Estante Cult | “Poucas vezes, como hoje, a alienação do homem pelas forças do capital esteve tão presente”
(Foto: Marcos Santos/USP)
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Quando Japa e Rodriguez se encontram na Praça da República, comentando o abandono e a decadência do centro de São Paulo, tomamo-os por dois antigos companheiros de militância da Aliança Libertadora Nacional (ALN) que, após o fim da Ditadura Militar, seguiram suas vidas separadamente. Logo, no entanto, o leitor percebe o malogro: ambos foram mortos sob tortura no princípio da década de 1970 e vivem como aparições no presente pelo fato de seus corpos nunca terem sido encontrados.
Esse é o mote narrativo de O congresso dos desaparecidos, novo romance de Bernardo Kucinski. Após refletirem sobre os tempos de militância e a condição dos mortos políticos durante a Ditadura, os dois personagens têm a ideia de organizar o primeiro Encontro Nacional dos Desaparecidos Políticos, a ser realizado no dia 1º de maio na Catedral da Sé. Ali, os verdadeiros “patriotas do Brasil”, da guerrilha do Araguaia às ações da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), se encontrariam para, enfim, fazer presente o Brasil de quem nunca mais apareceu.
Em entrevista à Cult, Kucinski, que estreou na literatura em 2011 com K. – Relato de uma busca, comenta alguns aspectos de sua obra, fala de sua relação com o atual momento político brasileiro e discute a arte como forma de construir memória e outros mundos possíveis. Leia abaixo na íntegra:
Em seus livros de ficção, seja na forma do conto ou do romance, a vida política brasileira está muito presente, em especial o momento da Ditadura Militar. Como o senhor percebe a função da literatura em relação ao engajamento social e político?
Literatura é arte e a arte comove, ao passo que o argumento racional pode até convencer, mas dificilmente comove. Por mexer com sentimentos e não apenas com a razão, a arte tem sido tão importante em todos os tempos na conscientização e na mobilização das pessoas contra os desvarios e maldades da humanidade.
Os personagens de seu O congresso dos desaparecidos têm a ideia de fazer um encontro dos desaparecidos políticos ao perceberem a atual guinada fascista da sociedade brasileira. Como a arte e a memória podem se contrapor ao fascismo?
Penso que, como fenômeno mental, o fascismo pode ser pensado como um anseio raivoso pela volta de um passado que teria sido melhor do que o presente, seja um passado de glorias imperiais perdidas, como foi o fascismo italiano, seja um passado de privilégios destruídos por uma crise econômica, como ocorreu com a classe média brasileira. De um modo ou de outro, o fascismo mistifica e mitifica o passado. Daí a importância da memória, seja através da arte ou de políticas pública, que, ao contrário, desmistifica e problematiza esse passado, em especial quando recorda seus horrores.
O senhor pensa que o cenário político melhorou com o governo Lula? Há uma tendência de recuo do extremismo político observado nos últimos anos?
Penso que vivemos uma fase de grandes transformações que perpassam e ultrapassam o governo do dia, seja ele o governo Lula ou outro. Ainda não sabemos o sentido de algumas dessas transformações. Dito isso, penso que a vitória de Lula, embora apertada, nos tirou de um verdadeiro sufoco. Ao mesmo tempo, e independente da vitória de Lula, florescem movimentos identitários com grande poder de mobilização . Testemunhamos um novo salto de qualidade na luta das mulheres contra a opressão de gênero e avanços igualmente importantes na luta contra todas as formas de discriminação. Talvez o extremismo político tenha caído em si e está na defensiva, ou numa correção de rumo. Porém, o pensamento conservador e, mais do que isso, reacionário e até intolerante conta com bases sociais amplas.Veio para ficar um bom tempo.
Ainda no seu novo livro, há um momento em que se afirma que “a essência do desaparecimento está na negação de tudo”. Poderíamos ver essa “máquina desaparecedora”, a própria “negação de tudo” como motor da produção política brasileira?
São metáforas que devemos aplicar com algum cuidado. Talvez se possa dizer que eventos como o vandalismo do 8 de janeiro em Brasília, os surtos de agressão em escolas e outros episódios de violência animalesca e gratuita, que vêm se multiplicando, refletem um tipo de negacionismo, porque negam a essência da condição humana como distinta da condição animal.
“Um povo que esquece seus desaparecidos está condenado a um futuro de mais desaparecidos”, lemos em certa altura do romance. A partir disso, podemos pensar a literatura e a arte como monumentos, construção de futuros outros que não de desaparecidos?
Como leitor e como pessoa penso que sim, que se poderia ver uma obra de arte como uma espécie de oferenda às deusas do destino por um futuro melhor,no nosso caso, um futuro sem desaparecimentos forçados. Como autor, penso que as obras de arte surgem de uma impulso interior do artista, de suas intuições e anseios, na maioria das vezes sem objetivos claros ou predeterminados.
Também se discute no livro as contradições entre uma prática política que fica na ideologia e as condições para ela se tornar práxis. Como o senhor percebe, hoje em dia, esse deslocamento entre o pensamento teórico e a ação na militância de esquerda?
