“Escrever, nesta hora do mundo, é atravessar as fronteiras de nossa própria humanidade”

“Escrever, nesta hora do mundo, é atravessar as fronteiras de nossa própria humanidade”
A poeta, escritora e ensaísta mineira Maria Esther Macial (Foto: Divulgação)

 

Maria Esther Maciel acaba de reunir sua poesia no volume Longe, aqui. (poesia incompleta 1998-2019), numa edição linda das editoras Quixote+Do e Tlön. Não poderia haver melhor ocasião para falar sobre esse já longo e consolidado percurso que, para além da poesia, envolve a prosa, a crítica, a pesquisa e a docência em literatura.

Nascida em Patos de Minas, em 1963, Maria Esther vive em Belo Horizonte desde a adolescência. É professora titular de Teoria Literária na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), instituição em que desenvolveu toda sua carreira como estudante e professora. Seu primeiro livro de poemas, Dos haveres do corpo, saiu em 1985 e, desde então, lançou diversos livros de poesia, prosa e crítica, dentre os quais As vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octavio Paz (1995), Triz (1998), O livro de Zenóbia (2004), O livro dos nomes (2009) e Literatura e animalidade (2016). Atualmente, é coordenadora editorial da revista Olympio — literatura e arte.

Para essa conversa em torno da obra de Maria Esther, tive a alegria de contar com um círculo especialíssimo de leitores: Adriane Garcia, Alberto Martins, Ana Elisa Ribeiro, Celia Pedrosa, Edimilson de Almeida Pereira, Eduardo Jorge, Fabrício Marques, Luís Alberto Brandão, Manoel Ricardo de Lima, Prisca Agustoni e Reynaldo Damazio. A eles e Maria Esther vai um imenso agradecimento pela generosidade da conversa.

Alberto Martins – Maria Esther, quando você começou a escrever, que perguntas poéticas você identificava no horizonte? De lá pra cá, quais permaneceram, quais se transformaram? Também gostaria de saber se algo mudou ao longo do tempo no modo de compor os seus poemas.

Maria Esther – Comecei a escrever muito cedo, ainda na adolescência, movida por uma inquietação que eu não sabia muito bem o que era. A matéria poética, naquele momento, se afigurava para mim como algo impreciso e sem nome. Acho que minha ligação com a poesia passava, sobretudo, pelos sons, pela música das palavras, talvez por contágio da primeira poeta que li em minha vida, que foi Cecília Meireles. A pergunta que, espontaneamente, eu me fazia era mais ou menos esta: como extrair dos sons das palavras uma expressão do que sinto e vivencio? Por muito tempo, essa pergunta me acompanhou, adquirindo novos matizes à medida que fui descobrindo outras potencialidades da linguagem e outros motivos para escrever que não apenas o de verbalizar sentimentos e experiências pessoais. Passei a perguntar também: pode a poesia mudar o mundo, a realidade? E como fazer isso? Acho que não achei a resposta até hoje. O que tenho feito é ficar atenta ao que se esconde nas dobras da realidade transparente e tentar extrair o imprevisível do óbvio.

Quanto ao processo de composição, digo que os poemas do primeiro livro que publiquei, Dos haveres do corpo (1984), já anunciavam (ainda que precariamente) uma forma de compor que acabou por se tornar recorrente nos anos seguintes, sobretudo com os poemas de Triz (1998): a busca da concisão, o exercício de uma subjetividade oblíqua, o apreço pelos paradoxos, um certo despojamento. Aos poucos, porém, o meu modo de escrever adquiriu outras modulações, levando-me a formas textuais mais híbridas. Isso se concretizou de maneira explícita em O livro de Zenóbia, de 2004, no qual misturei poesia, narrativa e outros tipos de texto, como listas, verbetes, aforismos e receitas culinárias. Mas sem deixar de lado o ritmo das frases, a sonoridade das palavras, os aspectos visuais e cinéticos da linguagem. Voltei aos poemas em verso só em 2019, com O livro das sutilezas, ainda assim, não de forma exclusiva, já que as interseções de prosa e verso também incidem em algumas seções.

Adriane Garcia – Ao ler a reunião de seu trabalho poético “Longe, aqui, poesia incompleta”, percebemos o valor existencial das coisas pequenas, percebemos um mundo que tantas vezes estando ali, imediato, nos escapa por desatenção. No contexto desta entrevista, estamos em plena pandemia do coronavírus, quando nosso espaço ficou sobremaneira reduzido à casa. A temática do cotidiano pensa a vida mais do que nunca e assume sua importância. A poeta Maria Esther Maciel sempre teve a consciência de que o que temos de essencial está muito próximo? Como se dá a percepção dessa poesia neste momento?

Pouco antes da quarentena, li os magníficos contos (atravessados de poesia) do polonês Bruno Schulz, como que me preparando internamente para experimentar o que estamos vivendo nestes tempos terríveis. Parece que as horas se desprenderam dos ponteiros dos relógios, como nas histórias de Schulz, e o aqui agora se tornou uma eternidade. Com isso, as miudezas do cotidiano adquirem uma explícita relevância para que possamos nos sentir vivos. Nestes dias de solidão, as plantas, os objetos, os pequenos insetos, répteis e pássaros têm me envolvido como nunca, estimulando minha sensibilidade e minha imaginação. Agora mesmo, ao escrever esta frase, há um pombo no terraço onde fica meu escritório. De manhã, vêm os bem-te-vis. Às vezes, aparecem lagartixas, abelhas, besouros. Ando muito ligada a esses bichos. E também às plantas, sobretudo ervas de cheiro que também dão flores. Fico encantada com as flores da cebolinha, do manjericão, da artemísia, do alho-poró. Sim, o que é essencial está aqui onde estou. O que antes já fazia parte de minha percepção do mundo agora se impõe de uma maneira intensa durante estes meses da peste.  É isso que me dá um certo alento e mantém a poesia viva nestes tempos de horror, destruição, ódio, morte, desespero.

Celia PedrosaComo se realiza hoje em seus poemas a “memória das coisas” que ressalta na poesia brasileira, desde a lição drummondiana? Com seu background de leitura da literatura de Octavio Paz e Borges, entre outros, como vê hoje as relações de contato, contágio, tradução poéticas em torno da questão da latinoamericanidade? Onde está agora a incrível Zenóbia? E sua escrita de enumerações e verbetes?

Gosto muito da palavra “coisa”, por ela conter vários sentidos. Pode designar tanto um objeto (colecionável ou não) quanto algo abstrato, que não tem nome ou escapa à classificação. Num sentido mais genérico, pode significar tudo o que existe no mundo natural e artificial, tudo o que compõe o que chamamos de as coisas do mundo. Francis Ponge lidou belamente com elas. Carlos Drummond também. Nos meus poemas, todos esses sentidos nunca deixaram de  estar presentes. Hoje, mais do que nunca, estou atenta à lição das coisas comuns (concretas e abstratas), como um regador num canto de jardim, um canto de bem-te-vi, um fio de luz que entra na sala escura, o vento que entra pela fresta da janela, uma asa de inseto no chão do escritório, uma dor no joelho esquerdo.

Penso que as traduções e contágios latino-americanos se revitalizam hoje no Brasil, graças sobretudo às editoras (algumas, independentes) que têm investido não apenas em autores contemporâneos de vários países do continente, como também no resgate de nomes que ainda não haviam sido publicados por aqui ou ainda eram pouco conhecidos, como Teresa de la Parra, Silvina Ocampo, Nicanor Parra, Alejandra Pizarnik, entre outros. Vejo que muitos escritores brasileiros de hoje  têm sido contagiados por essas traduções.

Quanto à Zenóbia, está mais viva do que nunca. Tenho aprendido sempre ela, sobretudo no campo da zoologia, da botânica e da hagiografia. De vez em quando, convido-a para entrar em algum texto meu, seja conto ou ensaio. Agora mesmo, estou tentando escrever um romance sobre uma personagem que ela me apresentou anos atrás. As listas que faço são sempre zenóbicas. Os verbetes, também. Terminei a escrita de um volume só de verbetes sobre plantas e animais, a que dei o título de Pequena enciclopédia de seres comuns. Vai ser publicado quando for possível. Zenóbia foi minha cúmplice na preparação desse livro.

Edimilson de Almeida PereiraVocê tem participado de encontros nacionais e internacionais, convivendo com autorias as mais variadas, com diferentes linguagens da criação artística e do pensamento crítico. De que maneira essa vivência areja e estimula os seus processos de escrita? Você poderia comentar um pouco sobre a tensão entre o eu biográfico e os “outros eus” que perpassam a sua poética? Sua poética é rigorosa e se entrevê, na leitura dos poemas, o emprego de múltiplas técnicas de elaboração do discurso. Você poderia nos falar sobre algumas dessas técnicas?

