O engodo do “tratamento precoce” e a arte da propaganda

O engodo do “tratamento precoce” e a arte da propaganda
No Brasil, pode-se ter a ideia mais estúpida e sem sentido, que haverá sempre um "doutor" a defendê-la (Foto: Marcos Corrêa)

 

De uns tempos para cá, o bolsonarismo vem trocando a propaganda de falsos medicamentos para a Covid-19 no varejo por um único rótulo, o tal “tratamento precoce”. Até então, era uma lista de drogas de fazer inveja a esses hipocondríacos que vivem de se automedicar e medicar os outros, prescrevendo remédios aleatoriamente: este aqui é contra um tipo de câncer, mas faz a pele ficar vistosa que só vendo; este outro é para pressão alta, mas pode tomar para disenteria e para esse inchaço no tornozelo que se não fizer bem, mal também não há de fazer. 

Tudo começou quando a narrativa de que a Covid era, no máximo, uma gripezinha, foi invalidada pelos mortos que se empilhavam e precisou ser substituída por outra história que permitisse ao governo continuar a fazer nada a respeito da pandemia. Foi aí que começaram a prescrever medicamentos como se fossem balconistas de farmácias do interior mais remoto. Remédio de malária, de verme e até de piolho, sem contar alguns antibióticos, que logo entraram na cesta, começaram a ser apresentados, reiteradamente, como a cura óbvia e barata que só os dois males que teriam infectado o mundo nos dias que correm, o comunismo e o globalismo, impedem que sejam usados para resolver de vez essa doença. Que, como se sabe, teria sido inventada pelo imperialismo chinês e propagada pela esquerda mundial. 

Quando os nomes das drogas começaram a ser alvos específicos de campanhas mundiais de esclarecimento, e até de intervenções das empresas de plataformas, alguém teve a ideia de juntar tudo num rótulo sem indicação de princípio ativo, e de composição aberta, para uso e abuso de quem o prescrevesse. É assim que nascem os “kits-covid” e o “tratamento precoce” como partes de uma narrativa que não apenas mente ao oferecer uma cura inexistente para uma doença contagiosa e gravíssima, como nega a necessidade de uma vacina, que é a urgência das urgências para o resto da humanidade não contaminada pelo bolsotrumpismo.   

Do ponto de vista da propaganda, contudo, “tratamento precoce” foi uma sacada genial. É um engodo, claro, pois comprovadamente nada trata, mas dá a impressão de que se encontrou a cura da doença, que ela é simples, e que é tudo questão de usar os medicamentos o mais rapidamente possível. O embuste começa pela ideia de chamar de “tratamento precoce”, expressão que vem de campanhas para incentivar que as pessoas façam exames frequentes para a detecção, em fase inicial, de certas doenças que são fatais quando descobertas tardiamente, mas tratáveis quando as descobrimos ainda cedo. 

Para tratar uma doença grave em fase inicial, contudo, é preciso ter as drogas apropriadas e não se recorre aleatoriamente à prateleira da farmácia, mas aos cientistas. Aí está o ardil. O negócio é levar as pessoas a pensarem, primeiro, que estão sendo tratadas e não tomando placebos; segundo, que, melhor ainda, estão sendo tratadas quando a doença é ainda curável. Afinal, aprendemos que “tratamento precoce” é uma coisa boa, por que seria ruim neste caso?

Artimanhas e enganos

Quem inventou esse negócio de “tratamento precoce” não entende nada de vírus, mas compreende muito de psicologia social e de condução da massa por meio de propaganda. Em um país em que se toma antibióticos como se toma suco de laranja, a automedicação não iria ser desafiada justamente desta vez, quando ela é tão conveniente para o governo Bolsonaro e o movimento bolsonarista. E tanto faz que ela seja com remédio de vermes, tônicos, água santa, chá de folhas e cascas, homeopatia ou sangue de galinha preta, nós simplesmente adoramos curas aleatórias. Há, digamos assim, condições culturais favoráveis à prosperidade do “tratamento precoce” entre nós.

