Estante Cult | Kafka an-árquico
.
Franz Kafka (1883-1924) e Antonin Artaud (1896-1948) talvez sejam os homens das letras do século 20 cujas obras mal começaram a dizer a nós, habitantes do século 21, tudo aquilo sobre o qual se propuseram a falar, subvertendo a classificação de Italo Calvino e constituindo assim, cada um a seu modo, escritores anticlássicos absolutos.
Escrito em dezembro de 1920, o conto de Kafka “Sobre a questão das leis” (Zur Frage der Gesetze), incluído no volume Narrativas do espólio (Companhia das Letras, 2002), assim se inicia:
Em geral, nossas leis não são conhecidas. São segredos de um pequeno grupo aristocrático que nos governa. Ainda que estejamos convencidos de que essas leis ancestrais são observadas com exatidão, é um fato extremamente fortificante ser governado segundo leis que nos são desconhecidas.
(Trad. de Modesto Carone)
Seguem-se, então, num misto de ensaio e prosa narrativa, três breves páginas que irão tratar da ilegitimidade das leis (tema também presente em O processo e O castelo, por exemplo) e da impossibilidade de se acabar com a nobreza, que na narrativa desempenha o mesmo papel exercido pelos funcionários da burocracia do Estado que atravessam o mundo angustiado do escritor.
Segundo Modesto Carone, o estilo argumentativo do ficcionista mantém a reflexão até o fim, embora o foco narrativo, centrado desde o começo no pronome possessivo “nosso”, atenue o tom de abstração do que esteja sendo dito e atraia o leitor para a natureza subjetiva da narração.
É deste modo que a ironia se articula literariamente, pois a generalidade do assunto fica atrelada ao ponto de vista particular e comprometido, momento em que o narrador, porta-voz de uma comunidade, se torna mais personagem do que instrumento de relato. Os problemas da tradição, da crença, da democracia, da autodeterminação e da consciência radical passam pelo crivo de uma análise aplicada e sibilina, na qual acaba se impondo a sintaxe da frustração típica de Kafka.
Tomando como ponto de partida o referido conto de Kafka, o pesquisador italiano Marcello Tarì (que se autodenomina um investigador de “pés descalços”) apresenta ao leitor em O partido de Kafka (Sobinfluência Edições, 2022) uma instigante arqueologia da lei e do poder, apontando para o caráter ilusório das leis como entidades ou coisas. Escrito entre 2018 e 2019, o artigo Il partito di Kafka foi publicado originalmente em 2020 na revista Pólemos: materiali di filosofia e critica sociale, editada pelo Departamento de Filosofia da Universidade La Sapienza de Roma, integrando um dossiê dedicado ao pensamento de Giorgio Agamben, intitulado Il gesto che resta. Agamben contemporaneo, editado por Valeria Bonacci e Flavio Luzi.
O autor afirma que Kafka é um dos grandes comunistas de todos os tempos, embora o tradutor do texto para o português e autor do alentado prefácio da obra — o professor de Filosofia do Direito da UFMG Anditya Matos — advirta o leitor para o fato de Kafka ser também um dos mais importantes pensadores da an-arquia, uma vez que identifica o vazio da máquina do poder e denuncia sua principal estratégia, isto é, a criação de leis que por meio da violência separam, de um lado, o povo e, de outro, a nobreza.
Defende Marcello Tarì:
Nenhum poder em exercício nunca teve medo da ilegalidade em si, aquilo que o preocupa de verdade é quando intui que há algo que começa a transcender a polaridade leis-ilegalidade. E a única coisa que pode operar tal transcendência são as formas-de-vida que se tecem em novos territórios e que começam apenas quando o campo das leis for desativado. Se o fora da lei para os nobres é a ilegalidade, para o povo é o ingovernável.
Especializado na história de seu país na década de 1970, Tarì vive entre a França e a Itália, onde fundou a revista Qui i Ora [Aqui e Agora]. Outros dois livros do autor publicados no Brasil são Um piano nas barricadas: por uma história da Autonomia, Itália, 1970 (GLAC edições/n – 1 edições, 2019) e 20 teses sobre a subversão da metrópole (Sobinfluência Edições, 2022).
ESTANTE CULT | NOTAS
Paulo Henrique Pompermaier
“Para que poetas em épocas como esta? Qual a utilidade da poesia?”, lemos nas primeiras linhas de “Poesia como arte insurgente”, poema que integra o livro homônimo (2023, editora 34) junto aos textos “O que é poesia?”, “Manifesto populista #1”, “Manifesto populista #2” e “Poesia moderna é prosa”, do norte-americano Lawrence Ferlinghetti (1919-2021). Icônico fundador da City Lights, livraria e editora responsável pela publicação dos beatniks e do modernismo estadunidense, representados por autores como Frank O’hara, William Carlos Williams e Allen Ginsberg, Ferlinghetti desdobra a questão em todos os textos do livro, afirmando a poesia como a dissonância, o dissenso no seio da sociedade liberal. Fermentação sensual e erótica das palavras, “a poesia desconstrói o poder” e inaugura diferentes sensibilidades e corporeidades, produz rotas alternativas aos corpos maquínicos e às mentes planificadas que seguem o ritmo industrial. Por isso, “É uma corda para nos salvar num rumoroso mar sem margens” — o que implica a dimensão social e existencial da poesia. Como escreve Ferlinghetti, poesia é a inteligência lírica aplicada às variedades da experiência humana.
