Arcas de Babel: André Capilé traduz Danez Smith
André Capilé e Danez Smith (Fotos: Vinicius Vargas e Brent Dundore)
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Para esta décima edição, o poeta, professor e performer André Capilé traduz e apresenta uma amostra inédita da série de poemas do poeta estadunidense Danez Smith que está no prelo.
André Capilé nasceu em Barra Mansa, cidade do interior sul fluminense. É professor, poeta e performer. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), é mestre em estudos literários pela PUC-RIO e doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela mesma instituição. É um dos editores da revista Escamandro. Publicou rapace (2012), pela editora TextoTerritório; balaio (2014), pela coleção megamini da 7letras; muimbu (2017) e paratexto (2019), ambos pela Edições Macondo; rebute (2019) e chabu (2019), ambos pela editora TextoTerritório. Traduziu “The Love Song of J Alfred Prufrock” como “A Canção de Amor de J Pinto Sayão” para a coleção Herbert Richers da Edições Macondo e, em 2020, será publicada sua tradução de Don’t call us dead (Não digam que estamos mortos), de Danez Smith.
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Danez Smith é poeta negre, queer, HIV-positivo e performer, nascido em St. Paul, Minnesota, em 1989. Publicou [insert] boy (2014), Don’t call us dead (2017) e Homie (2020). Danez recebeu bolsas da Poetry Foundation, McKnight Foundation, Montalvo Arts Center, Cave Canem e National Endowment for the Arts, e seu trabalho tem sido elogiado pela crítica especializada em veículos como The New York Times, The Guardian e The New Yorker. Danez é membro do Dark Noise Collective e co-apresenta, com Franny Choi, o podcast VS, patrocinado pela Poetry Foundation e Postloudnes. Na última década, Danez Smith – que é não binário e usa os pronomes them/they para se definir – está entre poetas mais celebrados de sua geração, situando-se na vanguarda de um movimento afro-americano que viu os artistas da poesia falada se moverem dos palcos e bastidores para os livros e prêmios de sucesso. Não digam que estamos mortos será publicado pela Bazar do Tempo em setembro de 2020.
Fui convidado a estar com Danez Smith nos últimos meses, vivendo por dentro da constituição de sua voz & corpo, na senda aberta de temas ásperos, porém necessários, como corpos dissonantes da não-binaridade, o universo intenso no uso de aplicativos de encontros, a dinâmica do jogo entre células & sangue quando se trata de HIV, e, também, o tema perseguido na maior parte do tempo em Não digam que estamos mortos: a violência contra o corpo negro.
Em amplo aspecto são jogos, por dentro dos liames da língua, que estão aproximados das nossas mazelas diárias como corpos no mundo. Também por isso nos dizem respeito. O modo como Danez compõe o circuito ativo de seus poemas, com uma sintaxe vincada entre a rotina da rua & a empostação vocal dos pastores, fala muito perto à performance mixada entre baixo & alto no aparato da linguagem no poema. Há propósito. Forte, em largo espectro, e os fantasmas são toda uma presença em seus textos, tomando outra visada acabo escolhendo poemas em tom menor, dando, para aqueles que conhecem suas dinâmicas de fala, outra sorte de movimentos.
Os poemas que divido com você, que por ora nos lê em tela, apresentam Danez em tom meditativo, em um primeiro instante, até explodir numa combinação estranhíssima (e de difícil tradução entre célula & celas), fechando com um poema que entrega uma de suas características marcantes: a fusão de certo humor histriônico, muito cabido no desrecalque posicional gerado por comediantes negros & negras nos palcos estadunidenses, eivados duma autoironia atormentadora para, então, em seu ponto de virada, contorcerem os sentidos com a gravidade necessária pros dias que seguem. – André Capilé
esta noite, em Oakland
não vim até aqui pra cantar blues.
ultimamente, eu abro minha boca
& saem malmequeres, ameixas amarelas.
eu vim pra fazer do céu um jardim.
dai-me chuva ou dai-me mel, ó senhor amado.
o céu não nos deu água este ano.
rodo de bike até um garoto, chegando lá
o que faremos não será bonito,
ou mesmo amor, mas há de ser merecido.
tenho buscado homens pra regar a safra.
vem, esta noite declaro devemos nos mexer
em vez de orar. esta noite, a leste daqui,
dois caras, um que se veste com o que poderia ser sangue
& um que se veste com o que poderia ser sangue
antes do ferimento, encontra & cara de cu
& Deus, esta noite, deixe eles dançarem! esta noite
armas não existem. esta noite, a polícia
voltou-se pro seu Deus em busca de perdão.
esta noite, não sepultamos nada, servimos Deus
sem precisar de pás, Deus com anca dura
& um mano na cadeia. esta noite, as prisões se tornaram tulipas
& prisioneiro quer dizer o que dança em um campo de amarelos.
esta noite, que todos sejam seu próprio senhor.
onde quer que se encontrem duas pessoas, há de ser reunião
de luzes ancestrais. vamos dilapidar o brilho marmóreo da lua
gritando nossos nomes pras estrelas até sermos
as estrelas. Ó precioso Deus! Ó doce cidade negra!
estou bêbado & tenho sede. quando eu me achegar no garoto
que me deixa exercitar fome com ele
não vou dar-lhe o nome do teu fantasma mais novo
vou dar-lhe o meu corpo & o que ele fará com isto
não é da minha conta, porém direi olha,
aguentei o dia todo, e ainda não choveu
o tiro ainda não atravessou a ferida
& ele dirá esta noite, eu quero te pegar
como faz a polícia, desarmado & de súbito.
