Um libelo contra o determinismo tecnológico

Um libelo contra o determinismo tecnológico
O escritor e crítico cultural galês Raymond Williams (Foto: Divulgação)

 

“Costuma-se dizer que a televisão alterou nosso mundo”, afirma o culturalista galês Raymond Williams, em tom crítico e desafiador, no antológico primeiro parágrafo de Televisão: tecnologia e forma cultural (1974). Um dos maiores clássicos em sociologia da televisão ganha, após mais de quatro décadas de sua publicação original, a primeira edição em português. Os estudiosos da comunicação e da cultura ficam devendo às editoras Boitempo e PUC-Minas o preenchimento dessa importante lacuna na bibliografia sobre o assunto em nosso idioma.

Trata-se, antes de mais nada, de um contundente manifesto contra as abordagens positivistas em ciências sociais. Williams adota, como ponto de partida e fio condutor, algo que bem poderia ser considerado uma revolução copernicana: a superação das abordagens tecnocráticas em uma visão que considera a televisão não em si mesma, mas como resultado de um processo determinado social e historicamente.

Para entender o significado desse giro epistemológico, é necessário notar que, até aquele momento, a vertente dominante nessa área – bem representada no funcionalismo ortodoxo, com seus estudos sobre efeitos do meio televisivo – baseava-se no truque do isolamento do meio em relação a seus condicionantes sociais. A pesquisa administrativa norte-americana focava-se em alguns dos efeitos da TV, em especial questões relacionadas a violência, sexo e manipulação política. O método utilizado, de natureza empírico-descritiva, acha-se bem sintetizado nas famosas perguntas de Lasswell: “Quem diz o quê? Como? Para quem? Com que efeito?”. Na visão de Williams, uma importante interrogação ficava de fora: “Com que propósito?”.

A exclusão dessa quinta pergunta impossibilitava agendar a questão das intenções, que permanecia na penumbra. Entretanto, só é realmente profícuo estudar efeitos com referência a intenções. E estas devem ser as intenções reais, não as declaradas. Afinal, lembrava Marx, “assim como não se julga o que um indivíduo é a partir do julgamento que ele faz de si mesmo, da mesma maneira não se pode julgar uma época de transformação a partir de sua própria consciência”. O verdadeiro desafio está no estudo das operações reais, não de suas formas aparentes.

Da forma como ocorria, a pesquisa de efeitos era racionalizada de véspera. Por trás de sua metodologia havia um modelo cuidadosamente preparado para evitar quaisquer questionamentos sobre intenções e usos. Estudavam-se os efeitos buscando suas “causas” nos meios concebidos como tecnologias autodirigidas. Não se levava em conta que essas “causas” já eram, elas mesmas, efeitos de uma ordem social profundamente enraizada. Essa abordagem, que Williams chamou de determinismo tecnológico, é uma visão poderosa e ainda hoje entranhada sobre as relações entre tecnologia e mudança social. Nessa perspectiva, a pesquisa tecnológica é concebida como autogeradora. A tecnologia vem ao mundo “por um processo essencialmente interno de pesquisa e desenvolvimento” e então cria novas sociedades e um novo homem.

É surpreendente como os termos dessa mundivisão são retomados hoje integralmente no debate sobre redes digitais e tecnologias interativas, vistas como promotoras de uma nova cultura participativa e democrática. O imaginário construído em torno da internet costuma incensá-la com os odores de um igualitarismo abstrato, da mesma forma que, décadas antes, a abordagem sancionadora de um McLuhan concebeu a televisão como agente destacado de uma nova era eletrônica prenhe de possibilidades emancipatórias, nos marcos da aldeia global.

Daí a atualidade de Televisão. O livro revela notável abrangência ao lançar luz sobre fenômenos que Williams não chegou a vivenciar, como a convergência digital de nossos dias. Hoje, como naquele tempo, a necessidade de uma nova ênfase ainda desafia a ciência da comunicação. É necessário trazer à tona um tipo diferente de interpretação, distinta do tecnicismo em sua capacidade de recuperar as intenções sociais subjacentes aos processos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico.

