A importância de Beckett para a modernidade
Samuel Beckett em 1977 (Foto: Bibliothèque nationale de France/Domínio Público)
A certa altura de Vinicius (2005), documentário de Miguel Faria sobre o “poetinha” carioca, um depoimento do poeta Ferreira Gullar deriva para um ânimo filosofante um tanto ligeiro e acaba por levar a uma classificação dos homens em dois tipos. Para o autor do “Poema sujo”, de um lado, há os que, esperançosos, escolhem ver o copo ainda cheio pela metade, celebrando a vida no que ela tem de realizadora e feliz, e, de outro, os amigos do não, apocalípticos, que teimam em percebê-la como vaso quase vazio, a caminho do fim e do nada.
No filme, essa polarização cumpre uma finalidade retórica: a de recortar um Vinicius de Moraes hedonista, amoroso e sem arestas, figura alegórica de um tempo brevemente feliz – o Brasil da bossa nova e dos anos JK – e de um lugar social restrito – a classe média do Rio. Visão parcial, que elide tanto uma melancolia latente, que mesmo a mais luminosa das canções de Vinicius guarda como contraponto, quanto a impossibilidade de transformar o país numa imensa Ipanema.
Empenhado, Gullar troca sua tese em miúdos: na literatura, o arquétipo dos “chatolas” destrutivos, dos que escolhem ver a vida em cinza e negro, seria Samuel Beckett, o irlandês nascido em Foxrock, subúrbio abastado de Dublin, em 1906, e morto em Paris, há 20 anos. Simplista quanto pareça, essa disjunção de base equivocada ainda resiste, pouco arranhada, às sucessivas ondas de recepção crítica e teórica que a obra beckettiana, em suas múltiplas faces (peças, romances, ensaios, poemas), vem suscitando.
Difíceis e desconcertantes, drama e prosa do autor de Esperando Godot recusam a acomodação de suas tensões internas em pares conceituais antípodas como otimismo/pessimismo ou realismo/absurdo. São formas de expressão pensada e cifrada de impasses estruturais que vão muito além de seus limites. Também por isso não cabem no simples comentário explicativo, nem se esgotam na decodificação erudita de suas referências e intertextos, mesmo que, para tanto, se multiplique, a cada ano, um exército de especialistas.
As marcas do século 20
Do estrago causado pela leitura inaugural de Martin Esslin – associando a novidade do texto beckettiano a autores com os quais dividia pouco mais que um inespecífico impulso experimentalista (caso de Arrabal ou Ionesco) – a leituras filosóficas fortes, como as de Theodor Adorno ou Gilles Deleuze, um dos pomos da discórdia da crítica beckettiana continua a ser a importância que se atribui a este mítico niilismo e à busca por alguma positividade na obra do ganhador do Nobel de Literatura de 1969. Contra um humanismo essencializado, que ouve em seus personagens apenas a eterna voz da espécie, o remédio parece estar na radicação total de sua obra na história. Beckett, o herdeiro da tradição europeia, o modernista tardio, o membro da Resistência Francesa, o leitor de Dante, Joyce e Baudelaire, não pode ser compreendido sem o contexto do século 20. Ele construiu uma obra movida pelos impasses, em que a invenção formal, o abalo dos limites dos gêneros literários entre si e entre a literatura e outras artes (a narrativa televisiva ou radiofônica, o cinema e as artes visuais), o apreço pela economia de meios e o respeito pelo silêncio traduziram-se num percurso de continuidade e adensamento exemplares.
Membro de uma elite minoritária irlandesa protestante, Beckett driblou a carreira acadêmica de sucesso a que estava destinado. Romanista, conhecedor de Dante e das vanguardas francesas, jovem professor no Trinity College (por onde passaram Swift e Wilde), optou pelo autoexílio, fixando-se na França, que vivia o final dos roaring twenties (período de profundo dinamismo artístico-cultural da década de 1920). Junto ao círculo literário de Joyce, sombra mais do que sedutora, opressiva, Beckett buscou seu caminho próprio de escritor.
Do scholar que não foi, ficaram ensaios idiossincráticos e contundentes, repletos de imagens tão precisas quanto inesperadas: o tempo como voraz monstro janusiano, o hábito e a rotina como coleiras que atam os sujeitos a seu vômito, o indivíduo como acúmulo de eus mortos, superpostos como as camadas de uma cebola, sem núcleo por baixo. O melhor exemplo é o ensaio que dedicou, no calor da hora, ao Proust de Em Busca do Tempo Perdido, cuja edição em vários volumes acabava de ser publicada pela Nouvelle Revue Française.
Nesses primeiros anos, a luta com a reticência das editoras travou-se em torno de uma coletânea de contos, More Pricks than Kicks, extraídos e salvos de um romance de formação publicado apenas postumamente, em que Bellacqua, alter ego do autor, errava pelo meio boêmio universitário de Dublin e encontrava no solipsismo e na ironia o refúgio para seu ceticismo individualista precoce. Essa resistência à socialização feliz e domesticada – recusa em jogar a comédia social e desconfiança do discurso “bem acabado” – aparece também em Murphy, divertido romance de perseguições amorosas e desencontros existenciais que Beckett escreveu durante uma temporada londrina, período pessoalmente muito infeliz em que fazia sessões de análise com Wilfred Bion.