No prefácio à edição brasileira, o tradutor Fabiano Calixto ressalta que a afirmação política do poeta com sua “lírica de combate” perpassa o próprio projeto poético de Poesia como arte insurgente, no qual o escritor figura como “o agenciador da linguagem que escreve os futuros possíveis apagados pelo capitalismo neoliberal”. Intrincados à sua dicção de manifesto, os poemas também firmam uma espécie de ars poetica de Ferlinghetti — referida pelo autor, de forma irreverente, como arse poetica, “bunda poética” —, ao longo da qual fervilham os temas candentes e as formas indizíveis que o poeta deve perseguir, assim como os autores influentes para sua poética (Edgar Allan Poe, Walt Whitman, Arthur Rimbaud, Emily Dickinson, Vladimir Maiakovski etc.). Publicado originalmente em 2007, Poesia como arte insurgente devolve à poesia sua dimensão urgente e dissidente. Afinal, em versos que não deixam esquecer nosso Oswald de Andrade, “O poeta é um bárbaro subversivo nos portões da cidade, desafiando pacificamente o tóxico status quo”.
Após o impressionante O ato de respirar, longo poema do escritor congolês Sony Labou Tansi publicado em 2021 pela editora Cultura e Barbárie, a mesma casa editorial felicita o leitor brasileiro com a segunda tradução de Labou Tansi por aqui: Tinta, suor, saliva e sangue, reunião de textos críticos, cartas, prefácios, notas, conferências e entrevistas publicadas na imprensa francesa e africana, em revistas especializadas e em livros entre 1973 e 1995, ano de sua morte. Se O ato de respirar, escrito na cadência de uma respiração entrecortada, disparada para diferentes direções, envencilha a liberdade “no próprio corpo da linguagem”, para retomar as palavras de Gaston Bachelard em A poética do espaço, Tinta, suor, saliva e sangue chega ao mesmo intento com uma prosa que, disfarçada de teoria, também se faz poesia no difícil, mas corajoso, ato de nomear.
Se também lembrarmos a assertiva do poeta de que “responsabilizar a arte para além de seu estado de fala é assassiná-la”, não importando o gênero textual, “mas as coisas que temos a dizer”, percebemos como, sob o subtítulo “textos críticos”, Tinta, suor, saliva e sangue — o que, ademais, esperar de tal título venífluo? — escorre e mistura arte e corpo, escrita e excreção. Como em “Empresto as minhas artérias ao verbo”, breve e belo texto sobre escrever que, para Sony, é uma ação fundamentada na própria pulsação da vida: “Ninguém pode emprestar as suas veias e artérias aos outros. Eu empresto as minhas à palavra. Empresto a minha boca a todos aqueles que, um dia, podem perder a vida”. Outros temas do livro são a influência de Aimé Césaire no teatro africano, a poética do escritor congolês Tchicaya U Tam’si, comentários sobre seu romance Les yeux du volcan (1988) e sua peça La Parenthèse de sang (1981), além de cartas escritas enquanto foi ministro do Congo. A recém-lançada edição brasileira também acompanha o livreto Sony Labou Tansi: fazer amor com a língua em que se foi estuprado, do cineasta Jean-Christophe Goddard.
O espaço é Havana, Cuba, e o tempo narrativo resume-se aos 46 minutos que dura a execução da Sinfonia Eroica de Beethoven em um teatro cubano. O ano é 1933 e Cuba enfrenta os conflitos e tensões advindos da queda do ditador Gerardo Machado. Ao enquadramento aparentemente simples da novela O cerco, do escritor cubano Alejo Carpentier, corresponde um emaranhado de referências, de insinuações e de vozes, que se misturam para falar de seus protagonistas que, a um só tempo, também mimetizam as contrações políticas e sociais de seu país. Por isso, se o cerco é literal no texto, quando um militante refugia-se no referido teatro e é cercado pelos seus antigos companheiros, agora algozes e captores, também é figurado, pois o fim do governo Machado (1929-1933) lança o país em um momento de turbulência política e leva seus atores sociais a tomarem consciência da realidade que os cerca.
Publicado originalmente em 1956, O cerco utiliza expedientes característicos da prosa de Carpentier, como a polifonia de vozes e certa infiltração do fantástico na narrativa, para falar das mudanças em Cuba, no mundo e na própria identidade de seus protagonistas. Como escreve Milton Hatoum na quarta-capa da edição brasileira, “Havana, com seus esplendores e misérias, é metáfora de um palco em que o fracasso, a solidão e a culpa dos protagonistas encenam mais uma tragédia do Teatro do Mundo”.