Garoto enxaqueca
(Foto: Catherine Opie)
A transexualidade é um tema tão antigo quanto a história da humanidade. Eunucos, castrati, ladyboys e travestis estão presentes no mundo real tanto quanto lendas de guerreiros e guerreiras que assumiram outro gênero para sobreviver a guerras (da armênia Zulvísia à chinesa Hua Mulan e o Diadorim de Guimarães Rosa). Entretanto, foi só nos últimos anos que a condição começou a se afastar do tabu e passou a ser discutida abertamente, inclusive deixando de ser considerada distúrbio mental pela OMS, em 2019. No Brasil, convivemos há décadas com personalidades como Roberta Close e Rogéria, mas a transexualidade masculina se tornou mais conhecida mais recentemente, principalmente por Thammy Miranda, filho da cantora Gretchen.
A atriz Ellen Page tornou-se conhecida do grande público por seu papel em Juno, filme de Jason Reitman, de 2007, que lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Antes disso, ela já havia estrelado filmes indies de terror e suspense, como os ótimos Meninamá.com e Um crime americano. Seu estilo de atuação naturalista sempre lhe conferiu verossimilhança, apesar de aparentar pouca versatilidade: ela parecia interpretar sempre Ellen Page.
E isso faz mais sentido agora, que lemos sua biografia, Pageboy, recém-lançada no Brasil pela Intrínseca. Ellen Page era uma personagem de Elliot Page, homem trans que levou trinta e três anos para entender sua condição, e que narra seu processo de descoberta no livro.
O título e a foto de capa remetem a um pornô gay de twinks (jovens de aparência delicada e imberbe) e faz sentido pelo conteúdo do miolo. O livro é um apanhado de lembranças de namoros e encontros sexuais, com homens e mulheres, que Page teve enquanto se reconhecia como lésbica e depois como homem trans. Intercalado com isso, fofocas de Hollywood, na maioria das vezes com nomes omitidos – nos fazendo questionar, por exemplo, quem foi “um dos atores mais famosos do mundo” que, bêbado numa festa, disse “vou te foder para você entender que não é lésbica”, ou a famosa atriz no armário, que namorava Page enquanto mantinha um namoro hétero de fachada. Para além da fofoca, o livro oferece uma visão íntima interessante dos bastidores de Hollywood, os processos de gravação e promoção dos filmes. E é só.
A experiência pessoal de Page não parece iluminar muito sobre a condição transexual de forma mais ampla, principalmente porque ele reserva poucas páginas, no final do livro, para abordar questões mais concretas: como tratamentos hormonais e mamoplastia. Grande parte do livro é uma problematização pouco palpável – como Page se recusando a usar roupas femininas, mesmo ao interpretar mulheres; um drama pessoal que ele aparentemente não conseguia transmitir a quem estava ao seu redor e não consegue transmitir agora ao leitor.
Em termos literários, o livro é uma nulidade, e se a tradução de Arthur Ramos é cuidadosa em tratar Page sempre no masculino, peca na checagem de fatos e filmes (por exemplo, um “drinque batizado” é traduzido como “chave de fenda afiada”, porque não verificaram que o screwdriver do original se referia a vodca com laranja, não à ferramenta. Bastava assistir ao filme citado).
Como ativista dos direitos LGBTQIAPN+, Page chegou a entrevistar o então deputado Jair Bolsonaro, em 2016, para a revista Vice. A entrevista viralizada entra hoje naquela categoria discutível – de dar palco para maluco dançar. O livro não faz nenhuma menção a essa entrevista.
No final, o livro não satisfaz nem aos fofoqueiros e voyeurs, nem a quem quer mergulhar mais a fundo na questão transexual masculina. Nesse caso, as obras do psicólogo e ativista pioneiro João W. Nery têm muito mais a nos dizer.
Santiago Nazarian é escritor com mais de dez livros publicados.