Nós
(Foto: Acervo pessoal)
Herança é um palimpsesto a quatro gerações. Sarah legou seu diário, escrito entre 02 de agosto e 1939 e 28 de janeiro de 1945, durante a ocupação alemã em Lodz, Polônia. Clara, sua filha, traz suas sessões de psicanálise resumidas, de forma contundente e sincrônica aos pesadelos do gueto e dos campos. Lola, neta de Sarah, filha de Clara, estudiosa da shoa, comparece com notas de comentário, que não escondem suas preocupações com a herança que esta história pode ter sobre sua própria filha, Luiza.
Temos então três gerações, três nós de um mesmo novelo. Mas temos ainda o futuro a quem se destina este relato, portanto uma volta a mais sobre o que não se pode dizer. Com o que não se pode dizer em parte porque dizer faz doer, mas em parte porque dizer significa transmitir, passar a frente, comprometer os que se sucedem no trato dos viventes. Contudo, silenciar também é um problema, pois o silêncio também se transmite, e da pior ou da melhor forma, criando efeitos de censura e de obturação dos capítulos de nossa própria história. O que não tem sentido é diferente do que tem um sentido em branco. As duas coisas se reúnem na transmissão do holocausto, cuja palavra fundamental, aqui inscrita, é Auschwitz.
Não me considero à altura de escrever um texto sobre Herança, pois estou comprometido demais com esta história. Do outro lado. Meu avô desapareceu em Gomel, quando o exército alemão preparava-se para atacar Moscou. Antes ele passou pela Polônia e pela Ucrânia. Meu pai viveu até os quinze anos, fugindo dos bombardeios aliados, sob os escombros de uma Alemanha destroçada… pela sua própria vontade. Eu mesmo, vejo-me como Lola K., um acadêmico tentando entender e dar alguns nomes para o que se passou, depois de tanto silêncio. Com medo de que esta “coisa” passe para meus filhos. Por outro lado, não há outra metáfora para o destino que não a das três fiandeiras que esticam o fio, rodam a roda e cortam o fio. Cortar o laço entre as gerações é um castigo pior do que o nós que elas geralmente criam entre si.
Chega de falar em Auschwitz.
Sim, também gostaria que assim fosse. Mas como psicanalista ainda acredito que é possível falar diferente. Manter o trágico e incorporar a diversidade de perspectivas que apenas um material como Herança pode sugerir. Afinal, o diário de Sarah é antes de tudo uma lição sobre como, em situações extremas, o amor começa a sobrecarregar-se de funções: esperança do além, eternidade do agora, prova testemunhal da pouca realidade na qual podemos no refugiar para sobreviver. Ele está povoado de neologismos como lindalegrias, amortemor, escrevivendo e forçapalavras. Mas a medida que o Real avança sobre a existência dos moradores de Lodz e da família K, a capacidade de criar novos termos declina e o próprio gesto de continuar a escrever ganha uma nova conotação.
Mas qual seria a diferença exata entre a experiência de alguém que vê seus pais e ao final sua irmã sendo levados para os campos e alguém que, durante uma sessão de análise, produz o lapso que troca campo de concentração por campo de criação? Neste sentido, a presença da psicanálise como experiência de reconhecimento e enfrentamento do trauma não poderia ser mais feliz neste relato. Não há, como popularmente se espera, grandes explicações reconciliatórias, nem excessos conceituais, mas apenas a aguda intervenção, cujo contexto se torna quase desnecessário.
São poucas frases, com de fato o que se leva de uma análise. São interpelações, cortes, citações e confrontações que chamam Clara para a subjetivação do trauma, reconhecendo ao mesmo tempo sua irredutibilidade histórica e coletiva e sua contingência singular e individual. Um procedimento muito difícil de transmitir sobre a própria operação psicanalítica e que este livro ilustra melhor que a maior parte de nossos manuais.
Freud dizia que o trauma se transmite por duas vias diferentes. Na primeira, encontramos os sintomas positivos de angústia, pesadelos e fenômenos de repetição. Neste último caso, podemos incluir a coincidência de que a filha de alguém que odiara profundamente o kapu do gueto, case-se com alguém chamado Adolfo.
Para contextualizar, um kapo, ou funcionário prisioneiro (alemão: Funktionshäftling), era um prisioneiro em um campo de concentração nazista designado pelos guardas da SS para supervisionar o trabalho forçado ou executar tarefas administrativas. Os kapos eram parte da “autoadministração de prisioneiros” dos campos de concentração, o sistema se utilizava de prisioneiros para minimizar os custos de manutenção e gerenciamento dos campos, permitindo que os campos funcionassem com menos pessoal da SS. O sistema foi projetado para tornar as vítimas contra as vítimas, pois os funcionários prisioneiros eram confrontados com seus companheiros de prisão, a fim de manter o favor de seus superintendentes da SS.
