Arcas de Babel: Eduardo Veras traduz Philippe Jaccottet

Arcas de Babel: Eduardo Veras traduz Philippe Jaccottet
Os poetas Eduardo Veras e Philippe Jaccottet (Foto de Jaccottet: AYSE YAVAS/KEYSTONE - Maxppp)

 

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras.

Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Nesta edição, o professor, poeta e tradutor Eduardo Veras traduz do francês e apresenta poemas de Philippe Jaccottet, importante poeta e profícuo tradutor de poesia recentemente falecido.

Eduardo Veras é professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Traduziu, em parceria com Isadora Petry, os poemas em prosa de Baudelaire (Via Leitura, 2018). É autor dos livros de ensaio O oratório poético de Alphonsus de Guimaraens (Relicário, 2016) e Baudelaire e os limites da poesia (Corsário-Satã, 2021). Estreou como poeta em 2018, com o livro Deserto azul (Penalux). Tem publicado artigos sobre poesia em periódicos diversos, com destaque para as contribuições à revista L’Année Baudelaire, publicada na França sob a direção de André Guyaux, Antoine Compagnon, Jean-Paul Avice, Jacques Dupont e Patrick Labarthe.

***

Philippe Jaccottet

Nasceu em Moudon, Suíça, em junho de 1925, e faleceu em fevereiro deste ano, na comuna de Grignon, França, para onde se mudara em 1953 com a esposa, a artista plástica Anne-Marie Jaccottet, em busca de contato com a natureza e sossego para se dedicar exclusivamente à literatura. Poeta inventivo, profícuo e amplamente premiado, Jaccottet estreia em 1953 com L’Éffraie, ano em que também começa uma duradoura contribuição com a Nouvelle Revue Française, publicando manuscritos do livro L’Ignorant, que viria a público integralmente em 1958. Até janeiro de 1993, a N.R.F. acolherá uma série de trabalhos do poeta, que dão uma mostra privilegiada da abrangência de sua produção, dividida entre a poesia, a tradução, a prosa ensaística, notas pessoais e de leitura sobre poetas vários como Claudel, Ponge, Supervielle, Char, Aragon, Bonnefoy, Dupin, Du Bouchet. Seu trabalho de tradutor é tão impressionante e relevante quanto sua poesia. Ao longo da carreira, verteu para o francês Homero, Platão, Hölderlin, Rilke, Musil, Mandelstam entre outros. Tamanha contribuição à língua e ao público francês lhe rendeu, em 1987, o Grand Prix National de Traduction. O reconhecimento à sua poesia não é menos relevante. Em 2003, é laureado com o importante prêmio Goncourt e, em 2014, entra para o seletíssimo grupo de escritores publicados em vida na prestigiada coleção Bibliothèque de la Pléiade, editada pela Gallimard. Uma semana após sua morte, a editora publicaria ainda seus últimos textos: Le dernier livre de madrigaux e La clarté Notre-Dame.

Comecei a ler mais sistematicamente e a traduzir despretensiosamente Jaccottet há cerca de seis anos, motivado por conversas com o poeta e amigo Sérgio Alcides, que já vinha traduzindo, bem antes de mim, poemas esparsos do poeta suíço. Também contribuíram bastante para a minha aproximação do poeta leituras de críticos que a ele se dedicaram, como Jean-Pierre Richard, Jean-Michel Maulpoix e Jérôme Thélot, para citar apenas três.

Desde o início de seu percurso, Jaccottet se apresenta como “o ignorante”, poeta que avança às cegas, sempre hesitante: “A partir da incerteza avançar de todo modo. Nada adquirido, pois toda aquisição não seria paralisia? A incerteza é o motor, a sombra é a fonte”, escreve o em uma página do caderno de notas La Semaison. À dúvida e à incerteza vem se juntar a aguda consciência da finitude e da necessidade de regressar, à medida que o tempo passa, à condição de ignorância, obliterada pelo acúmulo e proliferação de fantasmas:

Um homem que envelhece é um homem cheio
de imagens
tesas como ferro através da sua vida,
não esperai que ele cante com esses pregos na
garganta.