Somados a uma coletânea de poemas intitulada Echo’s Bones and Other Precipitates e a Whoroscope – longa meditação em versos sobre o tempo –, More Pricks than Kicks e Murphy dão o tom da entrada beckettiana na cena literária. Sucessos de estima mais que de público, esses livros já lhe teriam valido o reconhecimento de um talento fora de série, especialmente entre os escritores, inclusive o maior de todos em atividade, James Joyce. Mas, fruto de uma cultura literária vastíssima, investindo na paródia e expondo o esgotamento da prosa realista do século 19, a ficção beckettiana dos primeiros anos não sugeria ainda o salto que o autor viria a dar.
A conquista de uma voz própria
A participação direta na experiência central do século 20 ao viver a clandestinidade na França ocupada e o fato de ter escapado da morte por um triz dão densidade máxima à guinada estilística que marca uma segunda fase e à conquista definitiva de uma voz inconfundível que singulariza a obra beckettiana. Nos cinco anos que se seguiram ao fim da Segunda Guerra, recluso em seu apartamento parisiense, Beckett apostou em uma simplificação de meios e no aprofundamento do que viria a ser sua âncora temática mais duradoura: ocupar-se da miséria e da solidão humanas, sem abandonar o distanciamento que a capacidade de rir da e na tragédia (“Nada é mais engraçado que a infelicidade”, diz Nell, em Fim de Partida) propicia aos homens.
Ao mesmo tempo em que encontra seu anti-herói típico – um despossuído sem emprego, família ou perspectivas, capaz de revelar pelo humor e pela marginalidade a lógica hostil e perversa do normal –, Beckett sente a necessidade de limpar sua escrita de uma literariedade virtuosística e alusiva bastante evidente em sua primeira produção. Passa, então, a escrever em francês, língua em que lhe parecia mais possível evitar ao máximo os ecos da tradição de que se sentia refém escrevendo na língua materna.
A linguagem falha e as falas iniciadas a contragosto e difíceis de estancar passam a ser a aposta beckettiana no pós-guerra, corroendo por dentro convenções dramáticas e materializando-se em imagens insólitas. As motivações da ação dos personagens – agora cegos, coxos, impotentes – perderam-se para sempre numa história opaca, sucessão de traumas apagados na rotina. Tais aspectos estão presentes, por exemplo, no choque inicial de Esperando Godot, reiterado em Fim de Partida e Dias Felizes, e também nas narrativas, que reduzem o romance a ruínas na voz do narrador em primeira pessoa da trilogia Molloy, Malone Morre e O Inominável. Construídos sobre dejetos, restos de razão tortuosa e totalitária, linguagem ineficaz, cotidiana, comezinha, os pares dos vagabundos Didi e Gogo e dos reclusos Hamm e Clov, somados à “longa sonata de cadáveres” dos narradores Molloy, Moran, Malone e o Inominável, levaram seu criador a um novo patamar de impasse. Depois deles, o silêncio?
Não foi o que as décadas seguintes reservariam a seus leitores. O Nobel de 1969 não o condenou a uma aposentadoria de luxo. Beckett renovou-se em uma prosa que suspendia cada movimento, ao multiplicar o máximo de tensão em formas cada vez mais concentradas, residuais. A sintaxe das repetições – construída por mínimos acréscimos e infinitas correções de rumo, que se serviu da indeterminação e das elipses – foi se impondo. Está em Como É, que abole parágrafos e pontuação; está na trilogia tardia dos anos 1980 (Compania, Mal Visto Mal Dito e Worstward Ho); e nos dramatículos – peças quase desprovidas de ação (Footfalls, Come and Go, Solo) em que a palavra narrada e a imagem assumem o primeiro plano.
Da ironia dos meios presente nos primeiros romances em inglês, passando pela erosão intratextual dos modelos ideais do drama e do romance modernos, Beckett alcançou uma escrita ainda mais concisa e rigorosa. A natureza insuficiente da linguagem, a imperfeição na percepção do mundo e sua tradução artística levaram-no a uma episteme da dúvida permanente, um reconhecimento de limites e uma lembrança mais aguda e cristalina da falibilidade humana que se revelam em faux départs (escrita fragmentária de abandonos e retomadas).
A enxurrada crítica e as numerosas montagens e edições, apropriações e desdobramentos de sua obra pelos quatro cantos do mundo têm chegado timidamente ao Brasil, que em sua posição periférica (análoga à que a Irlanda ocupava no contexto europeu) recoloca em novos termos os impasses estéticos, cognitivos e linguísticos que desenham a importância de Beckett. Apesar de ter ganhado os palcos locais em algumas montagens memoráveis, a predominância de Godot sobre todos os demais textos dramáticos (até muito recentemente, quase que absoluta) não se justifica senão pela morosidade do mercado editorial brasileiro e pela timidez dos encenadores. Tomara não fique ao sabor das efemérides nem seja fugaz marolinha a onda recente de versões para o português de volumes essenciais de sua vasta herança. Todo grande autor desloca a tradição e, tanto no teatro como na narrativa, Beckett foi fundamental para nossa reinvenção moderna. Não podemos nos dar ao luxo de ignorá-lo.
Fábio de Souza Andrade é professor de literatura na Usp, crítico literário e autor de Samuel Beckett: o silêncio possível (Ateliê)
(1) Comentário
Talvez a geração do confinamento em tempos de coronavírus, Estado de Exceção (Temer/Bolsonaro), desastres ecológicos, do “deserto do real” no “mundo sem ninguém” redescubra o oásis que representa a narrativa de Beckett, que foi às últimas consequências, num esforço extraordinário de (re)criação da arte e da literatura, e em sua permanente indagação sobre o vazio da linguagem coisificada e a condição do ser diante do nada