Tolstói aqui e agora
Esse texto foi lido no Sesc de Pinheiros, dentro do sururu com lambreta de Felipe Hirsch, também denominado “Puzzle”. Ruy Filho me pediu para escrever “a guisa de”… eu achei mais conveniente o imiscuir do que o espiritismo trivial a que estamos acostumados… daí que, em vez de simplesmente ceder o lombo, percorri alguns livros de Tolstói e me permiti ter alguns déjà-vus no lugar dele, e vice-versa (incorporação por incorporação e modéstia, aqui, são entraves). O resultado desse espiritismo que descarta o óleo de fígado de bacalhau, os jalecos, o empolamento e as caretices e formalidades típicas do gênero é este:
O encontro clandestino de Evguêni Ivânovitch com a camponesa Stepanida – que embala a novela inacabada O diabo, escrita por Liev Tolstói –, na verdade, aconteceu em Espírito Santo do Pinhal, corria o ano de 1986. À época, conheci a enfermeirinha Magali e desfrutei de um tesão em suspensão que, até a leitura dessa novela, permanecia intacto e não codificado, digamos assim.
Não que a coincidência de enredos seja pressuposto necessário para que haja uma intersecção entre Stepanida, Magali, eu e Evguêni Ivânovitch, uma vez que – nem é preciso dizer – existem abismos de tempo e geografia instransponíveis. Trato de suspensão e iluminações, mas, sobretudo, falo dos desdobramentos que tanto podem acontecer a partir de um porre de vodca como no tranco de um elevador enferrujado. Quero propor um jogo. Tolstói vai ser o ascensorista desse elevador muito peculiar que nos transportará pruma espécie de torre onde não existe tempo nem geografia – apenas afinidades.
Outra coisa. Tesão, aqui, não é apenas um brinde da libido ou uma força da natureza sem a qual a espécie não chegaria ao fundo do poço onde chegou, mesmo porque no embate com Magali, a enfermeirinha, não houve consumação, apenas o remoer, o desfrute preliminar e o inacabado. Vale lembrar que, apesar do tesão suspenso que redescobri por Magali, Evguêni Ivânovitch e Stepanida se esbaldaram no bosque das aveleiras e bordos, nos barrancos e no celeiro, no almoxarifado, no meio do feno e debaixo do chuveiro (licença poética).
Todavia, a novela O diabo – eis o ponto: – permanece inacabada desde 1859, e o fogo da Magali não foi apagado 127 depois por incompetência e erro de cálculo assumidos aqui e agora. Portanto, “suspendemos”, “inacabamos” e “remoemos”, eu e o conde Liev.
Quero dizer que a sensação de clandestinidade também é a mesma, e não podia ser diferente, pois o humano encontra-se em estado de arrebatamento e suspensão desde os tempos imemoriais de Gilgamesh, rei de Uruk. Incrível que um autor que viveu no século 19 ressuscite o rapaz de 20 anos que eu fui há 27 anos. Incrível, porém perfeitamente verossímil. Senão, vejamos.
A formação da princesinha Macha desde a juventude em Pokróvskoie, sua propriedade feudal, até chegar às grandes festas e bailes em Petersburgo, e o desalento todo, o amor esgarçado, a empolgação e a esperança vã de administrar uma situação incontrolável (casamento) do nascedouro até o final de uma longa jornada de amadurecimento e desilusão serviram-me como um passaporte – vejam só – de reconciliação comigo mesmo, como se as desventuras da princesinha Macha tivessem o poder de realocar meus fracassos amorosos. A partir de Tolstói, passei a enxergar meus naufrágios com outros olhos. Eis que ressuscitei do mundo dos mortos sob outro ponto de vista: quase um personagem.
A leitura de Tolstói, como em pouquíssimos outros autores, tem o poder de ensejar uma avalanche de déjà-vus, somada a inusitadas associações e a uma enxurrada de coincidências reveladoras – pelo menos em mim. O fato de eu não ter vivido sequer o primeiro estágio de uma “Felicidade Conjugal” não anula os casamentos breves, felizes e capengas que tive, nem as outras formas de desconforto e/ou felicidade que experimentei ao longo da vida. Do meio para o final da novela supracitada, ocorre uma briga de casal cuja “batalha entre duas generosidades”, creio, é expressão comum a qualquer relacionamento (“fale de sua aldeia, da TPM de sua mulher e falará do mundo”). Surpreende o fato de que um livro escrito há 154 anos tenha o mesmo vigor e urgência do chifre levado noite retrasada. Ou seja, de página em página, Tolstói conduz o leitor a situações domésticas que, se não foram experimentadas efetivamente, são tão reais em Petersburgo de 1859 como na Alta Mogiana dos anos 1980, ou em Guarulhos do chifre levado anteontem.
Em Anna Kariênina, o agro-boy Liévin me levou à Balneário Camboriú-1995. Na ocasião, fui humilhado por um advogadozinho magricela – lembro como se fosse hoje do rosto de tamanduá, dr. suava pelo focinho. O curioso é que o Jeca, no caso, era ele, o causídico que me subjugou, e eu podia ter passado perfeitamente pelo príncipe Stiepan Arkáditch Oblônski, porém um nobre acuado, trocando os papéis, como se a ordem dos fatores transformasse orgulho e cinismo em timidez e resignação, e, ao mesmo tempo, o resultado dessa transformação ou o “produto” da equação não tivesse sido – para confirmar a regra – minimamente alterado. Liévin, Leon, Lev teria sido o alter ego de Tolstói mais do que a própria Anna Kariênina? Acredito que sim. Acredito porque Tolstói tem o poder de se de amalgamar ao leitor e vice-versa. Todos somos alter egos e personagens.
A própria Anna Kariênina, e a simplicidade majestosa que brota de sua alma perdida, é o espelho de Luciana H., diferente de Magali, mas igualmente suspensa no altar que ergui para ela desde 1986. Se não fosse Anna Kariênina, a conjugação de altares & mulheres permaneceria esquecida e indecifrada na alma daquele garoto apaixonado, que por acaso fui eu mesmo, há quase 30 anos. Um garoto-adulto desde aquela época, latente e, até hoje, intrigado: a simplicidade de Luciana H. não me desce goela abaixo. Se não fosse Tolstói a descrever um baile onde o conde Vrônski se deixa seduzir por Anna, eu jamais poderia desenterrar – e compreender! – esse sentimento que desde sempre esteve presente na minha alma, como se, agora, eu fosse a ingênua Kitty traída pela simplicidade majestática (ou majestosa?) de Anna Kariênina. Simplicidade, aliás, que somente as mulheres buriladas e filhasdaputa têm o poder de exercer, como se as mulheres-altares tivessem o dom de manipular e intimidar seus pretendentes e puxa-sacos despercebidamente, reservando a esses pobre-coitados a figuração, o rodapé de suas histórias.
Tolstói, como nenhum outro autor, é mestre em encoleirar a realidade – o conde leva a bichinha, a realidade, pra fazer cocô como se o quarteirão de sua propriedade não fosse o mundo, porém, ele sabe que é muito mais que isso, o conde é diabolicamente despretensioso, como Anna K., porém jamais se perde em elucubrações, deslumbramentos e exageros – embora seja caudaloso – nem tampouco se dá ao trabalho de recolher as fezes deixadas pelo caminho. O fato é que quando ele e o cãozinho voltam depois do passeio, voltam mais fortes e estridentes – universais, clássicos.
No caso do assassino-narrador de A Sonata a Kreutzer, os vaivéns e as dúvidas de Pozdnitchev – que se transformam em certezas mortais ao longo do texto – foram as mesmas experimentadas pelo adulto recém-inaugurado (eu mesmo) que passou o dia na Remaza ouvindo palestras de autoestímulo em 1993 (infelizmente eu não era um assassino, apenas um desempregado sonhador), mas, enfim, o instinto do matador ou a ânsia de dar termo à situação-limite são exatamente as mesmas, tanto faz se o personagem em questão é um garoto inexperiente nos anos pós-Collor ou um assassino bem-sucedido na Rússia do Tzar Nicolau II. O nome disso – repito – é suspensão.
Antes de prosseguir, gostaria de fazer um parêntese. Tais suspensões nada têm a ver com dislexia, com o mundo da lua, nem com déficit de atenção, não é disso que estou falando, mas – repito – de desdobramentos… ou metafísica, entendam como quiserem ou leiam Cortázar. Fechado o parêntese, posso assegurar que esse envolvimento com Tolstói começa a me preocupar, a coisa chegou a tal ponto que, além desses desdobramentos, ocorrem déjà-vus aos borbotões e associações de tempo e espaço inusitadas que decerto sairiam de controle se eu já não fosse tão descalibrado pela própria natureza: não sei onde vou parar, só posso dizer que esses descolamentos são comuns à leitura de grandes autores e muito mais escandalosos em Tolstói.
Se não fosse Machadão e Henry Miller, agora eu estaria falando em Methempsycose. A minha sorte é que, pelo menos em tese, três almas defitivamente não têm cabimento numa só: seria muita areia pro caminhãozinho de qualquer filhodaputa, ainda mais em se tratando desses três. Hipótese descartada.
Um dia ainda vou contar o que aconteceu comigo nos arrabaldes do Morro do Livramento, lá na Gamboa… você está na minha alça de mira, Machadão, te cuida.
Antes de voltar à realidade (isso que é uma piada…), e já que falei em Methempsycose(transmigração das almas), eu gostaria de comentar mais uma passagem de Anna Kariênina. Tolstói foi contemporâneo das grandes fraudes, das engenhocas mirabolantes e também das grandes revoluções e invenções da humanidade e – para o nosso regozijo – não se absteve de dar seus pitacos. Em Anna Kariênina, acontece um debate entre Kuznitchev, irmão do corno Liévin, com um professor de filosofia especialmente importado de Khárkov. Imagino que Tolstói ajambrou esse encontro (que destoa do resto do livro) mais para tripudiar do que para esclarecer dúvidas metafísicas que o incomodavam na mesma época em que Allan Kardec psicografou o Livro dos espíritos e que Thomas Edison iluminava a crença dos xucros no sentido contrário.
No meio desse curto-circuito, Tostói aproxima – pelas tabelas – Kuznitchev e o professor de filosofia, ora às questões científicas, ora às questões do espírito, e dá o recado para os homens de seu tempo e para as gerações posteriores, zombando simultaneamente do espiritismo científico e do positivismo de sua época, mas, sobretudo, Tolstói aproveita para tirar uma onda do futuro que ele brilhantemente – como poucos – soube antecipar, como se dissesse: ou os espíritos evoluem e inventam uma maneira mais convincente de comunicação ou seremos obrigados todos a acreditar em Charles Darwin. Passados mais de 150 anos, os espíritos continuam usando os mesmos truques de filme B, escorregando em cascas de bananas e usando fraldas na selva de Darwin, que, por sua vez, deve ter se inspirado em Guerra e pazpara redigir a Evolução das espécies. Ou seja, nessa barafunda quase bicentenária, eu acredito mesmo é em Tolstói.
Nele e em poucos outros. Eu falava que Henry Miller, junto com Machadão, foi dos poucos autores que me proporcionaram experiência semelhante a que experimentei com Tolstói, numa outra escala, mas semelhante. Pois bem, quando lia Trópico de Câncer, aconteceu algo muito interessante. Posso contar?
Viajava pela serra de Furnas-MG, e as trepadas de Miller sob os auspícios de alguma toca de gambá me contaminaram a ponto de exigir realidade, isto é, partir para a ação. Naquela época, revezávamos, eu e Brecão, a direção de uma camionete F 1000. Enquanto ele ziguezagueava pela serra, eu me afundava em Trópico de Câncer. Paramos num bar à beira da estrada. Antes mesmo da proverbial e protocolar mijadinha, subi furiosamente no balcão do bar e desliguei a televisão que transmitia o programa da Xuxa. O chapeiro não gostou, discutimos feio, e eu apenas conseguia pedalar junto com Miller pelas ruas de Crazy Cook. Nova York, 1923, por aí. Sim, Miller curtia uma bike.
Ou seja, a sacanagem descrita em Trópico de Câncer – sob alguma ponte do rio Sena: 1933? – que me levou a desligar a televisão do bar e a ameaçar o chapeiro de morte havia sido substituída por outro livro de Miller, seu romance de estreia, dez anos antes de o autor de Sexus, Plexus e Nexus ser despachado pra Paris com 30 dólares no bolso, corno de duas lésbicas.
Uma constatação: maldito programa da Xuxa.
E a seguinte pergunta: quando, afinal, eu me estranhei com um chapeiro num bar às margens da represa de Furnas? Minas Gerais, idos de 1998? Ou Paris, logo depois que Miller, por volta de 1933, eclipsou toda uma geração perdida? Ou teria sido em Moscou, em 1859? A resposta é singela: tanto faz.
Em Tolstói, esses desdobramentos ou o trampolim atemporal acontecem, a cada parágrafo, em jorros torrenciais. Para não insistir no velho conde anarquista e cristão, eu poderia citar dezenas de autores, mas vamos àqueles que estavam sobre minha mesa de trabalho quando Magali se transformou em Stepanida (e vice-versa) – lembro de ter cavalgado o dorso dos tigres de Nietzsche, faz uns 20 dias que Akutagawa, Benedetti, a revista Senhor, Aldir Blanc e até as filhas do Cony, numa remota (?) década de 1970 do século passado, giram sobre meus cornos, provocam vaivéns que têm sua lógica própria. Akutagawa, por exemplo: “(…) estou para matar, esta noite, um homem que não odeio, por causa de uma mulher que não amo!”.
Trecho do conto “Kessa e Moritoo”, que faz parte do livro Rashomon. Esse japa tem uma lógica demente genial. Penso em Bataille e logo descarto a hipótese. Porque Bataille, digamos, é demasiadamente “resolvido” perto de Akutagawa. Não conheço outra literatura, senão a japonesa de 120 anos para cá, que consiga expressar o mecanismo de tesão, travação e subversão com tamanha verossimilhança e dramaticidade. Tanizaki é dessa escola, embora, por incrível que pareça, pegue muito mais leve que Akutagawa. O conto “Rashomon”, que abre e dá título ao livro (e que serviu de tema para o filme de Akira Kurosawa), é de uma monstruosidade que seguramente vem de outro planeta. E o melhor de tudo: Akutagawa é muito engraçado – e me transporta para o primeiro ano na faculdade de agronomia, quando conheci Frangão, um japonês que praticava exorcismos e se dizia descendente de Samurais. Saudades de ti, Frangão.
Mas, francamente, creio que é melhor parar por aqui, antes de o tigre de Nietzsche dar uma corcoveada e antes de enlouquecê-los com esses zigue-zagues intermináveis, antes de eu mesmo perder o controle da situação e mudar de assunto.
Bem, eu começava, apenas começava a falar de Leiv Nikoláievitch Tolstói…