Toda tecnologia é buscada e desenvolvida para certos propósitos. O objetivo é sempre o de facilitar práticas humanas, sejam elas conhecidas ou desejadas. Há, em todo caso, uma intenção original. Mas ela não é exclusiva. O desenvolvimento da tecnologia será afetado não apenas pelo grupo social que a concebeu originalmente, mas por usos e efeitos imprevistos, muitos deles oriundos da ação de outros grupos sociais, que possuem suas próprias intenções e prioridades. Como lembra Williams, um explosivo pode ser desenvolvido por um grupo industrial para facilitar seu trabalho, mas pode ser usado por um grupo revolucionário para explodir as instalações dessa mesma indústria.

O determinismo tecnológico é indefensável não apenas pelo segundo termo do binômio, que sugere a substituição de relações sociais e políticas por uma tecnologia autônoma e sobre-humana. Igualmente problemática é a compreensão reducionista que se estabeleceu acerca da noção de determinação, entendida tradicionalmente no sentido de prefiguração. Conforme explica Williams, “determinação é um processo social real, mas nunca […] um conjunto de causas completamente controladoras e definidoras”. Assim, é necessário substituir compreensões esquemáticas pela ideia de “colocar limites e exercer pressões”. Um fato social jamais se estabelece de modo apriorístico; ao contrário, desenvolve-se dentro de um conjunto mais ou menos aberto de possibilidades, constrangido por forças e pressões sociais. No caso da televisão, isso inclui “a distribuição de poder ou de capital, a herança social e física, as relações de escala e de tamanho entre grupos”.

A televisão, portanto, não é o resultado de um processo fechado de pesquisa tecnológica. Os sistemas de televisão foram antevistos e ativamente imaginados, “não de modo utópico, mas tecnicamente”. Em um conjunto complexo de campos interligados, sistemas de mobilidade e transferência em produção e comunicação, sejam eles em transporte mecânico e elétrico, sejam em telegrafia, telefonia, rádio e imagem, funcionaram como estímulos e respostas dentro de um período geral de transformação social. Em muitos lugares, por meio de caminhos aparentemente desconectados, esses estímulos e respostas foram aos poucos isolados e definidos tecnicamente.

Costuma-se falar dos novos utensílios do lar – os chamados bens de consumo duráveis – como nada além de dispositivos técnicos. Trata-se, contudo, de algo além. As novas tecnologias trazem, materializadas em si, as ênfases determinadas pelo contexto mais amplo de sociedades urbano-industriais. Essas sociedades “criaram novas necessidades, mas também novas possibilidades, e os sistemas de comunicação, incluindo a televisão, foram seu resultado intrínseco”.

Há, nessa perspectiva, liames – nem sempre diretos ou de fácil identificação – entre um novo tipo de sociedade, mais complexa e volátil, e o desenvolvimento das modernas tecnologias de comunicação. Em primeiro plano, essa relação é diretamente causal: os incentivos a melhorias na tecnologia vieram de problemas de comunicação e controle em sistemas militares e comerciais, cujas necessidades levaram à definição de prioridades em seus próprios termos.

Porém, à medida que a sociedade se desenvolvia, novos tipos de informação foram reclamados. Essa demanda era mais profunda do que qualquer especialização à informação política, militar ou comercial poderia atender. Ela estava relacionada a novas percepções de mobilidade e mudança, bem documentadas pelo menos desde a ensaística de Baudelaire (1996). Não eram meros anseios abstratos, mas experiências já então vividas, as quais conduziram a profundas redefinições sobre a função e o processo da comunicação social. Conforme explica Williams,“em uma sociedade em mudança, especialmente após a Revolução Industrial, problemas de perspectiva e orientação sociais tornaram-se mais agudos. Novas relações entre os homens e entre os homens e as coisas estavam sendo experimentadas de modo intenso e, nessa área, particularmente as instituições tradicionais da igreja e da escola, ou da comunidade estável e da família renitente, tinham bem pouco a dizer”.

