As diferentes versões da percepção: “Os óculos do Lucas”, de Tatit e Timerman
Dos vários esquemas que Freud desenvolveu para explicar o psiquismo, o meu preferido é a primeira tópica. No seu primeiro esquema para estruturar o funcionamento psíquico, a percepção ocupa um lugar privilegiado, ela é tida como sinônimo da consciência e se apresenta como uma fina camada que permite uma espécie de divisão entre o interno e o externo, objetivo e subjetivo.
No esquema, a informação do mundo alcança a percepção e é processada por tantas outras camadas. Entre elas fica o inconsciente e, na outra ponta do esquema, temos o chamado pré-consciente e o sistema motor, ou seja, nas duas pontas do esquema temos isso que pode ser chamado de externo.
Daí que Freud nos traz algumas novidades: a primeira é que a realidade é assimilada por camadas. Ou seja, ninguém acessa a realidade em si. A segunda permitiu a tão explorada explicação do sonho como “teatro do inconsciente”, pois o esquema tem um fluxo. Quando despertos, o mundo vai da percepção até o inconsciente. Quando dormimos, não. Vivemos o contrário: o mundo se monta do inconsciente para a percepção, a consciência.
Daí a ideia de teatro do inconsciente: as camadas estão lá, não é inconsciente nu e crú. Mas é o “filtro inverso” que veste e encena os elementos inconscientes. A coisa importante pode estar malvestida, mas figura no palco, indubitavelmente para quem está sensível à sua presença.
Daí o resgate de uma velha novidade que é poder perceber o (in)mundo que é chamado de interno, mas podemos pensar que não é só interno, também está nas brechas do externo, já que é possível sonhar acordado. Há quem se permitiu deixar levar pelo fantástico, e fez da aventura freudiana um caminho para os mundos.
Também há quem se deixou levar pelo ímpeto tecnocrata, buscando corrigir os filtros para que interno e externo fossem uma coisa só, livre de inadequações e desvios. Esses se agarraram a um só mundo, para evitar a angústia de explorar a incerteza de tantos outros possíveis.
No livro Os óculos do Lucas temos muitos temas e camadas. Talvez o primeiro que salte aos óculos seja a astuta descoberta do mundo dos detalhes e pequenezas que se revela dentro de um mundo das coisas indiferenciadas. Por aí fala-se de inclusão, não só dos pequenos detalhes, mas das crianças que, muitas vezes, ainda não foram alfabetizadas e nem por isso devem ser privadas dos detalhes da vida.
Também é presente o tema do sonho. O lugar onde as indiferenciações enriquecem em vez de empobrecer, as coisas podem ser e não ser ao mesmo tempo, podem ter mais de uma cor e até mesmo ser mais de uma ao mesmo tempo, quando também não se transformam em bichos e coisas e por vezes até mesmo em lugares, sejam reconfortantes ou ameaçadores.
Por último, e talvez o tema mais importante, seja o do olhar infantil sobre o mundo. Desse que propõe dormir de óculos para ver melhor o sonho. Não há adulto que conviva com criança que não tenha nessa convivência o momento mais surreal do seu dia, geralmente repleto de caos e criatividade, sobreposições temporais e agitações corporais. Não é possível ser adulto, conviver com uma criança e ter o seu modo de perceber o mundo intocado.
É mediante a criança que o sonho atravessa a vida desperta e a torna mais interessante, inusitada, atenta aos detalhes mais insólitos. Temos sorte de testemunharmos Bel Tatit e Natalia Timerman fazerem de sua relação com as crianças o avesso do que seria a função mais besta dos óculos: corrigir as vistas.
Rodrigo Alencar é doutor em Psicologia Clínica pela USP e pós-doutor em Psicologia Social pela PUC-SP. Psicanalista, atua em consultório particular e participa do Instituto Vox de pesquisa e formação em psicanálise.
por Redação
A posição crítica ao fascismo é, em uma sociedade de classes burguesas, fingida ou frágil, pois não compreende a íntima relação entre fascismo e capitalismo. A partir dessa ideia, o jurista Alysson Leandro Mascaro propõe uma teoria geral do nazifascismo, estruturando séculos de reflexões de diferentes correntes de pensamento para que “a história do fascismo venha a ser, um dia, pré-história da humanidade”, como escreve o autor na Introdução da obra. Para isso, Mascaro remonta às leituras liberais, voluntaristas e marxistas desse fenômeno político, em um recorte que perpassa todo o século 20 até os nossos dias. Em sete capítulos, alguns temas abordados são: as filiações filosóficas e políticas das teorias críticas do fascismo; os debates marxistas sobre o nazismo; as ideias de Evguiéni Pachukanis, teórico do direito soviético; a relação entre fascismo e subjetividade jurídica; e as abordagens de Slavoj Žižek acerca do fascismo.
A partir da implementação de uma ferrovia no meio da Amazônia, o escritor e cineasta José Eduardo Alcázar estrutura seu novo romance. Com fortes traços do realismo mágico latinoamericano, a obra narra o conflito entre indígenas da parcialidade Maskoi, que nascem do barro, e a Companhia ferroviária que implementa uma “garimpo de pessoas” para acelerar o processo natural do barro e, assim, extrair-lhe mais mão de obra para a construção da ferrovia. Em resposta ao garimpo, a terra faz surgir uma misteriosa e mortífera epidemia. Perpassando tanto os dramas individuais como coletivos, o autor faz um retrato da destruição da Amazônia e das implicações que acarreta, em um processo no qual a construção de uma ferrovia torna-se mais importante do que a própria vida das pessoas ao redor, reduzidas à miséria e às duras possibilidades de resistência a um megaempreendimento.
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