[excerto de “não é uma elegia”]
você espera
que eu dance
quando todos os dias alguém
que se parece com todo mundo
que eu amo está num tiroteio
armado só com a pele?
olhe atentamente
e você encontrará um funeral
espumando nas quinas
da minha boca, minha boca
faminta de preces
a fazer de tudo uma mentira.
leitor, o que te faz
sentir-se a salvo? branco?
qual é a onda
de dançar quando você não
dança pra longe o fantasma?
qual é o gosto da alegria
quando não é seguida
por o que será o amanhã?
leitor, é manhã de novo
&, em algum lugar, uma mãe
está passando as mãos dela
pelos ombros frios de sua semente
beijando o que resta
daquele rosto. cadê
a alegria dela? o que ela
faz com uma criança
que vai estragar em breve?
& da criança, o quê?
qual foi o último sonho deles?
quem cantou para eles
enquanto o mundo se enfurnava
em pó?
qual marcador de cura acabamos de matar?
qual lenda recusamos
da lenda deles? não tenho mais
espaço pro luto.
agora está em todo lugar.
ouça minha risada
& se você prestar atenção
escutará um velório.
começou bem aqui
um humilde de joelhos. eu deixei ele me gravar, queria
me assistir ser monstro, não sabia que ele me deixaria
com abutres roçando minhas veias. eu: leão morto que segue
morrendo. ele: moscas que não deixam meu sangue em paz. o demônio
dorme nos meus olhos, minha língua, meu pau, meu fígado, meu coração.
todo lugar onde houver sangue, ele dorme. & eu sabia antes de saber
& como, não sei contar. fantasmas sempre foram reais
& eu os aprendi agora. dizem que não é uma sentença de morte
como costumava ser. mas ainda é vida. morrerei nesta célula sanguínea.
estou aprendendo a me tornar todo o espaço que preciso. hoje eu ri.
por um segundo fiquei desassombrado. eu era o sol, não a luz
de alguma estrela morta. era o antes. estava negativo. mas não estou.
eu sou uma casa inchada de mortos, mas ainda uma casa.
a cama onde aconteceu é onde durmo.
imprudentemente
para Michael Johnson
a cela-sangue leva à cela
………..tanto xilindró quanto quarentena
peito a peito, homens ficam em silêncio
……………cê tá detido, sob um feitiço
cê tá em tratamento? PrEP? (que porra é essa?)
……………peçonha:pecado:cobra:caralhaço
………………..eu tenho banzo da célulacela
……..o diagnóstico é o julgamento que basta
cê pegou a marra? a gonorreia? a caxumba?
………eu digo clemência, perigo & branquelos escutam o que querem
era verão & geral quis estar apaixonado
………eu tarra bebeno, eu tarra bebeno
eu só quero dançar com alguém
……………podia tudo ser tão simples
…………………mas cê não sabe meu nome
……………deixa quieto. não fala nada
muitas histórias sobre bichice são sobre vexames
……. . . não deitarás em falso (com os homens do mundo). . .
……………eu tenho banzo na contagem das células
dentro de uma cela: um homem/dentro de suas celas: um homem
……………cê consegue guardar segredo?
uma história de sangue: do sacramento à sentença
………o vermelho o branco o azul das minhas veias
uma nota sobre Vaselina
louve a música úmida das palmas frenéticas
assento sanitário de plástico & dedos brilhosos
teus olhos fechados, lembram como Sherrie desdobrou-
se em matemática, ou como Latrell deu um rolê por aí
depois da educação física, em sua cuequinha
& inegável novíssima macheza. louve
o infindável pote de lubrificante. tem sido o mesmo
vazio mas não vazio em toda a tua vida.
esta mesma Vaselina usada por você pra polir
a parte favorita do teu corpo, tua mãe usou
pra lambuzar o rosto quando a dona Lorelle, lá da
R. Haia, a chamava de puta zói-de-lula
nos idos de 76, o mesmo lubrificante que a tua tia usava
pra fazer um globo espelhado da boca preta e miúda dela, quando
decidiu ser hora de pô-lo em Craig no rinque de patinação.
este mesmo pote tamanho família, que tem sido jovial
com todos os teus anciãos, acalmou a gota do Vovô,
a Vovó queimada de fritura & as chagas das manhãs de sábado.
louvai o petróleo. quão graxo & bendito
o espaço por entre os teus dedos
lâmina flexível entre polegar & indicador
te envia pras entranhas das estrelas
lembre deste aperto quando os caras usarem a coisa
a te preparar pro desejo deles, quando te largarem
latejando, tenro, & assobiando pela boca errada,
teus ossos trocados por jugos. você nunca terá suficiente
cuspe, & é assim que os caras vão te querer sempre: lesma limo
liso de um homem, contramãos de túnel convulsivo.
