O lado negro do lado de fora

O lado negro do lado de fora

 

— Num belo dia, você vai flagrar a mulher da sua vida bolinando sua filha. Aí vai lembrar da cachorrada que fez comigo, e vai se arrepender amargamente de ter me trocado por ela. Isso não é uma especulação. Mas um desejo. Um desejo de estupro e vingança que brota do fundo de um coração que – até hoje – não a perdoa e a ama incondicionalmente. Nesse dia irá me procurar como se nós não tivéssemos nos abandonado naquele maldito ponto de táxi. Tá lembrada? Eu nunca esqueci. Desde quando você me implorou para que eu não a deixasse, não fiz outra coisa senão atender seu pedido – a cada segundo, dentro de todas as mulheres que tive, a única coisa que fiz foi renovar minha promessa: você sempre esteve comigo. Só fiz esperá-la. Ah, eu sei que você voltará. Arruinada. Nesse dia, serei o cara mais feliz do mundo, e é claro que guardarei comigo, no meu íntimo, a certeza de a lésbica que você chama de meu amor foi seduzida por sua filha, a menina é igual a você.

Ó, meu caro, diz aí:

E quando, no lugar de provocar asco e repúdio, uma praga desse naipe é motivo de felicidade e libertação?

E quando você, apesar do orgulho e do regozijo íntimo de ser um escroto, procura uma saída retórica para disfarçar a podridão que lhe dá tanto prazer?  Não adianta fingir que não é contigo!: você, como ninguém, é mestre nos ofícios da dissimulação e do autoengano – mas a mim não engana!  – você é tão podre que chega a acreditar sinceramente que  “gritar o lado negro” aos quatro ventos é a mesma coisa que iluminá-lo, confere?

Não aguento, tenho de usar a segunda pessoa: Tu és o senhor de vossas abominações.

E essas abominações garantem: você não é um monstro, além disso você é afável, simpático e tem um lado bom irradiante – todavia essa irradiação é apenas fagulha, você sabe, nós sabemos disso. Aí você constata que a fagulha, apesar de sincera e luminosa, é prisioneira e condenada, e que você não passa de um escravo de seu lado negro. E aí?

Trata-se de uma infelicidade?  Ou é seu objetivo de vida? Diz, e aí?

Se você não diz, digo eu.

Você é pântano que se alimenta de pântano, você é a experiência adulterada, você é a mentira e os aleijões produzidos em sua horta-holocausto, especialista em chafurdar em si mesmo, você sempre consegue trazer mais e mais lixo do fundo do lodo, lodo que é o aconchego de sua alma imunda, você é um grande e rematado filhodaputa. A maior parte do tempo só pensa em vingança, aniquilação, só pensa em ver seus inimigos, e as mulheres que tiveram o bom senso de abandoná-lo, e as filhinhas delas de oito anos, só pensa em ver todo mundo estuprado e na sarjeta.

E quando você separa as moedas de cinco centavos das moedas de um real pra dar pro mendigo?

Aí você está sozinho. Cada vez mais sozinho e só tem uma asa atrofiada que lhe compromete o vôo, mesmo assim você finge que voa e é aplaudido por uma claque de mutilados iguais a você, você é ilusionista de ilusionistas, uma grande fraude que só tem o lado negro a lhe fazer companhia, o lado negro que, às vezes, se enternece e – pasme – abraça as melhores causas, lado negro e petulante que exige respostas de Deus e dos homens e não é atendido, sabe por quê? Porque é tarde demais, e sempre é agora, e agora você só tem a si mesmo e à vertigem e ao travesti que você convida para tomar uma cerveja.

E não bastasse você dentro da noite e a noite dentro de você, você descobre que seu lado negro, além de iluminar as trevas ( não é bem “iluminar”, mas vá lá…) você descobre que seu lado negro também é um fofo, e pensa:  vou pagar pr’esse traveco comer minha bunda porque sou um cara legal e porque quero levar na bunda pelo bem da humanidade, e aí você vai pro motel com o traveco.

Tá vendo?

O traveco lá atrás faturando sua bunda, e você de quatro, depois papai e mamãe, depois é hora de cavalgar por uma estrada colorida, sobe e desce, você entrando e saindo da pica do traveco de todos os ângulos, sorrindo e fazendo caras e bocas pro espelho até a hora que a catinga de merda sobe e empesta o quarto vagabundo, então você pensa na  sua ex-mulher, pensa: ” se aquela vacalesbicamerdalhona me visse agora ia morrer de inveja”, aí você rebola na pica do traveco igualzinho ela rebolava na sua pica, e goza.

