A virada descolonial da psicose: Frantz Fanon, inventor da esquizoanálise
O psiquiatra, filósofo e ensaísta marxista da Martinica, Frantz Fanon (Foto: Reprodução)
A obra do psiquiatra e militante Frantz Fanon é reconhecida hoje, merecidamente, como uma contribuição pioneira à análise do papel fundamental desempenhado pela dominação colonial na formação do discurso psicopatalógico europeu. Ela é, ao mesmo tempo, uma reflexão contínua sobre a parte tomada pelo “saber‑poder” psiquiátrico, por meio de seu misto de positivismo neurobiológico, de “criminologia científica” e da antropologia naturalizante do “primitivismo”, na racialização do “indígena”; e de modo mais extenso, sua obra reflete sobre a constituição do racismo institucional, que garante mutuamente as certezas da Ciência e os interesses do Estado, coextensivo à era imperialista.
Seria possível seguir o caminho de sua reflexão a partir dos capítulos de Pele negra, máscaras brancas (1952) sobre o “suposto complexo de dependência do colonizado” e a psicopatologia do “Negro”, indo até as análises de O quinto ano da Revolução argelina (1959) sobre a sobredeterminação da relação terapêutica com a situação colonial, e chegando à desmontagem do estereótipo da “impulsividade criminal do norte‑africano” que conclui as “notas psiquiátricas” coletadas no último capítulo de Condenados da terra (1961).
Esse último momento de seu trabalho, por investigar a relação entre psicanálise e política, desperta um interesse específico, que se torna claro de antemão pela singularidade de seu lugar de enunciação. No duplo epicentro clínico (o hospital de Blida‑Joinville e a Escola de Alger) e político (a Argélia em guerra) da psiquiatria colonial francesa, não estava mais na hora de uma “psicanálise interpretativa”, de uma “aplicação” de conceitos psicanalíticos para interpretar uma situação política. Era a hora de uma urgência prática, na qual a conjuntura política confronta a clínica com o real do sintoma como tal.
Mas esse real não tem a estrutura de um impossível, mas de dois: em forma de double bind. É, por um lado, a impossibilidade de qualquer enunciação clínica que seja na situação colonial, a impossibilidade de um ponto de vista clínico, do acolhimento da experiência singular que um sujeito tem de sua doença. A não ser que se perseverasse na “aposta absurda”, escreve Fanon em sua carta de pedido de demissão dos encargos de médico‑chefe do hospital de Blida‑Joinville já em dezembro de 1956, de querer desalienar indivíduos em um país onde o autóctone é um “alienado permanente em seu país [e] vive em um estado de despersonalização”, de querer tornar o indivíduo menos estrangeiro a seu mundo em um mundo que organiza “uma desumanização sistemática”.
Por outro lado, é a tentação, face a esse campo clínico barrado, de promover sua foraclusão projetando‑o no campo político imediato, onde a preocupação clínica seria pura e simplesmente suplantada pela luta de liberação. É, além disso, esse fantasma de uma liquidação política dos sintomas que se quis por vezes ler nos aportes famosos do primeiro capítulo de Condenados da terra (talvez os mais imprudentes, em todo caso os mais “dialeticamente” idealizantes) sobre a transformação de economias psíquicas da violência na passagem a uma luta ofensiva contra o sistema colonial, tendendo a fazer desaparecer as formas mais virulentas de autoagressão, de prostração melancólica e de condutas suicidas.
Mas algo devia vir cortar essa continuidade radicalmente suturada entre a situação colonial (onde a clínica tende a ser impossível) e a situação de guerra de descolonização (onde o projeto de uma clínica desalienante seria, no limite, realizado pelo próprio movimento de liberação nacional): os “distúrbios mentais nascidos da guerra de liberação nacional que dirige o povo argelino”, um trabalho do sintoma diretamente articulado à luta política.
É esse jogo politicamente sobredeterminado do sintoma que faz necessário, então, especificar as incidências da guerra na colônia sobre as formações sintomáticas com as quais se confronta a clínica, mas que impõe também medir as implicações da guerra de liberação em uma hermenêutica clínica que, encontrando‑se mobilizada pela luta, vê‑se inelutavelmente politizada em todas as dimensões de seus “saberes” (sintomatológicos, nosográficos, etiológicos) bem como em suas práticas (psiquiátricas e transferenciais, institucionais e subjetivas).
Farei uma breve observação voltando ao modo pelo qual Fanon investiga a especificidade das formas traumáticas do sintoma na Argélia, em relação àquelas com que se preocupou a clínica europeia na saída de duas guerras mundiais. Seu ponto de partida toca o sentido que toma na colônia a categoria de “psicose reacional”, quando se constata que o “evento disparador” do processo patológico – se pudermos, em alguns casos, assim identificá‑lo –, confunde‑se frequentemente com a extrema violência “atmosférica” que já organizava o regime colonial. As figuras extremas de esfacelamento e de despersonalização psicóticas, a virulência das formas melancólicas de culpabilização e de autoagressão, as produções sintomáticas mortíferas invadindo o real do corpo, o deslocamento do material sociocultural das elaborações simbólicas, catalisam em uma sintomatologia traumática um traumatismo que já tecia o pano de fundo da clínica na colônia, nessa situação de “colonização bem‑sucedida” que não era nada mais que uma situação de guerra materializada, incorporada nas formas da objetividade social, econômica, jurídica e militar do Estado colonial.
