Dossiê | Raymond Williams, um expoente do marxismo ocidental
Raymond Williams, 1985 (Foto: Mark Gerson/Reprodução)
Raymond Williams (1921-1988) ocupa um lugar ímpar na linhagem do marxismo ocidental. O principal livro sobre esse movimento – que, apesar de seus equívocos, mantém-se ainda canônico na recepção brasileira –, Considerações sobre o marxismo ocidental, de Perry Anderson, ignora-o solenemente. Ele estabelece um recorte que, no terreno da geografia, além de privilegiar a Itália, a França e a Alemanha, destitui a Inglaterra e, no quadro das especialidades acadêmicas, acolhe em sua lista de participantes apenas filósofos.
Muitos não hesitaram em atribuir a exclusão de Williams (e do marxismo inglês) a um conflito de gerações corporificado pela transição no comando da New Left Review. Convém ressaltar, no entanto, que, embora não sob a forma de uma autocrítica, a reparação não se fez tardar. O comitê editorial da New Left, integrado por Anthony Barnett, Francis Mulhern e pelo próprio Perry Anderson, realizou, ao longo do segundo semestre de 1977, uma bateria de entrevistas com Williams, inicialmente publicadas na revista e posteriormente coligidas no livro A política e as letras.
Segue-se aí um modelo pouco comum de entrevista, na qual se abre espaço para “a declaração e o argumento de ambos os lados”. Assim, não só Williams viu-se forçado a se debruçar sobre os fundamentos teóricos de sua obra, em um desafio autorreflexivo ao qual se submeteu de bom grado, como ilumina as divergências internas do marxismo inglês nos anos 1970. Desnecessário dizer que se trata ainda da melhor introdução à vida e ao pensamento de Raymond Williams.
O processo de correção completa-se com as críticas de Göran Therborn (sociólogo sueco que se tornou membro do círculo interno da New Left) ao livro de Anderson. Um artigo incluído em Do marxismo ao pós-marxismo contesta tanto a demarcação espacial e temporal como a seleção com a primazia de filósofos de Considerações sobre o marxismo ocidental. Além de ressaltar a injustiça fragrante da ausência de nomes como Bertolt Brecht, Cornelius Castoriadis, Jürgen Habermas etc., Therborn aduz uma pista interessante para se pensar porque ele tampouco incluiu Williams na lista dos rejeitados. Therborn relembra que, “assim como os filósofos do século 20 em geral, os filósofos marxistas tenderam a se mover em direção à sociologia”. Um itinerário exemplificado, entre outros, pelos frankfurtianos Marcuse, Adorno e Habermas, mas também por Jean-Paul Sartre, o filósofo par excellence.
Raymond Williams iniciou sua obra como crítico literário. Cedo, expandiu seus interesses para a crítica cultural em sentido amplo, abarcando especialidades decisivas para a compreensão do século 20, como o teatro, o cinema, as comunicações e a televisão. Sua principal contribuição nesse campo encontra-se, no entanto, na reformulação do termo cultura. Williams aproxima esse conceito daquilo que Karl Marx considerava como o resultado primordial do metabolismo do ser humano com a natureza, isto é, a criação, no decorrer da história, de modos de vida determinados.
Essa confluência induziu muitos a classificá-lo, dentre as especialidades universitárias, como sociólogo (da cultura). Recusam-lhe, assim, inclusive o epíteto de marxista (demasiadamente associado ao propósito deliberado de implodir a divisão intelectual do trabalho). O paradoxo, nem sempre percebido, consiste no fato de que a sociologia, no período de formação e desenvolvimento dos primeiros trabalhos de Williams, era uma disciplina estranhamente ausente na vida universitária e no debate intelectual inglês. Essa peculiaridade explica, em parte, a dificuldade comum a nativos e a estrangeiros em reconhecer Williams como um expoente do marxismo ocidental, atribuição reafirmada e consagrada cada dia mais pela sua recepção atual aqui e alhures.
O dossiê a seguir pretende apresentar e esmiuçar para o leitor, após a tradução no Brasil de seus principais livros, algumas facetas da obra (quase) inclassificável de Raymond Williams.
Michael Löwy desdobra, entre outros tópicos, a questão da relação entre marxismo e romantismo, reconhecendo, na resenha feita por Williams, em 1980, de seu livro A evolução política de Lukács, um dos estímulos de sua pesquisa acerca da posição social e política da arte e da concepção de mundo romântica.
Ugo Rivetti destaca o modo como Williams, em dois livros de sua obra inicial, Cultura e sociedade e The long revolution, promove um acerto de contas com a tradição inglesa de crítica cultural, presença decisiva em sua formação na Universidade de Cambridge.
Por meio de uma instigante análise de uma frase, Fernando Antonio Pinheiro Filho esclarece os termos da crítica de Williams à ideia de cultura ou sociedade de “massas”, aproximando-o tanto da tradição sociológica alemã como (ainda mais) da linhagem francesa inaugurada por Durkheim.
Marco Schneider reconstitui as principais teses de Williams acerca do que se costuma denominar de “sociologia da comunicação”, a partir de uma leitura cerrada (close reading) dos livros Communications e Televisão: tecnologia e forma cultural.
Sérgio de Carvalho acompanha – em um percurso que não descuida da comparação entre a versão inicial e a definitiva – os livros de Williams sobre o teatro, salientando como a atenção exclusiva ao texto cede lugar a uma compreensão que não dispensa a encenação. Esclarece, ainda, a importância que, na esteira de Brecht, o autor de Drama em cena concede à tragédia moderna.
Por fim, Jefferson Agostini Mello descreve como Williams, na tentativa de ultrapassar o foco da crítica no consumo literário, abriu novas perspectivas para a compreensão da obra literária como expressão social, desbravando o campo que denominamos hoje de cultural studies.