Arcas de Babel: Nina Rizzi traduz Alejandra Pizarnik
As poetas Nina Rizzi e Alejandra Pizarnik (Fotos: Mariana Botelho e Reprodução)
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Hoje é Nina Rizzi que nos traz uma série inédita de poemas de Alejandra Pizarnik e escreve sobre sua experiência de leitura, estudo e tradução desta grande poeta argentina, que teve dois volumes recentemente editados no Brasil, pela Relicário Edições.
Nina Rizzi é poeta, tradutora, pesquisadora, professora e editora; promove o “escreva como uma mulher”: laboratório de escrita criativa com mulheres. Autora de Tambores pra N’zinga, A duração do deserto, Geografia dos ossos, Quando vieres ver um banzo cor de fogo e sereia no copo d’água. Integra a coletiva “Pretarau”: Sarau Das Pretas e é uma das articuladoras do Sarau do B1 (Fortaleza/ CE). Co-edita a revista escamandro – poesia tradução crítica – , e mantém o blogue a poema
***
Em 2004 estive na Argentina junto com o Movimento Sem Terra (MST) em um evento da Vía Campesina no âmbito da Campanha Global pela Reforma Agrária. Fiquei alguns dias a mais por lá e travei contato com um pouco da literatura portenha contemporânea, dentre elas, a poesia de Alejandra Pizarnik, que embora hoje seja objeto de estudos e tenha ganhado traduções e na época já fosse uma lenda na Espanha, Argentina e outros países de língua espanhola, por aqui ainda estava sob brumas. E desde esse primeiro encontro, um alumbramento, um silêncio, um pássaro se debatendo em fuga a cada leitura.
As primeiras traduções de sua obra se iniciaram muito naturalmente, dessa maneira que fazemos quando lemos algo em outro idioma e traduzimos mentalmente; e essas leituras-traduções foram também uma maneira de me aproximar da língua, aprender a língua, amorosamente. A partir de 2011 comecei a traduzir sua poesia como uma forma mais aprofundada de leitura e pesquisa de sua linguagem, e em 2018 conclui a dissertação de mestrado onde traduzi sua obra poética completa.
Nesses mais de quinze anos de contato e tradução da obra de Alejandra – que chamo carinhosamente de piknik após tanto tempo de intimidade de leitura –, acabo por entrar num círculo da própria autora: a escrita contínua das poemas: da mesma maneira que piknik era obcecada pela escritura de suas poemas, borrando e reescrevendo, sigo na mesma escrevendo e reescrevendo essas versões e traduções, que acabam sendo um outro original, outras poemas, já diferente do primeiro original e também da dissertação.
As poemas escolhidas para apresentar nesta Arca de Babel são Textos de sombra, segundo consta nas notas de sua Poesía completa, em edição de Ana Becciu: “Sob este título ‘Textos de sombra’, se incluem oito textos encontrados nos apartados “inéditos” e “acabados” de uma pasta, um caderno e folhinhas soltas, sob ‘Sombra’ ou ‘Textos de Sombra’. Esses manuscritos permitem supor que AP pensava em um livro único com esse título e uma personagem, Sombra. Uma nota de 1972 em outro caderno menciona Sombra, Casa de Encontros e Sala 18 como textos separados sobre os quais trabalhava.
No primeiro texto, “Alguns Textos de Sombra”, consta a nota: “As frases finais de ‘Um jardim’ pertencem a Henri Michaux, Cecilia Meireles, B. Brecht e Sydney Keyes”. No entanto, a terceira frase pertence a Novalis, autor que piknik amava e de quem era ávida leitora como escreve repetidas vezes em seus Diários. Agradeço a Guilherme Gontijo Flores pelo Wenn nicht mehr Zahlen und Figuren! A tradução que uso para este verso, é atribuída a Mário Cesariny. Já a primeira citação, de Henri Michaux, está no texto “La Ralentie”; o verso de Cecília Meireles está em Solombra; e por fim, Sydney Keyes está em The Cruel Solstice. Para a versão que apresento aqui, optei por traduzir também estes versos, como nota. Para saber mais sobre a autora e minhas andanças com ela, é só clicar aqui. – Nina Rizzi
TEXTOS DE SOMBRA
ALGUNS TEXTOS DE SOMBRA [1]
É uma exortação aos jovens para que
não fiquem tristes, já que existem a
natureza, a liberdade, Goethe, Schiller,
Shakespeare, as flores, os insetos, etc.