Mas em um segundo plano, mais difícil de abordar clínica e socialmente, encontram-se os fenômenos pervasivos de transmissão silenciosa. Aqui, o que passa adiante não é a resposta imediata, o traço que faz reconstruir toda a cena traumática, mas a impossibilidade de narrar, de nomear ou de finalmente incluir o acontecimento em um discurso histórico coletivo, ao qual vamos nos sentir pertencendo. Mas antes disso, o que temos é uma espécie de teatro do absurdo, com ritos sendo repetidos sem razões, evitações se perpetuando sem motivo e signos esparsos cuja causalidade insiste por permanecer desconhecida. Este é o caso, aparentemente, das mudanças de cidade ou de escola, da relação famélica com a alimentação e do oráculo formado pelo número verde impresso no antebraço das pessoas.
A história aqui apresentada é do segundo tipo. Ela contorna a dificuldade de captar a transmissão do silêncio por meio de uma estratificação sincronizada de histórias. Os temas são apresentados então em sua típica deformação introduzida pela transmissão genealógica. Esta é, de fato, uma estratégia extremamente sagaz para compor um certo cercamento do silêncio sem impor uma nomeação obscena ou uma degradação descritiva.
É possível reconhecer a combinação entre o trabalho positivo e negativo do trauma na cena em que, quando estamos prestes a concluir uma imagem, suspendemos sua conclusão jogando uma substância que torna a tela branca novamente. Como se fosse preciso ao mesmo tempo “começar de novo” e “quase reconhecer” o que se passou, de tal maneira que o mesmo ato nega as duas possibilidades. Não se começa de novo, porque não se concluiu uma vez. Também não se reconhece completamente o que aconteceu, porque isso significaria compartilhar a dor que se quer evitar transmitir. Ou seja, quanto mais se quer fugir da repetição traumática, mais a reencenamos sem nos darmos conta.
Este foi o efeito obtido também por Sharon Cohen, em Testimony and Time: holocaust survivors remember, ao entrevistar, 50 anos depois, os sobreviventes do holocausto que firmaram seu testemunho, para uma pesquisa histórico-psicológica, feita logo depois do fim da Segunda Guerra. Muitos sentiam-se culpados porque suas vidas havia apenas e tão somente continuado, sem a devida consequência e às vezes atravessando sua felicidade com a sombra da dívida simbólica amealhada pelo sobrevivente.
Havia uma franca divisão entre os que permaneciam com uma narrativa passiva, o que em parte pode ser atribuído à maneira objetivista pela qual suas lembranças foram evocadas como “prova de que aquilo tudo aconteceu mesmo”, e os que reverteram esta posição inicial em uma narrativa ativa. Este segundo grupo, frequentemente, apoiava-se na lembrança, ainda que esporádica ou episódica, de pequenas resistências promovidas pelos judeus contra o massacre. Nos primeiros relatos, os traços de resistência eram pouco notados, ou eventualmente havia pouca escuta para eles. Mas a passagem da narrativa passiva para a ativa tinha uma relação forte com a prática da narração ela mesma. Isto é, pessoas que se autorizam a contar os casos e os acontecimentos de sofrimento, gradualmente, introduziam certas posições de resistência, o que produzia uma distância necessária para a elaboração.
No relato de 1947, no calor dos acontecimentos, a função judicativa era muito enfatizada ao passo que, nas narrativas contemporâneas, a função da culpa é mais moderada e o testemunho assume uma dimensão comemorativa. Proteger a memória das vítimas, passar da memória somática para a memória reflexiva, preservar os “momentos insolúveis” parecem ser condições necessárias para preservar um “desejo de produzir um outro final” tão importante para a elaboração subjetiva deste trauma. Parecem necessárias ao menos três gerações para que passemos da posição de vítimas para a de sobreviventes e de sobreviventes para testemunhas. Antes disso, há sempre uma espécie de iminência de que “aquilo” pode voltar a acontecer, a qualquer momento. Isso que tão bem se apresenta neste livro em torno da cultura familiar do medo.
É possível que o paradigma das três gerações, tão importante para pensar o processo de elaboração traumática, envolva uma curiosa crença humana de que episódios dos quais conhecemos pessoas que os viveram são mais reais do que episódios descritos por fontes anônimas e históricas. Ou seja, depois de três gerações, que viveram a experiência de compartilhar a vida com alguém que sobreviveu, chegaríamos em uma mutação na qual a história é apenas a história contata.
Virtualmente, a quarta geração, a geração de Luiza, filha de Lola e de meu filho Mathias, não teve um contato direto e narrativo com suas bisavós ou trisávós. Isso pode parecer irrelevante para o raciocínio sociológico e histórico, mas não é quando se considera a experiência psicológica das pessoas. A quarta geração está submetida ao fato de apenas e tão somente acreditar. Isso a liberta de uma série de inconvenientes e escrupulosidades, mas também permite que o silêncio que se transmite da série traumática seja abordado de outra maneira. O leitor de Herança saberá reconhecer os efeitos de finalmente dizer o que estava na caixa de Pandora produzidos sobre os outros e sobre a própria pessoa em sua função, mais ou menos assumida, de sobrevivente.
