“O Reino e o Jardim”, de Agamben

“O Reino e o Jardim”, de Agamben
(Imagem: Detalhe do tríptico “Jardim das delícias terrenas”, de Hieronymus Bosch)

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O filósofo italiano Giorgio Agamben, em O Reino e o Jardim, toma a peito a feitura de uma genealogia do Reino e do Jardim, conforme conceitualizados na Bíblia, entre os primeiros padres da Igreja (com destaque para Agostinho) e entre pensadores medievais (com destaque para Escoto Erígena, Tomás de Aquino e Dante). A obra foi publicada na Itália pela primeira vez em 2019, publicado em 2022 pela n-1 edições com primorosa tradução para o português de Vinícius Nicastro Honesko e revisão técnica minha.

Complementarmente ao que fez em O Reino e a Glória, Agamben realiza em O Reino e o Jardim uma genealogia primordialmente do Jardim, que remete ao Éden ou ao Paraíso descrito no livro do Gênesis, em função da tese do autor de que “o Reino, com sua contraparte econômico-trinitária, jamais cessou de influenciar as formas e estruturas do poder profano”, ao passo que “o Jardim, apesar de sua constitutiva vocação política […], permaneceu substancialmente estranho a tal poder” (p. 10). Assim, Agamben estima que reconstruir as raízes edênicas do homem na cultura judaico-cristã guarda maior potência emancipatória do que reconstruir as fundações do poder teológico-político, embora também delas trate aqui.

De todo modo, desde o primeiro capítulo, intitulado “O jardim das delícias”, em que há uma análise do tríptico homônimo de Bosch (aliás, impresso em alta definição na capa do livro publicado pela n-1 edições, certamente uma das capas de livro mais belas do ano de 2022!), Agamben observa que o Jardim e o Reino fizeram as vezes um do outro, como no comentário de Fraenger à obra de Bosch, em que “O jardim das delícias terrenas” se torna “O Reino milenar” (Das tausendjährige Reich).

Agamben admite que o Jardim e o Reino “se entrelaçaram com tanta frequência e tão intimamente que é provável que uma pesquisa sobre seus cruzamentos e sobre suas divergências acabaria por redesenhar, de modo significativo, a cartografia do poder ocidental” (p. 10). Mas a provável cartografia parece restar no horizonte, porque de fato são escassas na obra as mediações entre a tradição teológica cristã de fundamentação do Reino e do Jardim e o pensamento político ocidental moderno e contemporâneo.

Uma visão sinóptica do livro. Após o primeiro capítulo com partida em Bosch, o leitor guarda a suspeição de que a obra subverterá o paradigma teocêntrico e antropologista com que o Reino e o Jardim foram interpretados ao longo do medievo em proveito da revelação material de potências e virtualidades pós-humanistas do Jardim, visadas sem malabarismos na tela mediana do tríptico de Bosch. Não é com isso com que o leitor depara, todavia.

O segundo capítulo é intitulado “O pecado da natureza” e nele encontramos uma das exegeses mais finas da passagem bíblica que é chave para reconsiderarmos o lugar de Agostinho como o teórico do pecado original. A exegese é sobre a Carta aos Romanos, 5, 12, em que repousaria “inteiramente” (p. 19) a fundamentação agostiniana do pecado original.

Aqui, a análise de Agamben é fina e problematiza o desvio de Agostinho ao interpretar um pronome relativo (em sua bíblia latina, in quo, no original grego, eph’oi) em relação ao pecado e à morte como heranças incondicionais e universais da humanidade a partir do primeiro homem. Em contrapartida, o pronome relativo aparece no texto paulino em relação exclusivamente à morte (a morte sim teria sido transmitida, mas não o pecado, que em si mesmo não é uma natureza) e há uma larga tradição exegética no cristianismo primitivo (com destaque para Orígenes, Teodoreto de Cirro, Ambrosiastro e pelagianos) que interpretou a passagem paulina alternativamente ao modo como Agostinho lê e como ainda Anselmo relerá.

