Estante Cult | O sol em toda a sua glória
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O livro Van Gogh: mutilado e suicidado, recém-publicado pela editora 100/cabeças, mereceria duas resenhas à parte. Isso porque compila dois textos muito instigantes que giram em torno do mesmo tema – a obra do pintor holandês e sua trajetória precipitada no suicídio em julho de 1890 –, mas o abordam de modos bastante distintos.
“Van Gogh o suicidado pela sociedade”, um dos últimos escritos de Antonin Artaud, publicado em dezembro de 1947, três meses antes de sua morte, é uma mistura de ensaio autobiográfico, poesia e apreciação estética, em que às descrições rutilantes dos quadros do artista subjaz uma crítica mordaz à “humanidade feita de macaco covarde e de cachorro molhado”, que insiste em suicidar os gênios que professam o inominável e desvelam um real à revelia da ordem social.
Ao mesmo tempo, o ensaio é atravessado pela própria vida de Artaud e seus reflexos na biografia do pintor. Os nove anos de internação asilar, a lembrança das massas odiosas a atacar sua obra e de pusilânimes psiquiatras que não cessam de repetir “Isso é um delírio, senhor Artaud”, entre um eletrochoque e outro, pontuam o texto em diferentes passagens. Para um dramaturgo que tanto pensou nos duplos em sua concepção teatral e poética, não surpreende esse espelhamento entre ambas as biografias, sendo Van Gogh, tal como retratado por Artaud, uma espécie de “pintor da peste”, aquele com a força de sublevação social da “fome, epidemia, erupção vulcânica, tremor de terra”.
O segundo texto do livro, “A mutilação sacrificial e a orelha cortada de Van Gogh”, publicado por Georges Bataille em 1930 na revista Documents, tem um caráter mais teórico e abunda em referências psicanalíticas e antropológicas. A partir de algumas descrições de pacientes psiquiátricos que se mutilaram, o escritor pensa no significado do sacrifício em diferentes sociedades, em sua interpretação contemporânea e na relação da obsessão de Van Gogh pelo sol com o suicídio. Para estabelecer tal conexão, Bataille reflete sobre os diversos quadros de sóis e girassóis do pintor nos períodos de crise e traça um aporte dialógico entre o impotente girassol murcho e o ideal esmagador da estrela solar.
Apesar de abordarem o assunto de formas bastante distintas, Artaud e Bataille se aproximam ao ponderar como os astros e o cosmos influem na produção pictórica do holandês. O primeiro, apesar de não se deter especificamente sobre o sol, constantemente aproxima o gênio do artista a um acontecimento supra-humano, sideral. De sua pintura, vê “jorrar uma força giratória”, duplo da própria rotação terrestre, que põe em cena a “secular trituração de elementos”, agita o “grande címbalo” celeste em um movimento que reinaugura a Terra, encimada por um sol que anuncia seu apocalipse.
É desse ritmo sísmico que ele vê despontar a genialidade do pintor suicidado. Pois, tal como o teatro da peste, sua produção pictórica produziu abalos na superfície social, despiu “a nu o corpo do homem, fora dos subterfúgios do espírito”, em um deslocamento que baralha a fixação do sujeito e do objeto – de modo que ele, ao contrário do que ditaria o bom senso, “restituiu a água da pintura à natureza” – e lança a humanidade à existência sem os contornos aos quais tanto nos acomodamos, pois ele faz “com que os objetos sejam outros”, ousa “arriscar o pecado do outro”.
E é por esse pecado, revelador da vida como choque, “acotovelamento natural das forças que compõem a realidade”, que Van Gogh é levado ao suicídio pela sociedade, na hipótese artaudiana. Em uma primeira leitura, suspeitamos da “magia cívica” de “espíritos perversos” que, para o dramaturgo, gestaram a morte do artista de dentro de sua própria subjetividade pela força de uma “má consciência coletiva”. No entanto, tais feitiços modernos não estão a falar diretamente à nossa contemporaneidade e suas ondas de linchamentos e justiçamentos populares, quando um sujeito é execrado coletivamente por ser nocivo ao social? “É da lógica anatômica do homem moderno nunca ter podido viver, nem pensado em viver, a não ser como possuído”, escreve Artaud. Não cessamos de assistir a variadas formas de possessão, pelo capital, pela moral, pela família, pelas chicanas da política…
No texto de Bataille, a obsessão solar identificada em Van Gogh também é o caminho do “pecado do outro” proposto por Artaud. A fixação pelo “sol em toda a sua glória”, expressão que o pintor emprega em carta ao seu irmão Theo, indicia a “heterogeneidade irredutível dos elementos dilacerados (e desenfreados) da personalidade de Vincent Van Gogh”. A mutilação de sua orelha corresponderia, então, às relações sacrificiais estabelecidas pelo homem que, em sua imperfeição, tenta se assemelhar a um ideal (a deidade solar).
Após algumas apreciações de caráter psicológico e de um percurso antropológico da mutilação sacrificial em diferentes partes do globo, Bataille retorna a Van Gogh para pensar na “heterogeneidade irredutível” desse ato: “a projeção fora de si de uma parte de si mesmo” que rompe com a “homogeneidade pessoal”. Nesse ponto, o artista holandês figura como a águia do mito de Prometeu: dilacera o órgão, devora-o e o vomita, em uma operação de contrários (comer para vomitar, mutilar para alterar) que o lança a mais potente liberdade: “livre para se lançar subitamente para fora de si”. Nesse movimento, ele vai além do concebível, abusa de sua liberdade conquistada a golpes de cutelo ao remeter sua orelha mutilada para um prostíbulo, “lugar que mais repugna a boa sociedade”. O conflito, já observado, entre o artista e seu meio social é, assim, reafirmado pelo autor de A história do olho: trata-se de uma cusparada “na cara de todos aqueles que conservam da vida que receberam a ideia sublime, oficial, que conhecemos”.
Ocupando as páginas de uma mesma edição, separados por um conjunto de reproduções de pinturas de Van Gogh, os dois textos dialogam em suas contrariedades. Em Artaud, o fragmentário, poético, disruptivo, como a mimetizar o traçado não linear do objeto de seus escritos; em Bataille, uma análise antropológica e psicológica para apreender um assunto que atravessa a história. Antitéticos, circundam a vida e a obra de um autor, ele mesmo, mergulhado nas contradições: “Desconfie das belas paisagens de Van Gogh turbulentas e pacíficas,/ convulsionadas e apaziguadas./ É a saúde entre duas recaídas da febre ardente que vai passar./ É a febre entre duas recaídas de uma insurreição de boa saúde”. Do contraditório, a potência de sua obra: “Um dia a pintura de Van Gogh armada e febril e com boa saúde,/ retornará para lançar na atmosfera a poeira de um mundo enjaulado que o seu coração já não podia suportar”.
Para além das possessões modernas, a arte pode ainda assim se afirmar como alicerce da existência. Afinal, registra Artaud, “quanto à vida, é no gênio do artista que a humanidade tem o costume de ir buscá-la”.
ESTANTE CULT | NOTAS
Welington Andrade
Batismo é o nome tanto da série que o fotógrafo Gleeson Paulino apresentou em sua primeira exposição individual, realizada em 2022 em São Paulo, como do livro que a Alto Editora faz chegar agora às mãos do leitor brasileiro. O trabalho reúne 29 imagens flagradas pelo artista em ambientes selvagens do Mato Grosso, Amazonas, Pará, Goiás, Pernambuco, Bahia e São Paulo (Ilha Bela), nos quais a natureza, quando não ocupa todo o plano, faz os corpos humanos inseridos na paisagem mergulharem, direta ou indiretamente, em uma atmosfera de indelével ancestralidade. Espraiados ao longo das páginas, textos assinados pelo autor em parceria com Gabriela Naigeborin evocam as memórias de infância do fotógrafo, que nasceu em 1988 em Eldorado (MS), cresceu em Campo Grande e iniciou sua carreira ainda muito jovem em Londres. Gleeson Paulino obteve importantes premiações na Itália, Eslovênia, Holanda e França. Como afirma, na apresentação da obra, Michel King, presidente da Société Nacionale des Beaux Arts, na França (que lhe conferiu em 2022 duas medalhas de ouro): “O artista é aquele que vê e oferece a visão das ressonâncias secretas do mundo visível”. Vale observar que, além dos poemas, os demais textos do livro são vertidos para o inglês e o francês.