Outro aspecto saliente em Herança, e que o torna um verdadeiro manual para o enfrentamento histórico-genealógico de outros traumas, é que, ao se desenvolver entre 3 + 1 gerações, ele ilumina a complexidade do entranhamento entre o traumático histórico e coletivo com o traumático enquanto adversidade particular. Neste sentido, ele ajuda a entender como o “mesmo trauma” incide de modo absolutamente diferente para diferentes pessoas, chegando ao ponto de que poderíamos isolar casos limite nos quais o trauma se desenvolve exclusivamente por intermédio das identificações com a comunidade de origem e outros nos quais ele se transforma em uma perda singular, pedra angular dos sintomas dos envolvidos. E estes sintomas são da ordem do que o sujeito faz com o que fizeram com ele. Neste caso, por exemplo, a exclusão dos pais, ainda que ela comemore o amor inconcluído da ancestral, passa a se tornar escolha, potencialmente sintomática, das gerações subsequentes.
Creio que a diferença que Lacan estabeleceu entre sinthoma (com “h”) e sintoma (sem “h”) aplica-se perfeitamente ao caso. No primeiro caso, é preciso criar uma identificação ali onde ela falta, ali onde a experiência de nossos ancestrais é tão incomensurável com a nossa que quase não conseguimos perceber com ela nos afeta e às vezes determina.
No segundo, caso trata-se do procedimento clínico inverso. É preciso se desidentificar das traduções particulares do desejo de nossos ancestrais para poder desejar outra coisa e experimentar, neste processo, o pouco de liberdade que nos cabe. O leitor se aperceberá desta diferença ao comparar os sonhos aqui relatados, nos quais se repete eroticamente a violência do abandono e da opressão, em contraste com os sonhos nos quais se nota um gesto de desistência e aceitação. Como se os sobreviventes, em sua dívida simbólica, se dedicassem a emprestar seu sonho e às vezes seu sono àqueles que não podem dormir, porque seu papel ainda não foi justamente reconhecido na história.
Um segundo nível de transmissão absolutamente necessário para a elaboração geracional do trauma diz respeito ao reconhecimento de que, ainda que afetada pelas circunstâncias limitadoras, as pessoas lutam para preservar sua capacidade de amar e de desejar, que em última instância é o que chamamos de humanidade. Neste campo, nem tudo é determinado pelo trauma.
Ainda que muitas pessoas produzam e reproduzam sexualidades erráticas como forma de repetir-elaborar o traumático, há ainda e sempre um conjunto de escolhas, que pode remanescer naquele beijo que nos recusamos a esquecer, ou naquele encontro no qual tudo poderia ter acontecido e que, ainda assim, faz valer o conjunto da história a ser contada.
Frequentemente, estes pontos de resistência subjetiva, ilhas de sobrevivência, são atacados pelo próprio sujeito, por meio da culpa e da vergonha. O que há de mais pervasivo no trauma é que ele parece atrair para si tudo o que jogamos contra ele. Ele inverte o sentido dos sonhos, torna desprazeirosas as lembranças ligadas a uma boa causa ou reproduz a miséria que nos acometeu nos fazendo repeti-la sobre quem amamos. Por isso também muitos rituais de exposição traumática acabam concorrendo apenas para retraumatizar o que já resistia ao processo de simbolização ou de imaginarização com uma suplência estética.
Encontrar um processo de rememoração que conserve as perdas, mas que as projete em outros futuros possíveis, que não aquele prescrito por nossos inúmeros dispositivos de repetição, é a tarefa que torna o trauma uma lembrança que nos constitui, assim como os grandes heróis e os respeitáveis monumentos de nossa história. Porque, ao final e ao cabo, se trata apenas disso: como vamos construir um “nós” possível, seja ela entendido como um coletivo unido por uma experiência comum, neste caso judeus e alemães, mas também como faremos para produzir um mesmo novelo com os seus nós traumáticos e sintomáticos, fonte e matéria-prima para inventarmos outros futuros possíveis.
Ao final, percebo que não tenho uma resenha ou texto sobre Herança, mas talvez o início de uma resposta ou de uma destinação. Não fiz muito bem a função de preparação para o início da leitura, mas talvez, se tudo der certo no futuro, um fragmento de reparação. Afinal, ter escolhido alguém que vem do outro lado do rio Oder para isso já é por si só esboço de invenção para um novo “nós”.
Christian Dunker, psicanalista, doutor em Psicologia Experimental pela USP, onde é professor titular e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise.