Notícias de outras ilhas: Guilherme Gontijo Flores

Notícias de outras ilhas: Guilherme Gontijo Flores
(Foto: Fernanda Baptista)

 

Guilherme Gontijo Flores nasceu em Brasília, em 1984. É poeta, tradutor e professor na Universidade Federal do Paraná. É autor de brasa enganosa (2013), Tróiades (2014, www.troiades.com.br), l’azur Blasé (2016), Naharia (2017), Carvão : : capim (2018) e História de Joia (2019). Como tradutor, publicou, entre outros, A anatomia da melancolia, de Robert Burton (4 vols., 2011-2013), Elegias de Sexto Propércio (2014) e Safo: fragmentos completos (2017). Foi um dos organizadores da antologia Por que calar nossos amores? Poesia homoerótica latina (2017) e publicou o ensaio Algo infiel: corpo performance tradução (2017) com Rodrigo Gonçalves. É coeditor do blog e revista escamandro: poesia tradução crítica. Nos últimos anos tem trabalhado com tradução e performance de poesia antiga, integrando o grupo Pecora Loca.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica um poema transcrito por Jesús Fuentes Guerra, uma peça de Paul Éluard e uma peça-revolta de Bob Kaufman A curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.

 

O tempo é de perda e dor. O trancamento motivado pelo compromisso coletivo diante de uma pandemia, infelizmente, é o menor sofrimento em comparação ao absurdo que precisamos enfrentar diante do descaso do governo, sobretudo federal, e também da ascensão de discursos fascistas que brutalizam nossa experiência em nome de mesquinharias. Acredito que a poesia tem que ser força de vida para as pessoas; essa é a sua função e sua fertilização. Por isso, me apego aos poemas que fazem luto e oferendam esperança.

O primeiro, que intitulei “Wega”, é a fusão de dois cantos funerários do povo xona, transcritos por Jesús Fuentes Guerra, que traduzi e pretendo inserir num livro de poemas.

O segundo é uma peça de Paul Éluard que resume como encaro o desafio de semear esperança via linguagem: a partilha de uma vida. Eu a reencontrei como epígrafe do livro A invenção do amor e outros poemas, de Daniel Filipe, um imenso poeta cabo-verdiano, e decidi traduzir também, como um rito pessoal.

O terceiro é uma peça-revolta do poeta norte-americano Bob Kaufman, figura genial da geração beat, porém pouco conhecido, e que merecia receber pelo menos uma antologia no Brasil. Traduzi o poema uns bons anos atrás, porém retorno a ele como a um mantra.

 

Wega

Você vai morrer sozinho
vai ser sepultado sozinho.

Você vai morrer sozinho
vai ser sepultado sozinho.

Pense por isso no dia
que você vai morrer sozinho.

Você vai morrer sozinho
vai ser sepultado sozinho.

Tantos já nos deixaram
e você também vai morrer.

Você vai morrer sozinho
vai ser sepultado sozinho.

§

Uchafa uri wega
ugovigwa uri wega.

§

Todas as tribos que se foram
acolham aqui seu filho
a ele acolham.

Todos os pais que se foram
acolham aqui seu filho
acolham.

E todos os mais velhos que se foram
acolham aqui seu filho
a ele acolham.

Hoje ele se vai
acolham aqui seu filho
ele se vai.

***

Et un sourire

Paul Éluard

La nuit n’est jamais complète.
Il y a toujours puisque je le dis,
Puisque je l’affirme,
Au bout du chagrin, une fenêtre ouverte,
Une fenêtre éclairée.
Il y a toujours un rêve qui veille,
Désir à combler,
Faim à satisfaire,
Un cœur généreux,
Une main tendue, une main ouverte,
des yeux attentifs,
une vie: la vie à se partager.

E um sorriso

A noite nunca é plena.
Tem sempre, pois que digo,
Pois que afirmo,
No fim da dor, uma janela aberta
Uma janela iluminada.
Tem sempre um sonho que vela,
Desejo a cumprir, fome a sanar,
Um peito generoso,
Uma mão estendida, uma mão bem aberta,
Dois olhos atentos,
Uma vida: a vida a partilhar.

(trad. Guilherme Gontijo Flores)

***

THE NIGHT THAT LORCA COMES

Bob Kaufman

THE NIGHT THAT LORCA COMES
SHALL BE A STRANGE NIGHT IN THE
SOUTH, IT SHALL BE THE TIME WHEN NEGROES LEAVE THE SOUTH FOREVER,
GREEN TRAINS SHALL ARRIVE
FROM RED PLANET MARS
CRACKLING BLUENESS SHALL SEND TOOTH-COVERED CARS FOR THEM
TO LEAVE IN, TO GO INTO
THE NORTH FOREVER, AND I SEE MY LITTLE GIRL MOTHER
AGAIN WITH HER CROSS THAT
IS NOT BURNING, HER SKIRTS
OF BLACK, OF ALL COLORS, HER AURA
OF FAMILIARITY. THE SOUTH SHALL WEEP
BITTER TEARS TO NO AVAIL,
THE NEGROES HAVE GONE
INTO CRACKLING BLUENESS.
CRISPUS ATTUCKS SHALL ARRIVE WITH THE BOSTON
COMMONS, TO TAKE ELISSI LANDI
NORTH, CRISPUS ATTUCKS SHALL
BE LAYING ON BOSTON COMMONS,
ELISSI LANDI SHALL FEEL ALIVE
AGAIN. I SHALL CALL HER NAME
AS SHE STEPS ON TO THE BOSTON
COMMONS, AND FLIES NORTH FOREVER,
LINCOLN SHALL BE THERE,
TO SEE THEM LEAVE THE
SOUTH FOREVER, ELISSI LANDI, SHE WILL BE
GREEN.
THE WHITE SOUTH SHALL GATHER AT
PRESERVATION HALL.

a noite que lorca chegar

a noite que lorca chegar
vai ser uma noite estranha no
sul, vai ser o dia em que os negros vão deixar o sul pra sempre
trens verdes vão chegar
do rubro planeta marte,
uma azuleza crepitante vai mandar carros dentados pra eles
saírem por dentro, adentrarem
no norte pra sempre, e eu ver minha mãe garotinha
de novo com sua cruz sem
chamas, sua saia
preta, de todas as cores, sua aura
familiar, o sul vai chorar
em vão as lágrimas amargas,
os negros partiram
pra azuleza crepitante.
crispus attucks vai chegar com o povo
de boston pra levar elissi landi
pro norte, crispus attucks vai se
apoiar no povo de boston,
elissi landi vai se sentir viva
de novo. vou chama-la
enquanto ela anda entre o povo
de boston e voa pro norte pra sempre,
lincoln vai estar lá
para ver eles deixarem o
sul pra sempre, elissi landi, ela será
verde.
o sul branco vai se reunir no
hall de preservação.

(trad. Guilherme Gontijo Flores)


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