Williams identifica duas tendências aparentemente opostas, que se realizaram de forma conectada nas modernas sociedades urbano-industriais: de um lado, o crescimento da mobilidade física; de outro, o crescente confinamento das pessoas em pequenos espaços de moradia – o chamado lar, doce lar. Essa realidade ajudou a configurar muitas das prioridades da produção tecnológica. Em primeiro momento, surgiram melhorias na iluminação pública e nos sistemas de transporte – as grandes estradas de ferro foram o símbolo dessa fase. Mais tarde, novas tecnologias de comunicação passaram a focalizar, para além da mobilidade física, um tipo de mobilidade sociológica que conectava o lar privado às necessidades da vida pública.

A instituição do broadcasting ajudou a conciliar essas pressões contraditórias que surgiam com o desenvolvimento do capitalismo industrial. Elas nasciam, mais diretamente, da dissolução de antigas formas de assentamento produtivo, caracterizadas pela escala diminuta. Crescia, assim, a distância entre locais de trabalho e moradia – e entre estes e os da administração pública. Ao mesmo tempo, a par do crescimento das lutas sociais, ocorriam melhorias nos salários e nas condições de vida, incluindo a expansão do tempo livre.

Esses efeitos resultaram na ênfase sobre a melhoria do pequeno lar familiar, que, aparentemente privado e autossuficiente, não podia em verdade manter-se senão por meios externos e regulares de abastecimento, o que incluía não apenas mantimentos, mas também informações de fora. Essa situação de mobilidade e confinamento simultâneos – que Williams chamou de privatização móvel – foi intensamente explorada no drama moderno, por meio de personagens angustiados e incompletos em seus lares, apreensivos em suas janelas, esperando ansiosamente por mensagens que lhes permitam apreender tendências capazes de influenciar suas vidas. Williams cita, nesse sentido, Ibsen e Chekhov; na mesma linha, poderíamos citar Poe (1985), E. T. A. Hoffmann (2010) e, contemporaneamente, o Hitchcock de Janela indiscreta (1954).

Portanto, explica o autor, “de forma nenhuma essa é uma história de sistemas de comunicação que criaram uma nova sociedade ou novas condições sociais”. O que ocorreu foi o contrário: novas necessidades sociais trouxeram à luz – sempre dentro de certas pressões e limites – suas tecnologias correspondentes. Esse processo, porém, não se deu por geração espontânea; foi conduzido e protagonizado pela indústria de transformação. A história da televisão de modo nenhum é uma história de inventores isolados. Ela é, sobretudo, a história de grandes corporações manufatureiras de aparatos técnicos como EMI, RCA e similares, nas quais os inventores “independentes” encontraram abrigo técnico e financeiro.

Como decorrência desse fato, a preocupação que presidiu, em seus primórdios, o desenvolvimento da televisão não foi com a produção, mas com a transmissão de conteúdos. Se no cinema a questão do conteúdo foi resolvida previamente à da distribuição, na radiodifusão deu-se o oposto. “Não apenas o fornecimento de instalações de radiodifusão precedeu a demanda, mas os próprios meios de comunicação precederam seu conteúdo”. Esse uso economicamente pragmático dos meios de comunicação – concebidos não como instrumentos de difusão de conteúdos elevados, mas como meios de ganhar dinheiro com transmissões – explica por que o primeiro modelo teórico da comunicação foi concebido no âmbito das engenharias, sendo apenas mais tarde decalcado para a sociologia. Baseado na dualidade emissor-receptor, o chamado modelo básico concebia os processos de comunicação no plano de uma generalidade técnico-operativa.