Daqui até o fim da obra, Agamben claramente toma partido de uma posição pelagiana e tece elogios rasgados à liberdade humana de não pecar e, por consequência, de realizar o Jardim como paraíso terrestre por meio da ação, o que será mais desenvolvido no quarto capítulo intitulado “A divina floresta”. Mas por ora ainda no segundo capítulo dedicado a Agostinho, uma outra inconsistência exegética que Agamben divisa em Agostinho e Tomás de Aquino é um tema abordado por ambos sobre por que o Jardim não foi criado inutilmente (frustra factum esse), já que deixou de ser a habitação dos homens. É no contexto desse problema que Agamben propõe que a “polêmica agostiniana contra Pelágio diz respeito justamente ao estatuto atual do Jardim”, preservado por Pelágio, Celéstio, Juliano e, muito posteriormente, por Dante (sim, surpreendentemente o Dante de Agamben é pelagiano!).

O capítulo três é intitulado “O homem ainda nunca esteve no paraíso” e é concentrado em Escoto Erígena, que em seu Periphyseon transmite uma imagem do Jardim bastante diferente. Afinal, “Erígena elabora conscientemente uma teologia antiagostiniana” (p. 43). O Jardim para Erígena é não um lugar real e sim uma alegoria da natureza humana, com a consequência de haver identificação entre paraíso e natureza humana, no interior de um programa de fundamentação naturalista do cosmo em que nenhuma criatura (des)encontra sua própria natureza numa transcendência inalcançável.

Assim, o ser humano não pode romper substancialmente com sua natureza, embora possa não realizá-la por um ato de vontade má. Ou melhor, o mal é um “defeito de potência” (“com uma intuição que antecipa a doutrina spinoziana”, p. 54) e “o que pode ser punido é […] o movimento da vontade, não o da natureza” (p. 54). Assim, não há em Erígena uma cisão entre natureza originária e natura lapsa – e eis que paraísos celeste e terrestre não se distinguem, eis que céu e terra se tornam imanentes.

O quarto capítulo, intitulado “A divina floresta”, é o clímax da obra. De fato, salta aos olhos o quanto o Dante de Agamben é o melhor entre todos os autores por ele comentados. A Comédia, mais precisamente os cantos 28-31 do Purgatório, ocupa o centro da análise, que ainda é adensada por passagens-chave do Convívio e De monarchia para abordar o paraíso terrestre de Dante. Em diálogo com certa tradição de comentadores de Dante (Pascoli, Singleton), Agamben sugere uma outra imagem de Matelda, a mulher apaixonada que canta e dança no jardim ou no paraíso dantesco. Por meio de Matelda, Dante opera humanização e paganização do jardim, em ruptura com Agostinho e Tomás de Aquino. Humanização na medida em que a atualidade do paraíso é manifestada no presente pelo ingresso de Dante num passado primitivo (cf. p. 67; Purgatório, 30, 75).

Ao mesmo tempo, Agamben apresenta uma paganização do paraíso dantesco a partir de muitos paralelos entre Dante e Virgílio, a partir de correspondências documentadas entre o jardim do Gênesis e a idade de ouro cantada no Écloga 4. Para além disso, Agamben aborda com fineza temas aristotélico-averroístas em Dante, sobretudo a respeito da concepção de intelecto possível presente na Comédia, no Convívio e em De monarchia, para “acrescentar aos significados figurais de Matelda […] também o de ser uma personificação do intelecto possível, em seu duplo significado, tanto coletivo como individual” (p. 66).

Talvez estejamos diante de uma das interpretações mais originais de Matelda, com uma clara dimensão política e para esclarecê-la é que aparece a vinculação natal entre o intelecto possível e a monarquia universal presente em De monarchia. Em síntese, a monarquia universal é deduzida a partir do intelecto possível em função de sua potência não poder “ser atuada por um só homem nem por uma só cidade”, mas exigir “a multitudo do gênero” (p. 65, cf. De monarchia, 3, 8).