Frankz Kafka
Um jardim
Peço silêncio
Minha história é longa e triste como a cabeleira de Ofélia
É um jardim desenhado em meu caderno. Madrugada. Instante dilacerante
em que a luz é tentação e promessa porque algo está morto, a noite.
– Só queria ver o jardim.
– Sou meu próprio espectro.
– Não se deve julgar o espectro porque se chega a sê-lo.
– Você é real?
– A imagem de um coração que enclausura a imagem de um jardim pelo qual choro.
– Ils jouent la pièce en étranger.[1]
– Sinto o mundo chorar como língua estrangeira.
– Das ganze verkerhrte Wesen fort.[2]
– Another calling: my own words coming back…[3]
Apenas buscava um lugar mais ou menos propício para viver, quer dizer: um lugar pequeno onde cantar e poder chorar tranquila de vez em quando. Na verdade, não queria uma casa; Sombra queria um jardim.
– Só vim ver o jardim – disse.
Mas cada vez que visitava um jardim comprovava que não era o que buscava, o que queria. Era como falar ou escrever. Depois de falar ou de escrever sempre tinha que explicar:
– Não, não é isso o que eu queria dizer.
E o pior é que também o silêncio a traía.
– É por que o silêncio não existe – disse.
O jardim, as vozes, a escritura, o silêncio.
– Não faço outra coisa além de buscar e não encontrar. Assim perco as noites.
Sentiu que era culpada de algo grave.
– Eu acredito nas noites – disse.
Não soube responder a isso: sentiu que cravavam uma flor azul em seu pensamento para que não seguisse o curso de seu discurso até o fundo.
– É porque o fundo não existe – disse.
A flor azul se abriu em sua mente. Viu palavras como pequenas pedras espalhadas no espaço negro da noite. Depois, passou um cisne com rodinhas com um grande macaco vermelho no interrogativo pescoço. Uma menininha que parecia com ela montava o cisne.
– Essa menininha fui eu – disse Sombra.
Sombra está desconcertada. Diz para si mesma que, na verdade, trabalha demais desde que Sombra morreu. Tudo é pretexto para ser um pretexto, pensou Sombra assombrada.
1-V-1972
[1] Eles encenam a peça em estrangeiro.
[2] [então, a palavra misteriosa] Destruirá toda a essência mentirosa.
[3] Outro chamado: minhas próprias palavras voltando…
[1] (N.E.) Este capítulo, a citação e o texto que segue, são de uma folha datilografada e corrigida a mão por AP, em pasta com a menção INÉDITOS onde figuram também os demais sob a denominação “Textos de Sombra”, na ordem que aqui se apresentam. As frases finais de “Um jardim” pertencem a Henri Michaux, Cecilia Meireles, B. Brecht e Sydney Keyes.
PREFÁCIO DE SOMBRA (I)
A filha da voz a possuiu em seu estar, em seu ser, pela tristeza.
Os pequenos pássaros peçonhentos que saciavam a sede numa água negra onde se refletia a maravilha, são seus animais, são seus emblemas. Ao mesmo tempo busca aquecer seu coração suplicante.
Os cães noturnos: outro chamamento.
Quem conhece meu humor ofensivo? Desde meu livro uivante “alguém mata algo”.
Ninguém me acende nenhuma lâmpada, ninguém é da cor do desejo mais profundo.
12/VII/1970
O ENTENDIMENTO
Comecemos por dizer que Sombra havia morrido. Sabia Sombra que Sombra havia morrido? Indubitavelmente. Sombra e ela foram sócias durante anos. Sombra foi sua única testamenteira, sua única amiga e a única que vestiu luto por Sombra. Sombra não estava terrivelmente aflita pelo triste evento e o dia inteiro o solenizou com um banquete.
Sombra não apagou o nome de Sombra. A casa de comércio se conhecia sob a razão social “Sombra e Sombra”. Algumas vezes os novos clientes chamavam Sombra de Sombra; mas Sombra atendia por ambos nomes, como se ela, Sombra, fosse de fato Sombra, que havia morrido.
ESCRITO QUANDO SOMBRA
– Comecemos por dizer que Sombra havia morrido.
– Desapareceu após sua própria desaparição.
– Estava trabalhando em seu escritório. Sem querer, escutava a gente que passava batendo no peito com as mãos e as pedras da calçada com os pés para entrar em calor.
