O governo pós-Bolsonaro já começou
E a Copa do Mundo, quem diria, conseguiu tomar da política pelo menos uma parte da atenção pública, depois de um semestre inteiro em que não se falou de outra coisa e não se sofreu por outra razão a não ser pelas peripécias da política nacional.
Claro, ainda se fala dos delirantes Bolsonarista dos Últimos Dias, em preces e súplicas diante de quartéis, recitando o seu mantra de que no mais tardar em 72 horas soarão as trombetas do Apocalipse, as Forças Armadas anularão as eleições e o seu Messias será instaurado definitivamente no Poder. Nesse caso, contudo, a política já se converteu em religião, os seus fiéis estão fora do alcance da razão e o impacto político desses cultos é mínimo.
Por outro lado, a Copa deu um refresco, que todos merecíamos, e uma pausa relativa, de que o futuro governo precisava. Pausa na supervigilância da esfera pública, um intervalo na tretabilidade nacional, aquele padrão de conflito permanente em que a sociedade parece se ter viciado nos últimos tempos. Entram as tretas futebolísticas, as refregas políticas dão um tempo.
Isso é fundamental, pois a política institucional precisou funcionar à toda nesse período, fazendo aquilo que lhe é natural para além dos conflitos de declarações, queimações, cancelamentos e sinalizações de virtude. Política é articulação, planejamento estratégico, mobilização de recursos humanos qualificados, negociações de pauta, prioridades e acordos, com a sociedade e com os atores institucionais.
No mundo real, foi preciso fazer a transição entre governos em uma situação precária num nível que não vivíamos desde que o último presidente-ditador, João Figueiredo, foi substituído por um presidente civil.
De um lado, há um presidente em exercício, deprimido e ausente, com o capital político e emocional caindo aos pedaços. De outro, um grupo que precisa assumir o governo de um país que se descobre que está, literalmente, quebrado. A política de terra arrasada de Bolsonaro faz com que mais do que uma transição, no que tange pelo menos à Fazenda Pública, trate-se de um penoso recomeço. O que nos leva à esdrúxula situação em que um governo eleito, mas não empossado, tem já que precocemente negociar, com uma Legislatura que se acaba em alguns dias, uma autorização para gastar acima dos limites já estabelecidos no orçamento público aprovado. É tudo completamente surreal, mas é o país que sobrou depois do terremoto do bolsonarismo.
Do outro lado, há o problema do orçamento secreto, a mais deplorável inovação antirrepublicana da Era Bolsonaro, que drena do governo uma parte considerável dos recursos necessários para implementar políticas públicas essenciais. Um governo ainda não diplomado não pode negociar uma mudança tão drástica com uma Legislatura que caduca dali a alguns dias, mas, mantido o orçamento secreto, o governo perde grande parte do seu próprio poder. Um impasse. A saída para o dilema parece ser o STF, a quem a política se acostumou a recorrer durante os tumultuados anos de Bolsonaro, e que já teria formado maioria para remover tal herança literalmente maldita. A ver.
Ao mesmo tempo, corre solta a especulação sobre a constituição do ministério do governo Lula-Alckmin – com ênfase no hífen. Nesta sexta-feira (9/12), é provável que pelo menos alguns nomes-chaves sejam divulgados. Servirá para cessar as especulações, certamente, mas dará início, naturalmente, ao coro das insatisfações. Em um universo de bens limitados, como é e deve ser a escolha de ministros de Estado, trata-se mais de frustrar do que de saciar. Não haverá ministérios e cargos suficientes para satisfazer toda as aspirações legítimas, quanto mais para acomodar todos os apetites e vontades de poder.
Além disso, dadas as circunstâncias desta última eleição presidencial, o novo governo contraiu um número considerável de dívidas, umas reais outras imaginárias, para conseguir derrotar Bolsonaro. Tanto na política institucional como na sociedade civil. Muitos voluntários e abnegados que declararam lutar por princípios agora colocarão o chapéu de credores e surgirão de todos os lados para denunciar o quanto foram negligenciados.
Expectativas foram geradas, justificadamente ou não, de forma que também veremos vários setores, grupos de interesses e facções reclamando faltas, insuficiências e lacunas, conforme os seus próprios sistemas de necessidades ou interesses. Ou as próprias susceptibilidades. Todas as urgências serão magnificadas e transformadas em pressões, de forma que decepções serão inevitáveis.
Identitários gritarão por representatividade e paridade, os estados reivindicarão representação regional proporcional à sua contribuição ou importância, partidos cobrarão faturas e empenhos por lealdades e serviços prestados no passado ou no futuro, lobbies e grupos de interesses venderão caro tréguas e armistícios.
O humor público acerca do novo governo nos próximos meses vai depender do modo como cada pretensão não acomodada, desejo não satisfeito, reivindicação não atendida, vontade não saciada, pauta não contemplada vai lidar com a frustração nos próximos meses. Assim como da capacidade que terá cada círculo de insatisfeitos de dar voz ao seu clamor e capturar a atenção e a agenda pública para a sua raiva. Preparem-se, que “a vida como ela é” volta logo depois da Copa.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)