 

As imagens, “pregos na garganta”, são, portanto, obstáculos para o canto, para o lirismo. O desejo de clareza e imediatez se converte em crítica da linguagem poética, na busca por uma poesia fiel à “evidência” da natureza: “Quisera falar sem imagens, simplesmente / empurrar a porta…”, “não se vive muito tempo como os pássaros / na evidência do céu”.  A crítica da imagem, inseparável, na poética de Jaccottet, da consciência da impossibilidade de prescindir totalmente dela,  implica em uma “osmose cada vez mais estreita entre a prosa e a poesia”, nas palavras de Fabio Pusterla (no Prefácio à edição das Œuvres de Jaccottet na Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2014, p xxxiii). Essa osmose, contudo, não deve esconder o trânsito tenso que o poeta realiza entre as fronteiras da poesia. Trata-se aqui, mais uma vez, da vocação crítica do lirismo de Jaccottet, poeta que, nas palavras de Jean-Michel Maulpoix (Pour un lyrisme critique. Paris: José Corti, 2009, p. 212), “sempre fala acusando ao mesmo tempo a insuficiência da palavra”. É o mesmo crítico que dirá, agora a respeito do lirismo contemporâneo em geral, que este jamais “se satisfaz nem com os charmes da imagem, nem com os enunciados prosaicos. Ele realiza a experiência dos limites do discurso virando as costas sem cessar para a metáfora e o prosaísmo. O que importa a ele é a trajetória, o vai-e-vem de um a outro” (Ibid, p. 33).

A desconfiança em relação à palavra poética não coincide, assim, com a adesão ao discurso especulativo, por exemplo. A depuração à qual Jaccottet submete sua poesia deságua numa espécie de canto baixo ou de baixo, para lembrar o título do livro de 1974  (Chants d’en bas), um canto destinado a coincidir com a própria “respiração do mundo”, se me permito utilizar outra expressão de Pusterla (Ibid, p. xxii). E aqui reside, a meu ver, o maior desafio ao tradutor de Jaccottet, recuperar essa espontaneidade meditada, essa proximidade com a “evidência do céu”, do real, da natureza, que sua poesia sistematicamente persegue, sempre ciente, contudo, de seus próprios limites.

A consciência aguda da finitude e dos limites da palavra fará Jaccottet se interessar pela luz efêmera dos dias, das velas e brasas, imagens que reluzem na fronteira com a escuridão:

 

À breve rosa do céu de inverno
oferece-se este fogo de brasas
que pouco resistiria na mão.

 

Essa luz, captada sempre em estágio de esgotamento, como no fogo da brasa, é, em Jaccottet, propriedade das próprias coisas, é colhida na imanência dos elementos da própria natureza. Nesse sentido, sua poesia é absolutamente fiel a este mundo, a seus mistérios e contradições, e jamais recorre a respostas esotéricas, que extrapolam o limite da percepção: “Não (…) entrar no irreal; nem sonhar; mas sobretudo, se quisermos, ultrapassar um limiar onde não se vê porta nem passagem”.

Procurei, com a seleção que segue, dar uma pequena mostra desse quadro poético composto pela consciência dos limites do homem e da linguagem – a hesitação de um é sempre a hesitação da outra na obra do poeta – e a reafirmação do desejo de interrogação da natureza e da vida. Acrescentei ainda dois trechos de prosa, um dois quais retirado dos cadernos intitulados La semaison, espaço privilegiado para a compreensão da visão de mundo e da poética de Jaccottet. A obra do poeta suíço, há muito tempo consolidada no âmbito da poesia de língua francesa e da literatura europeia em geral, ainda aguarda uma tradução de fôlego para o português brasileiro, que viesse, de preferência, acompanhada de uma edição à altura da importância de Jaccottet para a poesia dos séculos 20 e 21.