– Entretanto, a bruma e a escuridão estavam tão densas que Sombra caminhava por seu gabinete se iluminando com fósforos.
SOMBRA: – Que horas são?
– A que acaba de passar. A última.
SOMBRA: – Tem um menino na escada. É verdade que maltratei um menino faz tempo. Esse menino, precisamente.
Sombra conhecia o menino abandonado na escada. Então soluçou.
PRESENÇA DE SOMBRA
Alguém fala. Alguém me disse.
Extraordinário silêncio o desta noite.
Alguém projeta sua sombra na parede do meu quarto. Alguém me olha com meus olhos que não são os meus.
Ela escreve como uma lâmpada que se apaga, ela escreve como uma lâmpada que se acende. Caminha silenciosa. A noite é uma mulher velha com a cabeça cheia de flores. A noite não é a filha preferida da rainha louca.
Caminha silenciosa até a profundidade filha dos reis.
De demência a noite, de não tempo. De memória a noite, de sempre sombras.
SOMBRA: Je régarde ma main déserte.
Ai-je tenu la rose pure?
O ma nuit, nul jour ne la tue.[1]
– K: Sombra chorou e falou mais que em toda sua existência inteira. Foi pouco antes de cair no círculo opaco.
– X: Vamos pelas ruas agora que a tarde se cobriu de passifloras.
– UMA SOMBRA: Le devant este louable (on peut le louer par heure).
Le derrir esta lavable (on peut le Labrounir étant donnée qu’ on a soffert as el desdichado, ô monde, ô langage, ô Isidore![2]
[1] Eu olho para a minha mão deserta./ Eu segurei a rosa pura?/ Oh, minha noite, nenhum dia a assassina.
[2] A frente é recomendável (podemos alugar por hora)./ A traseira é lavável (podemos Unirencontrar desde que soframos como o desventurado, oh mundo, oh linguagem, oh Isidore!
TEXTO DE SOMBRA
Quero existir para além de mim mesma: com os aparecidos.
Quero existir como a que sou: uma ideia fixa. Quero latir, não louvar o silêncio do espaço ao que se nasce.
TEXTO DE SOMBRA
Que máscara usarei quando emergir da sombra? Eu falo dessa cadela que no silêncio tece uma trama de falso silêncio para que eu me confunda de silêncio e cante do modo correto para se dirigir aos mortos.
Indubitavelmente caio nisto que em mim encontro mais ou menos presente quando alguém formula meu nome. Por que minha boca está sempre aberta?
Tradução de Nina Rizzi
***
TEXTOS DE SOMBRA
ALGUNOS TEXTOS DE SOMBRA
Es una exhortación a los jóvenes para que
no estén tristes, ya que existen la
naturaleza, la libertad, Goethe, Schiller,
Shakespeare, las flores, los insectos, etc.
Franz Kafka
Un jardín
Pido el silencio
Mi historia es larga triste como la cabellera de Ofelia
Es un jardín dibujado en mi cuaderno. Madrugada. Instante desgarrado en que la luz es tentación y promesa porque algo ha muerto, la noche
– Sólo quería ver el jardín.
– Soy mi propio espectro.
– No hay que jugar al espectro porque se llega a serlo.
– ¿Sos real?
– La imagen de un corazón que encierra la imagen de un jardín por el que voy llorando.
– Ils jouent la pièce en étranger.
– Sinto o mundo chorar como língua estrangeira.
– Das ganze verkerhrte Wesen fort.
– Another calling: my own words coming back…
Solo buscaba un lugar más o menos propicio para vivir, quiero decir: un sitio pequeño donde cantar y poder llorar tranquila a veces. En verdad no quería una casa; Sombra quería un jardín.
– Sólo vine ver el jardín – dijo.
Pero cada vez que visitaba un jardín comprobaba que no era el que buscaba, el que quería. Era como hablar o escribir. Después de hablar o de escribir siempre tenía que explicar:
– No, no es eso lo que yo quería decir.
Y lo peor es que también el silencio la traicionaba.
– Es porque el silencio no existe – dijo. El jardín, las voces, la escritura, el silencio.
– No hago otra cosa que buscar y no encontrar. Así pierdo las noches.
Sintió que era culpable de algo grave.
– Yo creo en las noches – dijo.
A lo cual no supo responderse: sintió que le clavaban una flor azul en el pensamiento con el fin de que no siguiera el curso de su discurso hasta el fondo.