Essa é uma questão difícil. Minha impressão é de que vivemos uma dissintonia completa, quase que um caos ideológico. As próprias categorias, esquerda, direta, ou o proletariado da ortodoxia marxista mal se aplicam. Há todo um mundo novo à espreita, e um mundo assustador. E ao mesmo tempo, isso que é paradoxal, poucas vezes na história a ortodoxia marxista teve o poder explicativo que tem hoje, basta lembrar a famosa frase do manifesto comunista: tudo que é sólido se desmancha no ar. Poucas vezes, como hoje, a alienação do homem pelas forças do capital esteve tão presente e tão forte.
Como seu congresso dos desaparecidos se filia a outros congressos da tradição literária que também operam uma crítica política, como o Congresso internacional do medo de Drummond ou o Congresso do Mundo de Jorge Luis Borges?
Penso que pode haver algum parentesco formal com a narrativa de Borges dado que ambas são absurdas e inverossímeis. Talvez ambas se enquadrem no gênero do realismo mágico latino-americano que inclui Juan Rulfo e Garcia Márquez. Já com o poema de Drummond, as tangências são os sentimentos de tristeza profunda e da própria transitoriedade da vida.
ESTANTE CULT | NOTAS
Welington Andrade
O título de Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português já anuncia a proposta do mais recente livro do tradutor, ensaísta e professor curitibano Caetano W. Galindo. Entabulando uma longa conversa virtual com o leitor, em que o rigor das reflexões e a precisão das informações não concorrem o tom leve, descontraído e bem-humorado adotado do começo ao fim, o autor apresenta o itinerário de formação da língua portuguesa a partir de uma perspectiva sintética muito atraente, em que momento algum se transforma em exiguidade. Para além das informações apresentadas, há sempre um espesso conjunto de reflexões que levam o leitor a transitar da esfera da história da língua para a seara das políticas de ensino da língua, que ampliam de modo muito expressivo o nosso entendimento do que seja o português. Os capítulos que tratam, respectivamente, das contribuições das línguas indígenas e africanas – que ultrapassam o nível do mero empréstimo vocabular – à língua portuguesa por nós falada são especialmente reveladores da nossa falta de preparo para lidar com tema.
Representante da autoficção, um gênero em franca expansão no ambiente cultural mais amplo – seja no teatro, no cinema, no audiovisual e na literatura – Ioga, o mais novo romance de Emmanuel Carrère lançado no Brasil, atrai o leitor desde as páginas iniciais com seu misto de prosa memorialística, crônica histórica e experimento ensaístico. Nas primeiras linhas do romance já é possível saber que o projeto inicial do autor – “escrever um livrinho simpático e perspicaz sobre a ioga” – malogrou, sucedendo a isso rematadas catástrofes: o ataque do extremismo islâmico ao Charlie Hebdo, a depressão que o levou à internação em uma clínica psiquiátrica, a crise dos refugiados na Europa e a perda de seu editor. Apesar de seguir uma linearidade cronológica, a prosa de Carrère priva de um caráter randômico, pelo qual os assuntos variam de tema, de interesse e de ênfase ao sabor de uma mente em constante frenesi. “Sem querer me vangloriar, sou excepcionalmente dotado da capacidade de transformar em um verdadeiro inferno uma vida que teria tudo para ser feliz”, afirma o escritor cuja lucidez se deixa atravessar por intensidade, angústia e arrebatamento.
“Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável”. Com esse belo exercício de retórica afetiva e sentimental, começa Carta a D: História de um amor, na qual o filósofo austríaco naturalizado francês André Gorz não somente faz uma pungente declaração de amor a sua companheira da vida inteira, a inglesa Dorine, como também rememora os principais acontecimentos históricos vividos por eles na Europa após a Segunda Guerra Mundial, passando pelo Maio de 68 e a guerra das Malvinas até chegar ao início dos anos 2000. Ao retirar o livro da delicada caixa-envelope que o acomoda e começar a folheá-lo, o leitor entrará em contato com uma prosa absolutamente envolvente cuja grande marca é a da lucidez. Lucidez por meio da qual um dos principais pensadores franceses do pós-guerra passa a limpo do par amorosos e o ocaso de duas existências que se projetam e versos que se tornariam proféticos: “O mundo está vazio, não quero mais viver”.
Mestre de Dante Alighieri, o escritor e político Brunetto Latini (c.1220-1294) acabou por encontrar o mesmo destino de seu ilustre discípulo: o exílio de sua Florença natal por questões políticas. E também como ocorreu com Dante foi no período em que viveu exilado na França que ele começou a redigir A retórica, obra na qual traduziu e teceu minuciosos comentários sobre excertos escolhidos do De inventione, do filósofo Marco Túlio Cicero (106-43 a.C), a respeito da arte da retórica. “Com um objetivo puramente de divulgação, Brunetto o faz tendo em mente a concepção ciceroniana de que arte retórica será o instrumento responsável por manifestar aos homens – com equilíbrio, sensatez e beleza – o conhecimento dos sábios, único poder de organizar e harmonizar as sociedades”, afirma o tradutor Emanuel França de Brito na introdução desta edição, a primeira lançada no Brasil. Conhecer a Itália de Brunetto e de Dante – que o converteu em um dos personagens com quem Virgílio e ele mesmo conversam no canto XV do Inferno – é viajar à aurora da modernidade, quando a educação por meio da leitura atenta dos clássicos, sobretudo latinos, e das enciclopédias, começava a formar integralmente o cidadão e o livrava da tirania da superstição e da religiosidade mais estreita.