***
tonight, in Oakland
i did not come here to sing you blues.
lately, i open my mouth
& out comes marigolds, yellow plums.
i came to make the sky a garden.
give me rain or give me honey, dear lord.
the sky has given us no water this year.
i ride my bike to a boy, when i get there
what we make will not be beautiful
or love at all, but it will be deserved.
i’ve started seeking men to wet the harvest.
come, tonight i declare we must move
instead of pray. tonight, east of here
two men, one dressed in what could be blood
& one dressed in what could be blood
before the wound, meet & mean mug
& God, tonight, let them dance! tonight
guns don’t exist. tonight, the police
have turned to their God for forgiveness.
tonight, we bury nothing, we serve a God
with no need for shovels, God with a bad hip
& a brother in jail. tonight, prisons turn to tulips
& prisoner means one who dances in a yellow field.
tonight, let everyone be their own lord.
let wherever two people stand be a reunion
of ancient lights. let’s waste the moon’s marble glow
shouting our names to the stars until we are
the stars. O, precious God! O, sweet black town!
i am drunk & i thirst. when i get to the boy
who lets me practice hunger with him
i won’t give him the name of your newest ghost
i will give him my body & what he does with it
is none of my business, but i will say look
i made it a whole day, still, no rain
still, i am without exit wound
& he will say tonight, i want to take you
how the police do, unarmed & sudden.
[excerto de “not an elegy”]
do you expect
me to dance
when every day someone
who looks like everyone
i love is in a gun fight
armed with skin?
look closely
& you’ll find a funeral
frothing in the corners
of my mouth, my mouth
hungry for prayer
to make it all a lie.
reader, what does it
feel like to be safe? white?
how does it feel
to dance when you’re not
dancing away the ghost?
how does joy taste
when it’s not followed
by will come in the morning?
reader, it’s morning again
& somewhere, a mother
is pulling her hands
across her seed’s cold shoulders
kissing what’s left
of his face. where
is her joy? what’s she
to do with a child
who’ll spoil soon?
& what of the child?
what was their last dream?
who sang to them
while the world closed
into dust?
what cure marker did we just kill?
what legend did we deny
their legend? i have no more
room for grief.
it’s everywhere now.
listen to my laugh
& if you pay attention
you’ll hear a wake.
it began right here
a humbling at my knees. i let him record me, wanted to
watch me be monster, didn’t know he’d leave me
with vultures grazing my veins. me: dead lion who keeps
dying. him: flies who won’t leave my blood alone. the devil
sleeps in my eyes, my tongue, my dick, my liver, my heart.
everywhere blood is he sleeps. & i knew before i knew
& can’t tell you how. ghosts have always been real
& i apprentice them now. they say it’s not a death sentence
like it used to be. but it’s still life. i will die in this bloodcell.
i’m learning to become all the space i need. i laughed today.
for a second I was unhaunted. i was the sun, not light
from some dead star. i was before. i was negative. but i’m not.
i am a house swollen with the dead, but still a home.
the bed where it happened is where i sleep.
recklessly
for Michael Johnson
the bloodprison leads to prison
………jail doubles as quarantine
chest to chest, men are silent
………you’re under arrest, under a spell
are you on treatment? PrEP? (wats dat?)
………venom:sin:snake:cocksize
…………………i got the cellblock blues
………the diagnosis is judgment enough
you got the suga? the clap? the mumps?
………i say mercy, danger & white boys hear what they want
it was summer & everyone wanted to be in love
………i been drankin, I been drankin
i just wanna dance with somebody
………it could all be so simple
……………..but you don’t know my name
………don’t ask. don’t tell
many stories about queerness are about shame
………. . . shall not lie (with mankind) . . .
………. . . i got the cell count blues
inside a cell: a man/inside his cells: a man
………can you keep a secret?
a history of blood: from sacrament to sentence
………the red the white the blue of my veins
a note on Vaseline
praise the wet music of frantic palms
plastic toilet cushion & shiny fingers
your eyes shut, rebuilding how Sherrie bent
over in math or how Latrell walked around
after gym class, his underwear too small
& brand-new manhood undeniable. praise
the endless tub of grease. it’s been the same
empty but not empty your whole life.
this very same Vaseline you’re using to polish
your favorite body part was used by your mama
to slick her face when Ms. Lorelle from over
on Hague St. called her a frog-eyed bitch
back in ’76, same grease your auntie used to make
a disco ball of her small, brown mouth when she
decided it was time to put it on Craig at the skating rink.
this same family-sized tub has been young
with all your elders, soothed Grandpa’s gout
Grandma’s fryer burns & Saturday morning bruises.
praise petroleum. how oily & blessed
the space between your fingers
supple blade between thumb & index
sends you to the guts of stars
remember this grip when men use the stuff
to prepare you for their want, when they leave you
throbbing, tender, & whistling from the wrong mouth
your bones replaced by yokes. you will never have enough
spit, & this is how men will want you always: slug slime
slick of a man, twitching tunnel of left hands.