– Es porque el fondo no existe – dijo.
La flor azul se abrió en su mente. Vio palabras como pequeñas piedras diseminadas en el espacio negro de la noche. Luego, pasó un cisne con rueditas con un gran moño rojo en el interrogativo cuello. Una niñita que se le parecía montaba el cisne.
– Esa niñita fui yo – dijo Sombra.
Sombra está desconcertada. Se dice que, en verdad, trabaja demasiado desde que murió Sombra. Todo es pretexto para ser un pretexto, pensó Sombra asombrada.
1-V-1972
PREFACIO DE SOMBRA (I)
La hija de la voz la poseyó en su estar, en su ser, por la tristeza.
Los pequeños pájaros ponzoñosos que se abrevan en un agua negra donde se refleja la maravilla, son sus animales, son sus emblemas. A un tiempo mismo busca calentar su corazón suplicante.
Los perros nocturnos: otro llamamiento.
¿Quién conoce mi humor hiriente? Desde mi libro aullante “alguien mata algo”.
Nadie me enciende ninguna lámpara, nadie es del color del deseo más profundo.
12/VII/1970
EL ENTENDIMIENTO
Empecemos por decir que Sombra había muerto. ¿Sabía Sombra que Sombra había muerto? Indudablemente. Sombra y ella fueron consocias durante años. Sombra fue su única albacea, su única amiga y la única que vistió luto por Sombra. Sombra no estaba tan terriblemente afligida por el triste suceso y el día del entierro lo solemnizó con un banquete.
Sombra no borró el nombre de Sombra. La casa de comercio se conocía bajo la razón social “Sombra y Sombra”. Algunas veces los clientes nuevos llamaban Sombra a Sombra; pero Sombra atendía por ambos nombres, como si ella, Sombra, fuese en efecto Sombra, quien había muerto.
ESCRITO CUANDO SOMBRA
– Empecemos por decir que Sombra había muerto.
– Desapareció tras su propia desaparición.
– Estaba trabajando en su despacho. Sin desearlo, escuchaba a la gente que pasaba golpeándose el pecho con las manos y las piedras del pavimento con los pies para entrar en calor.
– Entretanto, la bruma y la oscuridad hiciéronse tan densas que Sombra caminaba por su gabinete alumbrándose con fósforos.
SOMBRA: – ¿Qué hora es?
– La que acaba de pasar. La última.
SOMBRA: – Hay en la escalera un niño. Es verdad que hace tiempo maltraté a un niño. A ése, precisamente.
Sombra conocía al niño abandonado en la escalera. Entonces sollozó.
PRESENCIA DE SOMBRA
Alguien habla. Alguien me dice. Extraordinario silencio el de esta noche.
Alguien proyecta su sombra en la pared de mi cuarto. Alguien me mira con mis ojos que no son los míos.
Ella escribe como una lámpara que se apaga, ella escribe como una lámpara que se enciende. Camina silenciosa. La noche es una mujer vieja con la cabeza llena de flores. La noche no es la hija preferida de la reina loca.
Camina silenciosa hacia la profundidad hija de los reyes.
De demencia la noche, de no tiempo. De memoria la noche, de siempre sombras.
SOMBRA: Je régarde ma main déserte.
Ai-je tenu la rose pure?
O ma nuit, nul jour ne la tue.
– K: Sombra lloró y habló más que en toda su existencia junta. Fue poco antes de caer en el círculo opaco.
– X: Vayamos por las calles ahora que la tarde se cubrió de pasionarias.
– Una SOMBRA: Le devant est louable (on peut le louer par heure).
Le derrier est lavable (on peut le Labrounir étant donnée qu’ on a souffert as el desdichado, ô monde, ô langage, ô Isidore!
TEXTO DE SOMBRA
Quiero existir más allá de mí misma: con los aparecidos.
Quiero existir como la que soy: una idea fija. Quiero ladrar, no alabar el silencio del espacio al que se nace.
TEXTO DE SOMBRA
¿Qué máscara usaré cuando emerja de la sombra? Hablo de esa perra que en el silencio teje una trama de falso silencio para que yo me confunda de silencio y cante del modo correcto para dirigirse a los muertos.
Indeciblemente caigo en esto que en mí encuentro más o menos presente cuando alguien formula mi nombre. ¿Por qué mi boca está siempre abierta?