“Falar de mulher favelada é falar de mulher negra, é falar de mulher indígena, é falar de mulher migrante e do que representa social e racialmente o eixo Norte-Nordeste em relação ao eixo Sul-Sudeste; por isso é também falar de profissões historicamente subalternizadas, é falar de ridicularização midiática, é falar de fome e miséria, é falar de violência letal institucionalizada”. Com tais palavras contundentes e precisas, Andreza Jorge introduz o leitor à temática de Feminismos favelados: uma experiência no Complexo da Maré, um pequeno livro imenso em sua capacidade de radiografar um Brasil que aos poucos vai saindo da invisibilidade e reivindicando inúmeros direitos, inclusive o da existência não objetificada. A autora atua há mais de quinze anos em projetos sociais voltados para os temas de gênero, relações étnico-raciais, diversidade e sexualidade, localizados no Complexo da Maré. A obra alia um consistente repertório conceitual à análise empírica do projeto de dança Mulheres ao Vento, da qual Andreza é cofundadora, reivindicando a inclusão de pautas e vivências faveladas na agenda do feminismo.
Treze anos após a publicação de A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, o líder indígena Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert – há quase cinquenta anos trabalhando em estreita colaboração – lançam O espírito da floresta, uma reunião de textos escritos para diversas exposições realizadas em Paris pela Fundação Cartier. A coletânea apresenta ao leitor um amplo conjunto de diálogos e reflexões que, tomando por base o saber xamânico dos Yanomami, evoca, sob diversas angulações, as imagens e os sons da floresta, a complexidade de sua biodiversidade e as dramáticas consequências de sua destruição. Conforme afirma o filósofo italiano Emanuele Coccia no prefácio da obra, “não se trata simplesmente de opor a uma ecologia europeia um saber local amazônico sobre o cuidado com a natureza. Também não se trata (ou não simplesmente) de reivindicar a anterioridade histórica da cultura yanomami sobre a ocidental. O que se esboça nessa linhas é mais a ideia de que os verdadeiros sábios são menos os Yanomami do que os espíritos da floresta, os xapiri pë”. O que mais essa obra fundamental nos mostra é que toda consciência de si é verdadeiramente xamânica.
Em Maneiras de ser. Animais, plantas, máquinas: a busca por uma inteligência planetária, o escritor, jornalista e artista visual britânico James Bridle defende a ideia de que vivemos uma crise de imaginação, que de certo modo engloba todas as demais crises da contemporaneidade. Se em seu livro anterior lançado no Brasil, A nova idade das trevas: a tecnologia e o fim do futuro (2019), o autor investigava a sujeição total do homem contemporâneo à tirania da técnica, vendida somente como um serviço facilitador da vida no dia a dia, nesta sua nova obra ele amplia sua abordagem e trata das diversas formas não humanas de ser, existir e produzir inteligência. “O inimigo não é a tecnologia em si, mas a desigualdade e a centralização do poder e do conhecimento […] a resposta a essas ameaças são a educação, a diversidade e a justiça. Não precisamos de Inteligência Artificial para perceber isso. Precisamos de inteligência propriamente dita. O mais importante, porém, é que precisamos de todas as inteligências propriamente ditas – de cada pessoa, animal, planta e inseto; de cada criatura, cada pedra, cada sistema natural e artificial”, conclui o autor, evocando o potencial colaborativo de todas as coisas e seres.