Quando a questão da produção foi efetivamente levantada, acabou por ser resolvida, segundo Williams, “de forma parasitária”. Havia debates e ocasiões públicas, eventos esportivos, aulas, espetáculos de auditório, drama teatral e cinematográfico, além de outras oportunidades disponíveis, muitas delas preexistentes no rádio, para transmissão pelos novos meios. Muito do material televisivo não passa da exploração de formas previamente existentes. Reside aí muito da superioridade sociotécnica da televisão: ela reúne em um único espaço o que antes se achava disperso.

Mas a originalidade do pensamento de Williams está em observar que a adaptação de muitas dessas formas culturais levou a importantes mudanças qualitativas. Há, em primeiro lugar, o surgimento de formas novas, com suas próprias convenções internas, como o drama-documentário. Além disso, certas características do meio acarretaram mudanças às formas anteriormente estabelecidas. É inegável que, no caso da TV, uma ilusão de desintermediação está sempre à espreita. Muitos elementos exibidos pela câmera chegam com menos processamento do que teríamos em qualquer outro meio. Esse fato trouxe consequências importantes para as relações entre comunicação e política, com os líderes “agora menos protegidos por fórmulas de comunicação padrão como ‘o presidente disse…’”. A despeito de muitos artifícios consequentes, essas lideranças estão agora mais visíveis como pessoas reais, processo que surge ainda mais radicalizado na internet e suas redes digitais.

Outra transformação importante pode ser encontrada no drama. Não se trata apenas do fato de que a televisão engendrou formas inteiramente novas, como o seriado. Mais do que isso, o advento da TV impactou as relações entre atividade dramática e vida cotidiana. A humanidade jamais experimentou o drama na escala atual. A maioria das sociedades já tinha uma história de convivência com a performance dramática, mas isso era intermitente. Nunca havia existido um tempo, antes das últimas décadas, em que parcela dominante de qualquer população expendesse, a cada dia, horas e horas com telenovelas e outras formas dramáticas. Mesmo assim, esta não é apenas uma questão de número de horas, mas também, e sobretudo, da intensidade com que o drama hoje condiciona ideias e comportamentos.

Raymond Williams, 1985 (Foto Mark Gerson / Reprodução)
Raymond Williams, 1985 (Foto: Mark Gerson / Reprodução)

No entanto, a maior de todas as inovações talvez não esteja em qualquer dessas formas específicas, mas na própria televisão como tal. Tantos usos desse meio estiveram focados na reapresentação de formas herdadas que é sempre difícil perceber com clareza seus traços mais característicos. Não se trata apenas das surpreendentes convenções de ato rápido, das novas experiências de mobilidade visual, do inusitado contraste de ângulos, cores e formas. Para além disso, importa atentar para o próprio modo como a televisão organiza-se internamente, fornecendo respostas novas àquilo que foi demandado por uma experiência social igualmente inédita.

Na abordagem dessa questão inaugura-se o inovador conceito de fluxo, que busca explicar o modo como a TV distribui seus conteúdos. Para Williams, a radiodifusão opera um importante deslocamento: da noção de sequência como programação passa-se à ideia de fluxo. Como observa o autor, a palavra programa origina-se das tradicionais salas de teatro e concerto. Ela condensa formas de experiência anteriores ao dinamismo e à volatilidade que marcam as modernas sociedades industriais.

A televisão mistura elementos que, em sistemas de comunicação anteriores, eram apresentados separadamente. Um livro tratava de um único assunto em sequência lógica bem definida. Um debate público, assim como uma peça de teatro, eram ocasiões específicas, delimitadas no espaço e no tempo. Na radiodifusão, estes e outros eventos estão disponíveis contígua e simultaneamente. Misturam-se, sobrepõem-se uns aos outros em “um fluxo de uma série de unidades relacionadas de maneiras diversas, em que a marcação do tempo, ainda que real, não é declarada, e em que a real organização interna é diferente da organização divulgada”.