O fora e o dentro estão sempre em interseção dentro de minha vida literária. Os encontros, as viagens, as discussões literárias, os trânsitos em outros campos artísticos, tudo isso atravessa o meu trabalho de criação, seja pelo que aprendo e descubro com essas atividades, seja pelas pessoas que tenho oportunidade de conhecer. Algumas dessas pessoas passaram, inclusive, a ter um papel determinante na minha história literária e afetiva.

Quanto à questão dos “eus”, tendo à ideia de multiplicidade. A própria pessoa biográfica pode ser considerada várias. Quando ela entra na poesia, se reinventa ainda mais, deflagrando outros “eus” fictícios. E se há tensão de um “eu” com os outros ”, há também distensão entre eles. Para mim, a subjetividade poética é sempre flexível, móvel, desdobrável.

Já o rigor que você menciona, penso ser ele também maleável, por não se circunscrever a regras cristalizadas. Busco experimentar possibilidades, sobretudo rítmicas. Creio que minhas técnicas, por mais disciplinadas que possam parecer em certos poemas, não deixam de ser, paradoxalmente, intuitivas.

Maria Esther Maciel em Belo Horizonte, 1991. Crédito: Arquivo pessoal
Maria Esther Maciel em Belo Horizonte, 1991 (Foto: Arquivo Pessoal)

Ana Elisa Ribeiro – Esther, você é da poesia, mas é também da prosa. Do ensaio, do conto. Você escolhe esses gêneros ou é escolhida por eles? Você sente que há uma reserva especial para o poema? Ou transita sem grandes sustos entre essas composições?

Comecei com a poesia e a ela me dediquei por certo tempo, embora tenha exercitado, nesse início, outras modalidades de escrita. Durante a adolescência, publiquei poemas, contos e crônicas nos jornais de minha cidade natal, Patos de Minas. Nessa época, escrevi também uma novela, feita aos moldes dos folhetins: a cada mês, eu divulgava um capítulo no jornal. Iniciei, ainda, a escrita publicação de resenhas dos livros que eu lia. Ou seja, desde cedo, me interessei por vários gêneros ao mesmo tempo, o que foi se potencializando ao longo dos anos. Quando entrei na vida acadêmica, voltei-me para o ensaio e me distanciei, por um período, da escrita literária. Mas logo depois de escrever os poemas do livro Triz, de 1998, passei a exercitar, simultaneamente, a escrita de textos acadêmicos e a de poemas e narrativas. Depois, passei a misturar tudo e a me dedicar às escritas híbridas. Meus dois livros de prosa ficcional, O livro de Zenóbia e Os livros dos nomes, evidenciam essas misturas. O não significou necessariamente meu afastamento do trabalho ensaístico, de viés acadêmico, nem da poesia. Aliás, creio que poesia nunca deixou de atravessar tudo o que fiz até hoje, em todos os gêneros.

Quanto à escolha, digo que sigo ao ritmo das demandas internas e externas. Às vezes, sou levada ao ensaio pelas contingências profissionais; às vezes, é uma opção, pois gosto muito da escrita ensaística. A crônica, exercitei quando tive uma coluna semanal do jornal Estado de Minas. Já a ficção e a poesia, eu as busco quando sinto que é o momento. Tenho muita dificuldade em escrever contos ou poemas por solicitações externas. Enfim, meu trânsito entre essas composições se molda ao fluxo das coisas e das horas.

Luís Alberto Brandão – Esther, a palavra “livro” está presente no título de três publicações suas. De O livro de Zenóbia (lançado em 2004) a O livro das sutilezas (que traz os poemas escritos entre 2018 e 2019), passando por O livro dos nomes (de 2008), quais significados do termo “livro” você considera importantes para designar o trabalho poético e ficcional realizado em tais volumes? Há especificidades dos sentidos de “livro” em cada um dos três casos? Ou há uma linha de continuidade? Levando em conta também sua vasta trajetória de outras publicações, de que maneira você sente e avalia sua relação com o desejo (e os dilemas), a relevância (e as miragens), os efeitos (previsíveis e imprevisíveis) de transformar em livro a escrita? Essa relação mudou ao longo dos anos?