Depois, você paga mais 100 reais. Que é pro traveco lhe fazer um favorzinho especial.

Hora de ninar. O traveco vai nina-lo, vamos, peça colo a ele, deite-se sobre o pau mole do homem que acabou de enrabá-lo, aninhe-se literalmente num travesseirinho do caralho, e peça pra ele o chamar de Ciça, que é o nome da sua enteadinha, aquela desgraçada. Aí ele não acerta. O traveco erra o nome da menina.

O que você faz?  Ah, peça educadamente para o filhodaputa olhar na direção do espelho. Tá vendo?

Pietá!! Você é o próprio Cristo desfalecido no colo no traveco. Uma Pietá meio brega e gay demais pros seus padrões estéticos, estátua da liberdade da Havan na horizontal, mas é você mesmo nos braços da Virgem, o traveco é Nossa Senhora, Madonna.

O traveco não acerta chamá-lo pelo nome da menina – para ele é Madona no céu e Lady Gaga na terra. Nesse instante, seu lado negro se ilumina e uma fagulha de tempo vira uma eternidade. Você quase é um cara bom, e resolve insistir no reflexo de Jesus desfalecido, mas o traveco confunde novamente Virgem Maria com a cantora americana, porra, você pensa em assassinar o traveco, e morde a teta dele até arrancar o silicone pelo bico da tampa. Entendeu agora, seu filho da puta?

Aí o traveco dá o pinote. Você ignora a gritaria, e olha pro espelho. Dentro de poucos minutos o gerente do hotel vai chamar a polícia. Tá lá refletido atrás do espelho, o lado negro, sua boca vertendo sangue de traveco, vai lá viado, vomita a mistura de sangue e silicone e respira fundo, aproveita que a catinga de merda socada da sua bunda ainda prevalece sobre o rastro do perfume falsificado que o traveco deixou para lembrá-lo de Jesus e Maria, encha os pulmões de ar-ignomínia, inspira e agora expira, vá até o banheiro e lava as mãos e o rosto, olha pro espelho e recupera o fôlego, isso mesmo, agora sopra um beijo à la Marilin Monroe na direção do seu reflexo – viu?

O canibal, do outro lado do espelho, retribui o beijo e ainda lhe dá uma piscadela de cumplicidade.

Você sabe que aquele cara ali atrás do espelho é você, numa versão muito canastrona do dr. Lecter H. Então, pensa: vou congelar esse puto, vou prendê-lo para sempre atrás do espelho. Aí você olha dentro dos olhos tristes do canibal, aceita o fosso que lhe é oferecido, conta até sete, e cai.

Você está limpo, atingiu a cifra mágica antes mesmo de chegar ao final da contagem. Prendemos seu lado negro. O melhor a fazer, portanto,  é tomar uma ducha fria antes de a polícia chegar. Os policiais chegam acompanhados do gerente do motel e do traveco monoteta ensanguentado. Você aponta o espelho da cabeceira, e aponta o espelho de todas as paredes do quarto, e reproduz, na frente do traveco, dos PMs e do gerente do motel, as posições que foi enrabado, e diz: ali está, um homem aprisionado pelo seu lado negro, ali também, ali e ali, vejam só, vejam como ele fode feito uma lésbica e dá gostoso, vejam como ele se ilude e se desfaz, ali e ali, vejam só o lado negro preso que também é carcereiro de si, vejam como ele é cínico e improvável, notaram a reciprocidade, o equilibro, a asa marrom atrofiada?

— Viram? Assim que funciona um céu de estrelas!

Senhores, senhoras, travestis, autoridades civis e militares. Vejam!  Atrás do espelho! Vejam! O canibal está piscando para voces, agora é tarde demais, vocês são o lado negro do lado de fora, tarde demais.

Aí você anota o telefone do travequinho pruma outra eventualidade, faz uma reclamação qualquer sobre o ar-condicionado e a umidade do quarto, liga pra recepção e diz que consumiu duas latinhas de Coca-Cola, e deseja pêsames e bom dia para as autoridades da mesma forma que você desejou o estupro para sua enteadinha, você faz isso porque  é um homem educado e tem um coração podre que jamais vai parar de sangrar…

Oquei, agora abra as janelas, deixe o ar empestado sair e espalhar o veneno por toda cidade, você cumpriu sua missão, é hora de adejar as asinhas atrofiadas, agora vai, vai embora, vai lá, levanta vôo e sobrevoa o inferno como se nada tivesse acontecido.

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