A organização em fluxo operou mudanças na noção de intervalo, que foi profundamente reavaliada. Antes os intervalos eram naturais: entre os movimentos de uma sinfonia ou os atos de uma peça, ou entre os diferentes blocos de notícias de um jornal. Mais tarde, o momento natural para o intervalo tornou-se qualquer momento conveniente – para o anunciante, não para o espectador. O importante agora é manter a audiência, garantir atenção a temas específicos e direcionar opinião a partir de um fluxo aparentemente desordenado, mas que tem como fio condutor uma estrutura de sentimento estabelecida.

Ao falar de fluxo, uma vez mais é impossível não lembrar a internet. Essa característica – que, para Williams, define a televisão “simultaneamente como uma tecnologia e uma forma cultural” – alcançou nos meios virtuais outro patamar: passou-se da vertigem televisiva àquilo que, na web, poderia ser definido como a mais completa esquizofrenia em fluxo. Não por acaso, Williams afirma que “essa tendência geral em direção a um aumento de variações e hibridações nas comunicações públicas faz parte evidentemente de uma experiência social como um todo”. Esse processo, ativo desde os primórdios da radiodifusão, é o mesmo que encontramos na base da convergência digital de nossos dias, porém com a diferença qualitativa de toda uma época.

Autor destacado da primeira geração dos estudos culturais – disciplina concebe a cultura como campo de luta em torno da significação social –, Williams coroa sua densa reflexão com análise e proposições acerca do futuro da televisão. Como adverte já no primeiro capítulo do livro, hoje nos tornamos de tal modo acostumados a um modelo de radiodifusão que tendemos a acreditar que essa situação foi predestinada pela tecnologia. Nada mais falso. Os modelos atuais resultaram, na verdade, de decisões sociais e políticas, as quais foram tão amplamente ratificadas que acabaram por tomar a aparência de resultados inevitáveis.

É assim que, ao discutir os vetores da disputa sobre o futuro da televisão, Williams retoma sua visão do processo transformador, delineada pioneiramente em The long revolution (2001). Vivemos um processo continuado de mudanças que não exclui momentos de radicalidade. Esse processo jamais é tópico, embora se defina a cada momento. Ele é composto de transformações aparentemente desconexas e escalonadas no tempo, continuamente confrontadas pelas pressões do status quo. Trata-se de “uma revolução difícil de definir, e sua ação irregular ocorre em um período tão longo que é quase impossível não se perder em seu processo excepcionalmente complicado”.

É preciso entender bem esse ponto se quisermos influenciar as definições institucionais tomadas a todo momento, em meio a intensas disputas. Nos anos 1970, quando Televisão foi escrito, o que estava em jogo eram as soluções institucionais que moldariam os novos modos de televisão então em gestação: a TV a cabo, as transmissões via satélite, o mercado de videocassetes e videoteipes. Hoje, essas novas formas estão profundamente condicionadas pelo advento da convergência digital, em cujo entorno trava-se ampla disputa. Ela definirá até que ponto o novo modelo de comunicação servirá aos propósitos de democratização da informação e da cultura.
Diante dessa realidade, como verseja a canção popular, “é preciso estar atento e forte”. Afinal, uma vez estabelecido um modelo, é sempre mais difícil alterá-lo. Como alerta Williams, toda vez que existir investimento pesado em um formato institucional específico, haverá sempre um complexo de restrições colocado por instituições financeiras, expectativas culturais e desenvolvimentos técnicos específicos. Por isso é necessário atentar aos momentos primordiais de definição: eles frequentemente estabelecem situações de fato que se prolongam e influenciam os desenvolvimentos posteriores.

