Não esquecer, sempre lembrar
O escritor David Diop, autor de 'Irmão de alma' (Nós), romance belo e tremendo (Foto: Divulgação)
O romance Irmão de alma (Editora Nós) do escritor franco-senegalês David Diop, publicado no ano das comemorações do centenário do fim da Primeira Guerra Mundial, alcançou êxito entre críticos e leitores na França. As razões para isso são muitas, como verão os leitores brasileiros através da cuidadosa tradução da obra realizada por Raquel Camargo.
Os dramas da Primeira Guerra, desvendados paulatinamente, realçam a cada novo capítulo a mesquinhez dos interesses políticos que resultaram em sofrimento e morte de um grande número de pessoas. A partir da correspondência oficial e de enviados ao front, Diop desentranha a participação dos soldados da Costa Ocidental da África no conflito. Devido à submissão das populações de áreas como o Senegal ao Império francês, jovens africanos vivenciaram experiências terrificantes nos confrontos com o exército alemão. O governo francês, por seu turno, valeu-se dos estereótipos racistas como tática de guerra, alardeando – para amedrontar os alemães – o “aspecto selvagem” dos negros ávidos por degolar os seus oponentes.
Lançado à fúria dos combates, o jovem Alfa Ndiaye revê através da narrativa a transfiguração trágica da sua vida e as dos seus companheiros. Todos são golpeados por uma guerra cujos articuladores, apesar das mãos limpas, vão sendo percebidos pelo leitor como portadores de uma crueldade maior do que aquela que estimulam.
Irmão de alma é um romance belo e tremendo, que evoca do sagrado a força simultânea da criação e da destruição. É um romance perturbador por evidenciar que a aferição do mundo com base no pensamento (uma das mais refinadas capacidades humanas) pode nascer, paradoxalmente, da guerra e de sua potência para arruinar o próprio pensamento. Ao testemunhar a perda de seu amigo-irmão, Ndiaye denuncia a miséria, os saques, as violações e a morte decorrentes daquilo que os homens fazem na guerra.
Ao mesmo tempo, Ndiaye questiona o sentido do pensamento em meio à barbárie, desnudando os imperativos contraditórios que levam o sujeito a ser ainda mais ameaçador do que o próprio mal. Com isso, demonstra que as ações ditadas pelo dever se contrapõem, às vezes, às escolhas que precisam ser tomadas diante de uma nova circunstância. Esse instante crucial de aguçamento da consciência leva o narrador a se debater entre a moral herdada dos ancestrais e o risco de derivar para uma postura ética que, a partir da sua escolha, o obriga a fundar uma outra realidade: “eu não escutaria mais a voz do dever, a voz que ordena, a voz que impõe o caminho.”
À medida que age no contexto de uma brutalidade intencional, Ndiaye coloca em xeque a simetria dos valores humanos. Guiado pela extrema violência (do jovem soldado? do homem branco europeu? de ambos?), Ndiaye delineia o contraste entre a liberdade de pensar e a restrição do modo de agir. Demonstra também que o pensamento livre, nascido da tragédia, é obsceno por desvendar os níveis obscuros da consciência humana. Se isso se revelou como a grande luta interior de Ndiaye (“Meus pensamentos pertencem apenas a mim, posso pensar o que quiser.”/ “eu me permiti impensável.”), que colocou em risco suas relações com as tradições do seu grupo, por outro lado, resultou no modo de agir desejado pelo capitão francês que esperava dele a aniquilação do oponente.
Irmão de alma é um romance
notável porque Diop infiltra
o olhar da literatura nas frestas
dos eventos parcialmente
elucidados pela investigação
histórica e sociológica.
Para dar conta das guerras pessoais vividas pelos soldados africanos dentro da Grande Guerra, Diop estrutura a narrativa levando em conta a fragmentação da memória. Os estilhaços das sensações são reconectados de forma precária, gerando uma narrativa de culpa-e-arrependimento, preservação-e-perda, afirmações-e-negativas que se equivalem e se contrapõem nos enunciados. No entanto, essa precariedade consiste num recurso narrativo que aponta – deixando para o leitor elucidar – as lacunas das complexas relações sociais que servem de pano de fundo para o romance.
Em Irmão de alma o caráter literário se impõe sobre o pragmatismo do fato histórico, insinuando a dificuldade de se estabelecer o limite entre a lucidez e a loucura, e de se delinear, na obscuridade do front, o que é o certo e o que é o errado. Diop marca estilisticamente essa dubiedade recorrendo à repetição, um recurso de alto rendimento semântico nos processos da oralidade. Para que o narrador e, talvez, o leitor não se percam nas flutuações da memória fragmentária e nas contradições dos argumentos, Diop utiliza blocos de frases que perpassam a narrativa. Como se fossem refrões, eles nos recordam a densidade e o esgarçamento da trajetória de Ndiaye, visto a um só tempo, como o “filho do velho homem”, oriundo do totem do leão e como o deserdado que pergunta/responde a si mesmo: “Quem sou eu? Já não sei mais.”
David Diop atravessa os cenários do colonialismo e da Primeira Guerra fazendo-nos entrever os personagens que tensionam a tradição, ora sustentando, ora rompendo as suas teias. Mais do que descrever práticas culturais ou analisar fatos históricos, Diop desbasta e esculpe a realidade com os instrumentos da ficção, fundando um outro real, polissêmico e deslizante. Sob esse aspecto, Irmão de alma exibe similaridades temáticas (denúncia da violência, ruptura dos valores tracionais) e formais (fragmentação do enredo, uso da oralidade) com os extraordinários romances O bebedor de vinho de palmeira (de Amos Tutuola), Nós, os do Makulusu (de Luandino Vieira), Terra sonâmbula (de Mia Couto) e Mapas (de Nuruddin Farah).
Diop mapeia as tensões que marcaram, e ainda marcam, as relações entre a Europa e os imigrantes provenientes das ex-colônias. No palco da Primeira Guerra, essas contradições se aguçaram, revelando o choque linguístico entre os jovens africanos e os franceses postados diante de um inimigo comum; o conflito entre os próprios africanos originários de famílias com hábitos culturais divergentes e, por fim, a grande contradição que levava os africanos a lutarem por democracia sob a bandeira do império que os oprimia.
Há muito a se dizer sobre os impactos desse livro, a um só tempo, sonho e pesadelo. Porém, cabe aos leitores o desafio de experimentarem a iniciação ao desconhecido que ele nos proporciona. Ao final da jornada talvez esbocemos uma resposta à pergunta de Ndiaye: “…por que a espessura do meu corpo e a sua força superabundante não poderiam também significar paz, tranquilidade e serenidade?”
Edimilson de Almeida Pereira é professor na Faculdade de Letras – UFJF
Irmão de alma, David Diop, Nós
Tradução: Raquel Camargo
128 páginas – R$52