.

Há quem promova as lives em que o presidente insulta críticos e mente sem pudor. Há quem relativize as suas imoralidades e crimes. Há quem lecione em rede social sobre como burlar as orientações de uso de máscara em shoppings. Há quem faça chacota do colapso na saúde. Essas condutas adquirem ares de recomendáveis quando não são contrariadas e combatidas por quem está em posição de fazê-lo, a saber, os pares e os colegas. A crítica ao presidente não basta. É necessário que ela seja umbilicalmente ligada à crítica institucional e ao repúdio às condutas de cumplicidade de nossos colegas em cada domínio profissional, quer do setor público, quer do privado.

Vamos assistir à apoteose bolsonarista da ética do silêncio ou vamos começar o trabalho de apontar os erros entre os nossos?

Tiago Medeiros é doutor em Filosofia pela UFBA. Professor do Instituto Federal da Bahia. Membro do Laboratório de Estudos Brasil Profundo (IFBA) e do GT Poética Pragmática (UFBA).


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