Sempre me encantei pelos títulos que contêm a palavra “livro”, como O livro das horas, O livro do travesseiro, O livro dos seres imaginários, Livro do desassossego. E não apenas dos títulos. Todos eles têm uma estrutura que foge às convenções literárias, tendendo várias vezes para a coleção de fragmentos. Alguns, incorporam verbetes enciclopédicos, extratos de diário, listas. O livro de Zenóbia é uma mistura disso tudo. Em O livro dos nomes, incorporei sobretudo verbetes; em O livro das sutilezas, coleções de plantas, animais, reminiscências, coisas do cotidiano, além de listas. Já estou às voltas com mais dois projetos com “livro” no título. Eles não deixam de ser também “tomos” de um só livro, que aos poucos vou construindo ao longo de minha vida. Sem dúvida, há algo de medieval nisso.

Transformar a escrita em livro tem sempre algo de miragem. Se é relevante, talvez o seja mais para mim do que para o mundo. E, claro, depende do livro, do que ele cumpre enquanto publicação. Já publiquei livros acadêmicos que, num primeiro momento, considerei necessários para o meu percurso profissional, por estarem vinculados a projetos de pesquisa, mas que hoje não vejo como livros de fato relevantes. Outros, que surgiram a convite, já tiveram um caminho diferente, pelos efeitos imprevisíveis que provocaram na minha vida intelectual/literária, como os relacionados à zooliteratura. Literatura e animalidade, por exemplo, me levou a lugares inesperados, surpreendentes. Hoje, só faço livros pelo desejo de fazê-los. Sejam eles de ensaios, sejam de ficção ou poesia.

Fabrício Marques – Você construiu uma trajetória acadêmica sólida, desde “As vertigens da lucidez”, resultado de sua tese de doutorado sobre a poesia e a crítica em Octavio Paz, passando pelo uso criativo dos sistemas de classificação do mundo por parte de escritores, cineastas e artistas contemporâneos, tais como Peter Greenaway – até chegar nas pesquisas a respeito de coleções, inventários e enciclopédias ficcionais, De que modo esses estudos, o contato com esses temas sob o viés da reflexão, se conectam com sua poesia? Há alguma relação entre teoria e poesia em sua produção poética?

Não vejo o trabalho teórico e a criação poético-ficcional como campos dissonantes, excludentes. São experiências diferentes, mas afins, que podem se potencializar reciprocamente. Estou certa de que minha formação/atuação acadêmica foi e ainda é muito importante para o meu aprendizado/aprimoramento enquanto escritora. Minhas pesquisas nunca deixaram de incidir no meu trabalho criativo, assim como o exercício poético-ficcional nunca deixou de atravessar o meu trabalho como professora e pesquisadora. Todos os poetas, escritores e artistas que estudei ao longo de minha trajetória acadêmica estão, cada um à sua maneira, presentes no meu projeto literário e têm a ver com minhas inquietações também pessoais. Estudar Paz e outros poetas-críticos foi uma maneira de aprender com eles a conjugar essas atividades. Incursionar nos inventários, listas, séries e enciclopédias de Borges, Greenaway, Sei Shonagon e Bispo do Rosário foi uma maneira de lidar também com minha própria pulsão taxonômica que se dá a ver em muitos dos meus textos criativos em verso e prosa. E o estudo da zooliteratura tem me ajudado na composição de poemas, contos, verbetes ficcionais e crônicas voltados para os animais e outros viventes não humanos. Inscrevo-me no espaço das correspondências, das interseções e confluências.

No que tange especificamente à poesia, digo que meu aprendizado teórico tornou-me mais exigente no manejo da linguagem, deu-me uma consciência maior do processo de escrita. Mas sem que, para isso, eu tivesse de abrir mão dos voos da imaginação e dos sentidos. Mesmo que eu me valha do que sei sobre o fazer literário, use as técnicas que aprendi nos livros e ensinei em sala de aula, incorpore traços e referências dos meus autores de cabeceira, digo que a verdadeira a matéria-prima que sustenta minha poesia é a vida, o cotidiano, o que adquiri através de minha relação com  os outros, com o mundo, com minhas perdas, dores, alegrias e perplexidades.

Eduardo Jorge – Qual o espaço no poema para aquilo que você tão bem cultiva no horizonte ficcional, crítico e teórico: as enciclopédias, as coleções, os bestiários e as animalidades. E, talvez, um desdobramento desta pergunta seria o modo de mensurar essas forças vindo de uma bela experiência em sala de aula. No seu poema “Aula de desenho”, de Triz, 1998, por exemplo, há um limite evocado na arte e na vida que é muito material (carne, osso, lápis, giz), seria possível responder ou imaginar quais são os seus limites na poesia?