***

O ignorante

 

Quanto mais envelheço mais cresço em ignorância,
tanto mais vivi, menos possuo e menos eu
reino.
Tudo o que tenho é um espaço ora
nevado ora brilhante, porém jamais habitado.
Onde está o doador, o guia, o guardião?
Permaneço no meu quarto e primeiro me calo
(o silêncio entra como criado para colocar um pouco
de ordem),
e espero que uma a uma as mentiras se afastem:
o que resta? O que resta a esse moribundo
que tanto o impede de morrer? Que força
ainda o impele a falar entre as quatro paredes?
Poderia eu saber, eu, o ignaro, o inquieto?
Porém o escuto verdadeiramente falar, e sua
….palavra
penetra com o dia, ainda que muito vaga:

“Como o fogo, o amor só estabelece sua luz
na falta e na beleza dos bosques em
cinzas…”

 

L’ignorant

 

Plus je vieillis et plus je croîs en ignorance,
plus j’ai vécu, moins je possède et moins je
règne.
Tout ce que j’ai, c’est un espace tour à tour
enneigé ou brillant, mais jamais habité.
Où est le donateur, le guide, le gardien?
Je me tiens dans ma chambre et d’abord je me tais
(le silence entre en serviteur mettre un peu
d’ordre),
et j’attends qu’un à un les mensonges s’écartent :
que reste-t-il? que reste-t-il à ce mourant
qui l’empêche si bien de mourir? Quelle force
le fait encor parler entre ses quatre murs?
Pourrais-je le savoir, moi l’ignare et l’inquiet?
Mais je l’entends vraiment qui parle, et sa
parole
pénètre avec le jour, encore que bien vague :

“Comme le feu, l’amour n’établit sa clarté
que sur la faute et la beauté des bois en
cendres…”

[L’ingnorant]


A partir da incerteza avançar de todo modo. Nada adquirido, pois toda aquisição não seria paralisia ? A incerteza é o motor, a sombra é a fonte. Eu caminho por falta de lugar, falo por falta de saber, prova de que ainda não estou morto. Gaguejando, ainda não fui derrubado. Aquilo que faço não me serve de nada, mesmo se foi aprovado, tido como uma etapa concluída. Mágico da insegurança o poeta… palavras certeiras de Char. Se respiro, é que nunca sei nada. Terra movente, horrível, requintada, diz outra vez Char. Nada explicar, mas pronunciar com exatidão.
Mas como recomeçar? Tudo se resume nisso. Por que caminho torto, indireto? Por que ausência de caminho? A partir da privação, da fraqueza, da dúvida? Com a ajuda do esquecimento do que foi feito, do desprezo pelo que é feito e aplaudido, aconselhado ou intimado aos escritores de hoje.

 

À partir de l’incertitude avancer tout de même. Rien d’acquis, car tout acquis ne serait-il pas paralysie ? L’incertitude est le moteur, l’ombre est la source. Je marche faute de lieu, je parle faute de savoir, preuve que je ne suis pas encore mort. Bégayant, je ne suis pas encore terrassé. Ce que j’ai fait ne me sert à rien, même si ce fut approuvé, tenu pour une étape accomplie. Magicien de l’insécurité le poète… juste parole de Char. Si je respire, c’est que je ne sais toujours rien. Terre mouvante, horrible, exquise, dit encore Char. Ne rien expliquer, mais prononcer juste.
Comment recommencer pourtant ? Tout est là. Par quel chemin détouré, indirect ? Par quelle absence de chemins ? À partir du dénuement, de la faiblesse, du doute. Avec l’aide de l’oubli de ce qui fut fait, du mépris de ce qui est fait et applaudi, conseillé ou intimé aux écrivains d’aujourd’hui.

[La semaison , excerto]


Quisera falar sem imagens, simplesmente
empurrar a porta…
…………………………Tenho receio demais
para tanto, insegurança, por vezes piedade:
não se vive muito tempo como os pássaros
na evidência do céu,
………………………..e de volta à terra
não se vê neles precisamente mais que
imagens
ou sonhos.

 

J’aurais voulu parler sans images, simplement
pousser la porte…
…………………………J’ai trops de crainte
pour cela, d’incertitude, parfois de pitié :
on ne vit pas longtemps comme les oiseaux
dans l’évidence du ciel,
…………………………et retombé à terre,
on ne vit plus en eux précisément que des
images
ou des rêves.

 

[Chant d’en bas]


Um homem que envelhece é um homem cheio
de imagens
tesas como ferro através da sua vida,
não esperai que ele cante com esses pregos na
garganta.
Outrora a luz nutria sua boca,
agora ele pensa e se retrai.

