Entre os fios de Bernice
Segundo a lenda, Berenice II, rainha do Egito, cortou seu cabelo em oferecimento à Afrodite, pedindo à deusa proteção ao seu marido, que viajava em uma expedição à Síria. Seus cabelos sumiram e deram origem à constelação Coma Berenices, de acordo com o mito. O uso do mesmo mote, a subtração capilar, e um nome semelhante, com a subtração de um “e”, personificaram a rainha egípcia nos Estados Unidos do século 20 no conto Bernice corta o cabelo, de F. Scott Fitzgerald.
Com os mesmo salões luxuriantes, o jazz, e as relações pessoais da opulenta burguesia, familiares ao leitor de O grande Gatsby, o conto de Fitzgerald narra as interações de Bernice com sua prima, Marjorie, em cuja casa passa as férias de agosto. Ambas representam dois modelos distintos de feminilidade, como explica Juliana Cunha, tradutora do conto: “Uma mais boba, outra mais popular e desenvolta. A prima popular resolve reformar a prima boba. Para isso, tem que explicar a ela como as coisas funcionam. Bernice, a protagonista, é uma pessoa daquele tempo, daquela sociedade, mas que não entende como aquele mundo funciona. Já Marjorie entende tudo. É essa pessoa que conhece e domina o próprio tempo e espaço”.
Na tentativa de introduzir a prima em seu mundo de mulher madura e sedutora, Marjorie “acaba fazendo um favor ao leitor, ela o guia por aquele cenário, explica o que se espera de uma moça daquele tempo. Ela explicita coisas que ficam subentendidas, então é útil para um leitor de fora, afastado no tempo e no espaço”, nas palavras de Juliana Cunha. É por esse prisma que se torna chocante o fato de Bernice, influenciada por Marjorie, que tinha inveja da recém-conquistada popularidade da prima, ter cortado os longos cabelos. Atitude na época concebível apenas para mulheres liberais e revolucionárias.
O conto, originalmente compondo a coletânea Flappers and Philosophers, publicada em 1920, ganha agora uma nova edição pela editora Lote 42. Com um projeto editorial diferenciado, ilustrações de Mika Takahashi, o livro não se esgota no texto de Fitzgerald: transborda pelos fios do cabelo de Bernice, simulados por linhas no meio do livro. Em suma um projeto que surgiu na troca entre todos envolvidos, como relata João Varella, editor geral: “A Juliana tinha a proposta de fazer algo acessível para os adolescentes. Para dar essa ‘cara’ contemporânea, chamamos a Mika Takahashi, que é uma ilustradora de mão cheia, e o Daniel Justi para fazer o projeto gráfico. Foi dele a ideia de usar os fios de costura como um fitilho, emulando a ideia de cabelos. O leitor que quiser pode cortar. As demais ideias e detalhes foram discutidas entre todos os envolvidos com o livro. É o nosso jeitão de editar, com muito diálogo”.
O conto, considerado moderno pelo seu “frescor e pela temática, que aborda questões femininas atualmente em voga”, como comenta Varella, foi pensado para um publico adolescente, por retratar o universo juvenil. A tradução, não obstante, é rigorosa, como assevera Juliana: “Nós decidimos não adaptar o texto, então, eu não tentei facilitar de nenhum modo, não escolhi palavras menos difíceis, não simplifiquei construções nem inseri explicações para além do que faria para um leitor adulto brasileiro. O conto não tem uma linguagem especialmente rebuscada. Há referências que o leitor não deve pegar. A questão é que não existe ou é muito rara uma leitura com um entendimento total, é importante saber que dá para tocar o barco sem ter captado uma coisinha”.