Disso se tira uma primeira consequência dessa análise: a impossibilidade de assinalar uma clínica diferencial entre a situação de “colonização bem‑sucedida” e a situação de guerra colonial. Exceto se for identificada com uma clínica diferencial imediatamente política, a saber: esse índice de resistência à violência e à opressão coloniais no qual Fanon vê com tanta frequência a marca no coração das sintomatologias dos colonizados, e que é igualmente um modo de fazer dizer à patologia que a colonização nunca é completamente “bem‑sucedida”.
É preciso, ainda, destacar as implicações para a linguagem da enunciação clínica. O trabalho realizado por Fanon sobre o conceito metapsicológico de “mecanismo de defesa” é, nesse ponto, emblemático. Retomando uma acepção econômica das defesas do eu, para qualificar a fonte etiológica maior na base de quadros altamente psicotisantes com os quais se confronta a psiquiatria na colônia, ele ressemantiza a noção em um registro agonístico e militar. Ou ainda, ele provê uma literalidade política a noções que a psicopatologia havia metaforizado para integrá‑las a sua conceitualidade (como por exemplo a metáfora da guarnição militar em uma cidade conquistada por meio da qual Freud dava imagem ao trabalho “civilizacional” realizado pela instância do Super‑Eu).
É esse jogo de condensação clínico‑política do conceito de defesa que orienta então o destaque diferencial das patologias produzidas pela opressão e dos mecanismos patogênicos da resistência à opressão: “No período de colonização não contestada pela luta armada, quando a soma de excitações nocivas ultrapassa um certo umbral, as posições defensivas dos colonizados desmoronam, e eles se encontram então em soma considerável nos hospitais psiquiátricos. Há então nesse período calmo de colonização bem‑sucedida uma regular e importante patologia mental produzida diretamente pela opressão”.
Dito de outro modo, essa patologia não é produzida pela exacerbação dos mecanismos de defesa que poderia assimilá‑la ao que a nosologia europeia identificou como neurose de defesa ou psico‑neurose narcísica. Ela é testemunha, ao contrário, da impossibilidade dessa saída psicótica, ou da impossibilidade de toda reconstrução narcísica suscetível de ser um patamar para o desmoronamento das estruturas “egoicas”. Estaríamos tentados, assim, a qualificar a situação clínica “normal”, naquele momento sem a sombra da “calma colônia”, como uma situação de traumatismo permanente, quando as defesas falham até o ponto de tornar impossível uma entrada na psicose, onde se indicaria, no mínimo, o investimento narcísico com o qual um sujeito seria ainda capaz de “fazer com” seu sintoma.
Que Fanon lembre que “a colonização, em sua essência, se apresentava já como uma grande fornecedora de hospitais psiquiátricos”, não quer dizer que ela cedia lugar para a loucura. Lembramos como, ao se demitir de suas funções no hospital de Blida, ele respondeu a esse esmagamento de toda acolhida da loucura como essa última possibilidade da liberdade humana. Mas a recíproca é tal que a subjetivação da resistência à opressão terá inevitavelmente a atitude de uma reconstrução de mecanismos de defesa, ou seja, a reabertura de uma produtividade do sintoma psicótico, fazendo entender que um vetor de psicotização redobra inevitavelmente, e até suporta necessariamente a posição de uma consciência anticolonial. Tudo se passa como se os mecanismos de defesa, no processo patológico que os exacerba, testemunhassem simultaneamente da reconstrução de uma capacidade política, ou como uma potencialidade “metapolítica” de adversidade, nas estruturas do sujeito em sofrimento.
Que a luta de liberação nacional suscite, e talvez passe necessariamente por modalidades de psicotização da subjetividade, certamente não leva a minimizar as feridas psíquicas onde elas têm fundo, e a fantasiar uma supressão do incômodo clínico de se encarregar da luta política pela liberação. É, ao contrário, nomear um desses momentos no qual a operação do sintoma em que se sustenta um sujeito, as modalidades de deslocamento de seu gozo a seu sintoma, e a ação de resistência a uma ordem opressiva, no limite impossível de ser vivida, que entram em relações de indiscernibilidade, ou de indecidibilidade, lá onde tanto a clínica quanto a política contestam que sejam discerníveis.
Ao cabo, o termo “resistência” se presta bem a essa dupla compreensão, borrando a partilha da passividade e da atividade, do sofrido e do agido, do pático e da agency. Podemos ver aí, como indiquei em outro lugar, o problema nodal em torno do qual caminham os autores de O anti‑Édipo dez anos mais tarde, e a razão pela qual retomarão as análises de Fanon, as sintomatologias dos colonizados que exibem, talvez melhor que toda outra, a dificuldade em determinar onde começa a resistência, mas também a necessidade de sobre ela se decidir. Pois trata‑se, aqui, não de idealizar os tormentos do corpo e do espírito em resistência política (a que Fanon psiquiatra se recusava explicitamente), mas sim de colocar o paradoxo de umbrais ou de modalidades de resistência do sujeito, “no” sujeito ou “diante/ em torno” dele, que não lhe são contudo simplesmente inacessíveis: umbrais onde a clínica diferencial de uma politização da subjetividade e de um impolitizável do sintoma é absolutamente decisiva, mas irredutivelmente incerta, e ambas ao mesmo tempo.
Tradução de Mario Sagayama
Guillaume Sibertin‑Blanc é filósofo, professor associado da Universidade de Toulouse (França) e membro do Centro de Estudos Internacional de Filosofia Contemporânea Francesa da École Normale Supérieure, em Paris