Em nosso próprio tempo, novas tecnologias de informação e comunicação irrompem a todo momento. Elas podem transformar instituições, políticas e usos ou simplesmente reforçar as formas e os sentidos que fundamentam a ordem existente. Nas palavras de Williams,“é irônico que os usos ofereçam escolhas sociais tão extremas. Poderíamos ter sistemas de televisão baratos, baseados localmente, mas ainda assim estendidos internacionalmente, que tornariam possíveis a comunicação e a partilha de informações em uma escala que até bem pouco tempo pareceria utópica. Essas são as ferramentas contemporâneas para a longa revolução em direção a uma democracia participativa e instruída […]. Mas são também as ferramentas de uma curta e bem-sucedida contrarrevolução, na qual, sob a aparente conversa sobre escolha e concorrência, algumas empresas paranacionais, com seus estados e suas agências auxiliares, poderiam chegar ainda mais longe em nossa vida, em todos os níveis, das notícias aos psicodramas, até que a resposta individual e coletiva para muitos tipos diferentes de experiência e problemas se torne quase limitada à escolha entre possibilidades já programadas”.

A realidade de corporações chegando “ainda mais longe em nossa vida” e assumindo múltiplas formas de controle soa profética e atualiza-se dramaticamente. Não se trata apenas do fato de que o crescimento da economia de escala das comunicações reforça a monopolização do setor televisivo. Trata-se, para além disso, do fato de que modelos institucionais concentradores, gestados nos primórdios da radiodifusão, continuam a reproduzir-se no outrora promissor campo da internet. Nele, gigantes como Google e Facebook direcionam escolhas a partir de definições algorítmicas que ainda hoje parecem a muitos meramente técnicas.

Mas é preciso considerar as novas tecnologias de forma conjunta, em suas possíveis combinações, para que tenhamos a real dimensão de seus efeitos sociais. Hoje, como previu Williams, empresas controladoras de várias dessas tecnologias excluem prestadores menores e habilitam-se a monopolizar serviços de notícias e entretenimento. Torna-se cada vez mais difícil, nesse contexto, a sobrevivência de redes independentes e de base nacional. Aprofunda-se o cerco à diversidade cultural e à variedade de opiniões. Um sistema como esse pode até oferecer alternativas de escolha, mas apenas alternativas limitadas, pré-definidas. “A maioria dos habitantes da aldeia global não poderia dizer nada, nesses novos termos, enquanto algumas corporações e alguns governos poderosos […] falariam de formas nunca antes conhecidas”.

Em contexto tal, é legítimo prever o crescimento de formas de resistência, muitas delas assumindo o caráter de sistemas culturais marginais – um “underground cultural”, nas palavras de Williams. Essa resistência dá-se, contudo, em condições desiguais, sem que esse underground consiga acompanhar as melhores definições da radiodifusão. Ainda assim, o processo pode abrir caminho a instituições e práticas inovadoras. “Será a partir dessa geração criada com a televisão”, vaticina Williams, “que poderemos tirar continuamente exemplos e propostas de criação e comunicação eletrônica tão diferentes da televisão ortodoxa […]”. Esses exemplos e propostas, que ditarão doravante muito do desenvolvimento da tecnologia, não são fruto de “algum processo autônomo dirigido por engenheiros distantes”, mas uma questão de “ação e luta social continuamente renováveis”.

A depender do contexto social em que se inserem, isto é, das relações sociais em cujo âmbito se organizam, os meios de comunicação e cultura podem servir à ampliação ou à restrição da democracia. Podem contribuir para a realização de elevados propósitos de difusão da informação e do saber ou, paradoxalmente, proporcionar o mergulho de populações inteiras nas trevas da estupidez. Nada disso está inscrito na tecnologia. O que está a requerer de todos o verdadeiro propósito transformador é, diante dessas opções contraditórias, uma firme tomada de posição.

Televisão
Raymond Williams
Boitempo
Trad.: Marcio Serelle e Mário F. I. Viggiano
190 páginas – R$ 52

FÁBIO PALÁCIO é doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP) e professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

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