Além disso, a ideia de que existe uma coisa como um “tratamento precoce” é tranquilizante na angústia que nos aflige. “Não pressionem, não fiquem com raiva, não tenham medo, é só fazer tratamento precoce que tudo acaba bem”, diz o bolsonarismo, acalmando o rebanho.

O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de posse do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, no Palácio do Planalto.
Jair Bolsonaro exibe caixa de cloroquina, remédio comprovadamente ineficaz contra a covid-19, durante a posse de Eduardo Pazuello como ministro da Saúde (Foto: Marcelo Camargo)

Esta farsa tem uma vantagem enorme: ela engana facilmente os olhos. A doença é muito contagiosa, mas de letalidade relativamente baixa, de forma que veremos muitos doentes, mas quase todos se recuperam, principalmente porque a parte ainda lúcida da sociedade toma providências de isolamento social e cuidados sanitários. O fato é que atualmente de cada 100 doentes no Brasil, 97,6 se curam. Tipicamente. Fácil fantasiar, então, que “as minhas amigas que fizeram tratamento precoce se curaram”, como disse uma jornalista recentemente, porque a gente gosta de antibióticos, mas odeia estatística. A trapaça funciona bem entre nós justamente porque oferecemos tudo o que ela requer, tanto do lado das preferências por automedicação quanto da aversão à mais simples aritmética. 

Doutores na maracutaia

As autoridades científicas em geral, claro, não deram endosso ao engodo, justo por se tratar enganação e propaganda, e não de medicina.  Mas nem por isso faltaram militantes de jaleco branco a cooperar com o embuste. Médicos não são cientistas, médicos são pessoas com graduação em medicina e não estudiosos que fizeram doutorado e passam a sua vida em laboratório fazendo experimentos, escrevendo papers, produzindo ciência. Médicos têm capital social, respeito e distinção, e muitos deles os usam para se passar por autoridades científicas, que sabidamente não são, a fim de servir às suas ideologias. Médicos que endossam e prescrevem “tratamento precoce” não são cientistas, mas ativistas de uma causa, mesmo que uma causa anticientífica e, efetivamente, perigosa para os pacientes de quem eles juraram cuidar.  

Enquanto o isso, o silêncio do Conselho Federal de Medicina vai deixando de ser uma omissão cúmplice para se tornar uma participação em um conluio maligno. Justo ele, tão ativo nas campanhas que resultaram no fim do programa Mais Médicos

A ausência de constrangimentos à prescrição de falsos medicamentos e dos kits-covid chegou a tal ponto que o Ministério da Saúde mandou fazer um aplicativo programado para prescrever as drogas do “tratamento precoce”, não importando os dados lançados pelos pacientes. Se os médicos já se portavam como robôs da sua causa política, por que não automatizar logo todo o processo e cortar os intermediários? Só depois de fartas denúncias de especialistas, o aplicativo foi retirado do ar e, então, o CFM emitiu uma nota dizendo que assim, sem médico, já era demais. Ah, tá.  

No país faz muito tempo que é assim. Pode-se ter a ideia mais estúpida e sem sentido, que haverá sempre um “doutor” a defendê-la, desde que tal ideia seja de direita, elitista ou conservadora, uma vez que algum demiurgo cósmico, por alguma razão que me escapa, decidiu que haveria mais direitistas, elitistas e conservadores na classe médica do que em qualquer outro grupo profissional do Brasil. 

Quem a este ponto ainda se choca com a quantidade de médicos prescrevendo o tal “tratamento precoce”, desprezado pela comunidade científica e ridicularizado pela opinião pública mundo afora, ou superestima o discernimento político e humanitário de boa parte dos médicos brasileiros ou subestima o que o fanatismo político pode fazer mesmo com pessoas escolarizadas. 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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