Ousadia editorial: “Más intenções”, de Elena Alonso Frayle, e mais
É um livro em formato pequeno, com nove contos curtos. O estilo da escrita, propriamente dito, não tem nada de especial. O que distingue Más intenções de outros lançamentos recentes é a facilidade com que a espanhola Elena Alonso Frayle, a cada pequeno conto, conduz o leitor. A tentação – com o perdão do lugar comum – é “devorar” as 207 páginas do livro em uma única tarde.
O que seria um erro.
Ler o livro na pressa de saber “o que vai acontecer”, na pressa de apaziguar o mal-estar que cada pequena história provoca, seria um modo de banalizar as más intenções da autora. Ela quer inquietar você, intrépido leitor. Os protagonistas de algumas dessas short stories são malvados.
Adolescentes entediados gozam o triunfo de enganar pessoas com “trotes” telefônicos (no tempo em que os telefones eram fixos e se atendia a chamadas sem identificar o número…). Encomendam muitas pizzas com endereços errados, todas as noites, até a pizzaria falir – e gozam com a notícia. Enviam cartas a um velho escritor ultrapassado anunciando uma falsa homenagem; cartas de amor misteriosas a meninas que ninguém quer namorar.
Em outro conto, um casal se excita com a brincadeira de contar um ao outro fantasias sexuais “inconfessáveis”. Uma delas, de parte da moça, era a de fazer sexo com um adolescente com grave deformação física – “monstruoso”, diz ela.
Uma moça pede carona na estrada e aos poucos, por pequenos sinais observados no motorista, começa a temer que ele pretenda parar em algum lugar e estuprá-la. A fantasia é dela, e toda fantasia indica o caminho de um desejo. Mas, para o leitor, é inquietante.
Inquietante é uma das traduções possíveis para o termo alemão Unheimlich, empregado por Sigmund Freud para se referir a experiências narradas por alguns analisandos, angustiados ao deparar com circunstâncias que evocam a sensação de já ter passado por aquilo antes. A hipótese de Freud, resumida aqui, é a de que tais sensações sejam produzidas pelo fato de tais vivências remeterem o sujeito à iminência de deparar com alguma representação recalcada – e utilizo intencionalmente o termo vivência para diferenciar de experiência que, na acepção de Walter Benjamin, indica o que pode ser transmitido mais tarde em forma de narrativa. Nos presentes contos, os protagonistas são apenas capturados por seus impulsos malvados, medos e angústias.
Voltando a Freud: o termo alemão indica aquilo que é “estranhamente familiar”, pois a palavra heimlich, que remete ao que é do lar (heim ou heimatt, pátria) é precedido da partícula negativa Um. O criador da psicanálise abre este ensaio afirmando que nem sempre a experiência estética se refere ao que é belo. Ele a define como a busca das “qualidades de nosso sentir”.
O leitor talvez já tenha se sentido perturbado ante o que lhe desperte a sensação de “já passei por isso… quando? onde?”. Esta sensação difusa traduz a experiência do Unheimlich. No livro, a dose de angústia não atrapalha o prazer da leitura; ao contrário, torna algumas passagens estranhamente estimulantes.
Os contos não têm, todos, a mesma qualidade – mas nenhum deles pode ser considerado dispensável. Um deles, aliás – “Tripofobia” –, trata exatamente disso. São três relatos em primeira pessoa em uma terapia de grupo (que hoje, me parece, saiu de moda), invocando experiências perturbadoras. O narrador observa que quase todos ali revelavam, “de uma forma ou de outra, um certo mal-estar, por assim dizer”. Uma delas sente que ali estaria implícito “algum tipo de teste” no qual seria, provavelmente, reprovada. Responde às várias perguntas sobre “o que você gosta”, mas ao responder “não suporto buracos” à questão sobre o que não gosta, tudo escurece a seu redor. O conto termina aí.
Passo, sem delongas, ao último conto (se eu resumir todos aqui os leitores não comprarão o livro…): “O olho de Deus”. Uma menina de sete anos ganha um relógio Tissot dos pais, no aniversário. Espantada com o presente, atribuiu aos pais a decisão por a considerarem madura. Para assimilar essa ideia, às vezes a narradora infantil fazia em si mesma cabelos brancos com a espuma do banho a simular sua imagem aos sessenta anos – o que a assusta e provoca “uma corrente fria” em suas costas. O tal “frio na espinha”. Estamos novamente diante de uma experiência Unheimlich. Aflita, a criança faz um movimento em que se desequilibra e, por alguns segundos, sente que se afoga na banheira. O conto não termina aí, há outros acontecimentos instigantes na voz da menina inteligente e excepcionalmente pouco “alienada” pelas expectativas de seus pais. “Observou sua mãe abrir a boca para dizer algo, algo que ela não queria mais ouvir.”
E então desejou sonhar de novo que era uma besta cruel, uma velha insondável, uma sereia ondulante de cabelos emaranhados; uma sereia silenciosa e triste, firmemente ancorada em sua rocha, prisioneira sob o peso imenso da água.
Essa descrição não remete ao angustiante, ao “estranhamente familiar”. Remete à prodigiosa imaginação, essa “louca da casa”, com que certas crianças são abençoadas.
por Redação
Reunião de 29 casos de músicas e artistas censurados no Brasil. A partir de depoimentos colhidos entre 2018 e 2020, os autores perfazem a história do embate entre arte e autoritarismo no país, com enfoque para o período da Ditadura Militar. Chico Buarque, Gilberto Gil, João Bosco, Beth Carvalho, Jards Macalé, Caetano Veloso, Ney Matogrosso e Martinho da Vila são alguns dos músicos que têm sua história com o autoritarismo explorada por João Pimentel e Zé McGill. Apesar de ser um livro de história(s), ele abre-se para o presente, como explicam os autores no posfácio: “mais que pontuar os acontecimentos desta ‘página infeliz da nossa história’, nossa missão era buscar nessas memórias individuais, se não respostas, reflexões sobre o porquê de termos nos encaminhado para esses tempos absurdos”.
Dezoito mulheres se reúnem nesta obra para denunciar a violência política de gênero. Com organização de Manuela D’Ávila, os textos e relatos centram-se em mulheres que, não obstante suas importantes atuações políticas, sofreram violência durante a campanha eleitoral e o exercício do mandato. Dilma Rousseff, Marina Silva, Anielle Franco e Isa Penna são algumas das políticas que compartilham suas experiências, contribuindo para a compreensão histórica da violência política de gênero: que “não são apenas ataques individuais às mulheres na política”, mas uma “violência coletiva, de um ataque a um grupo social”, o que “ofende a sociedade e fragiliza a democracia”, nas palavras de Erika Hilton, que assina a introdução.
Reedição do romance de suspense da escritora mato-grossense, falecida em 2005 em Nova York, onde viveu por 25 anos. O país em que morou também é palco desse A dança do jaguar, que acompanha a tensa narrativa de Nayla, jovem pintora que, após alugar uma casa vitoriana em São Francisco, vê-se atormentada pelo excêntrico botânico Tristan O’Hara, com quem divide a habitação, e pela sombra de uma criatura misteriosa que a ronda, o jaguar. Em 2013, a autora foi nomeada Patrona Perpétua das Letras Brasileiras em Nova York pela Brazilian Endowment for the Arts. Com A dança do jaguar, a editora Entrelinhas continua seu projeto de reeditar toda a obra de Tereza Albues.