Desmistificando o bolsonarismo dos últimos dias

Desmistificando o bolsonarismo dos últimos dias

 

Há dois mitos em circulação sobre os últimos bolsonaristas que não aceitam que o seu candidato, líder e guru espiritual, derrotado nas urnas em outubro, seja despejado da Presidência da República, por vontade da maioria do povo brasileiro, em janeiro de 2023.

O primeiro mito reza, conforme enunciou um influente membro da seita esta semana, que “aqueles que acham que as pessoas estão nas ruas por Bolsonaro, não entenderam nada”. Nessa versão das coisas, os revoltosos estão ali não em defesa de uma pessoa, o seu Messias, mas de uma causa e dos valores que a constituem. Uma coisa nobre, em suma.

O segundo mito diz que tanto os que fecham rodovias quanto os que abraçam quartéis são pessoas abnegadas e amantes da pátria, e que ali estão apenas em um protesto construtivo e democrático em defesa do que acreditam. E se o ato é pela democracia, como disse Carlos Bolsonaro, é um ato democrático.

Magno Malta, por sua vez, chegou a exibir a foto de uma velhinha, miúda e concentrada, agarrada a uma enorme Bíblia, em uma manifestação dos que pedem golpe militar, para demonstrar que ali há virtude e autenticidade e não uma ameaça à democracia. Seriam pessoas boazinhas e de boa-fé, em suma, mas vilipendiadas pela mídia maligna e pelo TSE.

Alguns analistas e jornalistas chegam mesmo a comprar essas histórias, inteiras ou pela metade, e se esforçam para cravar uma distinção entre, de um lado, as intenções maliciosas do alto bolsonarismo, composto por revolucionários de ar condicionado, de condomínios da Flórida e de camarotes no Catar, e, do outro, a massa manipulada, bruta com frequência, patética quase sempre, que toma chuva, atraca-se a caminhões em movimento e implora por um golpe militar.

Os filhos de Bolsonaro, Zambelli e Constantino são imperdoáveis incitadores de uma sedição contra o regime democrático, enquanto os que reivindicam um golpe de Estado seriam uns coitados, fanatizados pelos espertalhões que se beneficiam desse estado de coisas.

Mas nem uma coisa nem outra é verdadeira.

Primeiro porque é personalismo, sim. As pessoas estão nas ruas por Bolsonaro, como estiveram por Jim Jones, Osho e mais uma dúzia de gurus na história. Como outras multidões em outras circunstâncias estiveram nas ruas e na chuva por Chávez, Fidel, Kim Jong-Ill, Mussolini ou Trump. Estão nas ruas pelo que Bolsonaro representa para elas e pelo que o bolsonarismo lhes ensinou que são os valores supremos da existência. Como aconteceu na história toda vez que líderes carismáticos, do bem ou do mal, radicalizaram as massas que se vinculavam pessoalmente a eles.

Na verdade, o lema “As pessoas não estão nas ruas por Bolsonaro” é o novo “Não é por 20 centavos”, lembram? Depois disso vem a mesma adversativa: “mas para consertar o Brasil”. A verdade, contudo, escapa antes da conjunção, e vem negada, recalcada, mas vem. É por Bolsonaro, sim, ele é a causa e o princípio pelo qual lutam.

Segundo, é verdade que pagam um preço pessoal alto os protestantes que estão há um mês transtornando a vida de quem precisa usar as rodovias brasileiros porque a sua vida está transtornada por causa da derrota eleitoral de Bolsonaro. Ou os que estão acampados à volta de quartéis.

Vimos esses relatos de sacrifícios feitos nos desabafos publicados quando alguns se revoltaram com as imagens de Eduardo Bolsonaro desfrutando as delícias da Copa do Mundo em contraste com as privações e perdas dos amotinados em vigília permanente. Houve quem se queixasse de ter sido deixado pelas esposas, de ter perdido emprego e de ter contraído dívidas, tudo em nome de uma causa.

Notem, contudo, que o “testemunho do sacrifício feito” faz parte da experiência religiosa ou de comunidades de crentes muito coesas. Serve tanto para provar que “a nossa causa é mais importante que nossa vida” (daí a valorização do martírio), quanto para demonstrar como somos membros abnegados de uma determinada comunidade, merecendo, portanto, o reconhecimento e o afeto do grupo.

Em suma, os últimos bolsonaristas radicais são abnegados, sim, mas todo fanático é generoso e abnegado com a sua causa. Não há gente mais altruísta, mais disposta a qualquer sacrifício, do que membros de fanbase de celebridades, fanáticos religiosos, étnicos ou políticos e, é bom que se diga, terroristas. Esses, sim, matam e morrem por uma causa.

Por fim, não há puros de coração envolvidos nessas peregrinações a quartéis, ocupações de rodovias e cultos de avivamento que rogam por golpe militar. Antes, os peregrinos da ditadura podem ser claramente fanatizados e desinformados agindo de boa-fé, mas são sobretudo pessoas que querem que os militares pratiquem a barbárie que eles não têm força para praticar.

O fanático que faz vigílias diante de quartéis hoje é basicamente um ressentido e um impotente. Ressentido porque considera que foi tomado de seu Messias o direito de reinar sobre nós para sempre. Ressentido contra a maioria eleitoral que ele considera estúpida e perversa, ressentido contra tudo e contra todos que nas suas fantasias lhe roubaram a eleição. Impotente pois o que realmente queria, mas não pôde fazer, era arrebentar a democracia na porrada com as próprias mãos, destituir o STF, prender Alexandre de Moraes, Lula e tantas outras coisas que confessaram durante anos.

Impedido de chegar a tanto, seja pelas instituições da democracia liberal, uma vez que ainda há juízes em Brasília, seja pelo fato de que não pertence, de fato, à maioria que imaginava, quer violentar a democracia por delegação. Quer que os militares façam o que ele, impotente, não consegue, mas deseja de coração: que aniquilem seus adversários, que violem as instituições democráticas, que violentem a soberania popular que se manifestou nas urnas.

A velhinha de Magno Malta pode ter boa-fé e autenticidade o quanto queira, mas está participando de uma manifestação em que se pede que uma instituição armada viole a democracia em seu lugar. O ressentido e o impotente não se tornam moralmente superiores apenas por isso, como nos ensinou Nietzsche. E quem deseja gozar a brutalidade antidemocrática com a baioneta dos outros pode ser tudo, menos um bom cidadão.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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