Por fim, ainda neste capítulo sobre o mais terrestre de todos os paraísos, Agamben reconstrói “as linhas fundamentais da doutrina de Dante sobre o pecado original” (p. 67) e que é “abertamente pelagiana” (p. 68). Neste ponto, Dante não poderia distanciar-se mais de Agostinho e Tomás de Aquino ao elaborar “uma doutrina teológica absolutamente original” segundo a qual a encarnação de Cristo restituiu definitivamente a natureza humana e a tornou suficiente para elevar-se e realizar o paraíso terrestre.

Não à toa, os sacramentos nunca são mencionados “na Comédia, a não ser em referência à corrupção da Igreja” (p. 70), pois se a natureza humana foi totalmente reparada, não mais há necessidade de sacramentos para expiar suas faltas. Portanto, de maneira mais radical do que Erígena, Dante transfigura céu em terra e terra em céu, fundamentando um paraíso terrestre e uma felicidade factíveis por meio da atividade política de que a natureza humana guarda potência coletivamente.

O quinto capítulo é intitulado “O paraíso e a natureza humana” e Tomás de Aquino é o principal autor por meio do qual Agamben elabora a teoria de um dispositivo de cisão entre natureza e graça cujo operador é o pecado. O antecedente desse dispositivo de fratura (cultural? ainda intrujado em nós?) da humanidade é sempre agostiniano, tanto que Agamben justapõe muitas passagens de A cidade de Deus às tomasianas para provar afinidades eletivas entre Agostinho e Tomás neste ponto, mas a novidade tomasiana é fundamentar mais sistematicamente uma teoria da graça que não naturaliza a imortalidade e toda incolumidade humanas paradisíacas.

Ou melhor, Tomás se empenha em fundamentar uma cisão constitutiva do homem mesmo em estado pré-lapsário, que não é homem só por natureza e sim somente o é plenamente por graça acrescentada à sua natureza. Por consequência, o ser humano por natureza é insuficiente desde as origens para realizar sua humanidade e eis que novamente estamos diante de um jardim celestial inacessível a nós que padecemos na imanência de uma natureza desgraçada.

Finalmente, no sexto e último capítulo, intitulado “O Reino e o Jardim”, Agamben aborda mais o Reino do que o Jardim, empreendendo exegese de versículos do Novo Testamento (tanto dos evangelhos, como das epístolas paulinas, quanto do Apocalipse, de João). O Reino aqui obscurece o Jardim em função de o Novo Testamento trazer a boa-nova do Reino de Deus, a tal ponto de nas “três ocorrências do termo ‘paraíso’ no Novo Testamento” (p. 97), em duas o “paraíso” estar em relação ao Reino (cf. Lucas, 23, 43; Apocalipse, 2, 7). Além disso, Agamben retorna à análise dos padres da Igreja (Justino, Papias, Tertuliano, Irineu, Eusébio… e como sempre centralmente Agostinho) para elucidar que ao longo dos primeiros séculos do cristianismo a fundamentação do Reino foi progressivamente coincidente com a fundamentação da “organização institucional da Igreja” (p. 101).

Esse deslocamento do Reino para a Igreja é estranho à boa-nova: “‘Cristo anunciava o Reino e veio a Igreja’” (p. 100), dizia com ironia Alfred Loisy. Ora, nos evangelhos são muitas as passagens em que a realidade do Reino é “atual, coincidente com a presença, as palavras e as ações de Jesus”, trata-se de “um fato que nenhum teólogo poderia negar” (p. 105, cf. Lucas, 2, 20; Marcos, 1, 15), porém padres da Igreja esforçaram-se por neutralizar o Reino como paraíso terrestre e em seu lugar fundamentar uma instituição, a Igreja, com alianças imperiais e seculares. Nesse contexto, Agamben retorna nas últimas páginas da obra ao Novo Testamento para esclarecer que a potência e até atualidade do paraíso terrestre de Erígena e Dante decorrem da letra e do espírito das próprias Escrituras, precipuamente das epístolas paulinas.

Para tanto, Agamben sintetiza alguns aspectos de sua reflexão em O tempo que resta: um comentário à Carta aos Romanos. Ou melhor, nas últimas páginas de seu ensaio, Agamben teoriza a partir de Paulo e Benjamin uma teoria heterogênea do tempo que concede uma dialetização e presentificação do Reino e do Jardim. Após uma análise fina do termo parousia – que “é uma expressão tipicamente paulina” (p. 106) e que não é adequadamente traduzida na Vulgata por adventus, porque em grego parousia quer dizer “presença”, “para-ousia, literalmente, ‘ser ao lado’, como se, no presente, o ser se situasse, por assim dizer, ao lado de si mesmo” (p. 106-7) –, Agamben esclarece que parousia não significa um segundo advento que seria acrescentado ao primeiro e o completaria, mas sim quer dizer um evento messiânico cuja estrutura é composta “por dois tempos heterogêneos, um kairos, no qual todos os tempos se contraem em um (ho kairos synestalmenos estin, “o tempo se contraiu” – I Coríntios, 7, 29), e um chronos, no qual o tempo se distende quase que ao lado de si mesmo” (p. 107).

É no mínimo curioso tanto aqui, como em O tempo que resta, Agamben não cotejar esses dois tempos heterogêneos, kairos e chronos, com a intentio e a distentio de Agostinho, que, diferentemente do que Agamben diz em O Reino e o Jardim, não guardava “a representação de um único tempo histórico” (p. 104). Para Agostinho, o próprio tempo histórico é uma temporalidade diversa do tempo cosmológico e no interior da história há temporalidades heterogêneas conforme a estrutura volitiva ou anímica de quem ou do povo que as objetiva.

Mas a partir do comentário acima a Paulo, Agamben dá um grande salto para Benjamin. Todo o problema do Paulo agambeniano pensador da imanência e da dialética negativa é como pensar uma realidade – a do Reino – sem inseri-la numa representação ou cronologia predeterminante. Contra a dupla transcendência do Reino e do Jardim e em favor da imanência, Paulo com Benjamin encontra Dante para Agamben afirmar “que o Jardim e o Reino resultam da cisão de uma única experiência do presente e que no presente eles podem, portanto, reconjugar-se” (p. 108). Desse modo, Agamben encerra a obra com o esclarecimento de que o acesso à natureza humana é exclusivamente histórico por meio da política e de que o único conteúdo da política, nas palavras de Dante, é (ou deveria ser) “‘a beatitude desta vida’” (p. 108).

Uma última palavra sobre um aspecto da recepção de Agostinho por Agamben que parece deixado à margem e jogaria água no moinho do projeto agambeniano de crítica da cultura. Ou melhor, Agostinho é menos dogmático do que Agamben dá a entender em relação ao pecado original. Afinal, Agostinho já se incomodava com a herança de uma acrasia incondicional e universalmente partilhada pelo gênero humano e a força de seu argumento para sustentá-la é fática: a contradição real é um factum e não só artigo de fé.

É por isso que Agostinho eleva a narração bíblica da forma de vida paradisíaca pré-lapsária ao lugar de ideal regulador a-histórico com que a dimensão histórica é pensada criticamente, mas sem nunca subsumir o factum ao ideal. Portanto, a desconstrução agambeniana deixa escapar que a larga tradição judaico-cristã de fundamentação do Paraíso é oportunidade para historicizar a ficção a-histórica de uma metafísica dos costumes, ocasião privilegiada para criticar mais agudamente as fundações teológicas do homem, das quais nem mesmo Dante ou Kant libertam inteiramente o homem.

Luiz Marcos da Silva Filho é professor de Filosofia Patrística e Medieval da PUC-SP, da Faculdade de São Bento-SP e integrante do coletivo @sertão.sociedade.


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