Ora, pode-se pensar sobre a dor, sobre a
alegria,
demonstrar, parece, quase facilmente
a inanidade do homem. Pode-se falar
como eu falo agora neste quarto
que ainda não está em ruína, por esses lábios
que o fio da morte ainda não costura,
indefinidamente.
……………………..Contudo, dir-se-ia
que essa espécie de palavra, breve ou prolixa,
sempre autoritária, escura, como cega,
não atinge seu objeto, nenhum objeto, girando
sem fim sobre si mesma, cada vez mais vazia
enquanto além, mais longe que ela ou simples-
mente
ao lado, reside aquilo que ela por muito tempo procurou.
As palavras deveriam então dar a sentir
aquilo que não atingem, que lhes escapa,
que não controlam, seu avesso?

Outra vez me perco nelas,
outra vez se escondem, não faço mais
seu justo uso,
……………………..quando sempre mais longe
se furta o desconhecido resto, a chave dourada
e o dia já vai caindo, o dia dos meus olhos…

 

Un homme qui vieillit est un homme plein
d’images
raides comme du fer en travers de sa vie,
n’attendez plus qu’il chante avec ces clous dans
la gorge
Autrefois la lumière nourrissait sa bouche,
maintenant il raisonne et se contraint.

Or, on peut raisonner sur la douleur, sur la
joie,
démontrer, semble-t-il, presque aisément
l’inanité de l’homme. On peut parler
comme je parle à présent dans cette chambre
qui n’est pas encore en ruine, par ces lèvres
que ne coud pas le fil de la mort,
indéfiniment.
…………………….Toutefois, on dirait
que cette espèce-là de parole, brève ou prolixe,
toujours autoritaire, sombre, comme aveugle,
n’atteint plus son objet, aucun objet, tournant
sans fin sur-elle-même, de plus en plus vide,
alors qu’ailleurs, plus loin qu’elle ou simple-
ment
à côté, demeure ce qu’elle a longtemps cherché.
Les mots devraient-ils donc faire sentir
ce qu’il n’atteignent pas, qui leur échappe,
dont ils ne sont pas maîtres, leurs envers ?

De nouveau je m’égare en eux,
de nouveau ils font écran, je n’en ai plus
le juste usage,
…………………….quand toujours plus loin
se dérobe le reste inconnu, la clef dorée,
et déjà le jour baisse, le jour de mes yeux…

 

[À la lumière d’hiver]


À breve rosa do céu de inverno
oferece-se este fogo de brasas
que pouco resistiria na mão.

(“Isso não quer dizer nada, dirão,
“isso não cura nada,
não enxugaria sequer uma lágrima…”)

Contudo, vendo isso, pensando isso,
no tempo de tomá-lo apenas
de ser tomado apenas,
não demos, sem nos mexer, um passo
para além das derradeiras lágrimas?

 

À la brève rose du ciel d’hiver
on offre ce feu de braises
qui tiendrait presque dans la main.

(« Cela ne veut rien dire », diront-ils,
« cela ne guérit rien,
ne sécherait même pas une larme… »)

Pourtant, voyant cela, pensant cela,
le temps d’à peine le saisir,
d’à peine être saisi,
n’avons-nous pas, sans bouger, fait un pas
au-délà des dernières larmes ?

[Après beaucoup d’année]


Coisa dada ao passante que pensava em outra coisa ou não pensava em nada, dir-se-ia que essas flores, por mais insignificantes que sejam, o “deslocam” de alguma forma, invisivelmente; o fazem, imperceptivelmente, mudar de espaço. Não, todavia, entrar no irreal; nem sonhar; mas sobretudo, se quisermos, ultrapassar um limiar onde não se vê porta nem passagem.

 

Chose donnée au passant qui pensait à tout autre chose ou ne pensait pas à rien, on dirait que ces fleurs, si insignifiantes soient-elles, le “déplacent” en quelque sorte, invisiblement ; le font, imperceptiblement, changer d’espace. Non pas, toutefois, entrer dans l’irréel, non pas rêver ; mais plutôt, si l’on veut, passer un seuil là où l’on ne voit ni porte, ni passage.

[Et, néanmoins]


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