As listas, os verbetes, as coleções de coisas, os exercícios de animalidade, tudo isso está presente em meus poemas, sobretudo nos que vieram com e após O livro de Zenóbia. Nesse livro inseri oito listas sonoras de ervas, temperos, peixes, orquídeas/bromélias, aves em extinção, palavras preferidas, livros de cabeceira. No meu último trabalho publicado, O livro das sutilezas, retomo a estrutura da lista, com “Vozes e ruídos” – feita com uma série de designações de sons de animais e de outros seres (plantas, elementos da natureza etc.), construída após a leitura de um livro de Bernie Krause. Insiro, ainda, dez verbetes sobre ervas medicinais, inspirados nos verbetes do livro Physica, de Sta. Hildegarda de Bingen. Agora, terminei um novo livro, intitulado Pequena enciclopédia de seres comuns, só de verbetes sobre animais e plantas. Sem dúvida, minhas experiências em sala de aula foram determinantes para isso, sobretudo pelas oportunidades de troca com meus alunos em cursos voltados para esses temas.

Quanto à outra pergunta, digo que a concretude das coisas sempre me atraiu, exatamente porque me permite pensar nos limites que elas possuem. Já as coisas que se furtam a uma forma definida, que têm o que Octavio Paz chamaria de uma “fixidez momentânea”, essas são as que me dão a sensação do “por um triz” e me levam para a esfera da poesia – entendida como esse espaço móvel, flexível, e por vezes volátil para o exercício da arte e da vida. Meus limites na poesia se inscrevem na linguagem, na concretude das palavras e, paradoxalmente, na impossibilidade de permanecer por muito tempo dentro delas. Tudo fica sempre por um triz.

Alexandre Cassiano
Na Flip de 2016, na qual participou da mesa “O falcão e a fênix” (Foto: Alexandre Cassiano)

Prisca AgustoniHoje mais do que nunca a observação do nosso cotidiano adoecido por causa da agressão que o humano inflige desde sempre contra seu semelhante e contra a natureza, é teatro central de reflexões por parte de teóricos das mais variadas áreas de procedência. A centralidade que o humano, o eu, reivindicou sobre os outros seres vivos no planeta parece mostrar-nos com inusitada violência os limites da nossa arrogante soberba. Gostaria de lhe perguntar se essas reflexões – no seu caso, decorrentes também da longa pesquisa relacionada com a animalidade na literatura – a afeta como poeta e mais especificamente, em qual medida essa consciência crítica (e teórica) afeta a centralidade do “eu” no seu trabalho com a poesia: qual a dimensão e onde se localiza esse “eu” na sua escrita poética, em relação à natureza e aos outros seres vivos?”

Minha intrínseca relação com a natureza e os outros seres vivos vem da infância e passa, sobretudo, pela  ordem dos afetos. Foi essa afinidade com o mundo vivo que me levou, décadas depois, a pesquisar a questão dos animais e da natureza, bem como as próprias noções de humano, humanismo e humanidade, a partir dos limites e liames que existem entre nós e as demais espécies. Quando criancinha, eu costumava dar nomes aos insetos, galinhas e pequenos animais que circulavam no grande quintal de minha casa. Um exercício que se intensificou durante minhas temporadas na área rural, quando passava horas com bichos de várias espécies, estabelecendo com eles vínculos de amizade e solidariedade. Às vezes eu ficava à beira do rio, observando os peixes e os girinos. E sempre convivi com muitos animais de estimação, como cães, gatos, coelhos, patos e até mesmo porcos (tive um amigo suíno muito afetuoso e inteligente, que andava o tempo todo atrás de mim). Meu pai teve um papel fundamental nisso, pois era um homem que amava os bichos e a natureza, que tinha uma grande compaixão por todas as formas de vida e um respeito quase sagrado pelo mundo natural.

O “eu” que atravessa minha poesia e outros textos ficcionais passou a ficar mais explicitamente atravessado pelas formas híbridas de existência a partir de O livro de Zenóbia, centrado na figura de uma bióloga, amante de botânica e zoologia. Com ela, as listas de animais e plantas tomaram corpo no meu trabalho e as figuras animais passaram a povoar de maneira mais explícita os meus poemas. Já enquanto um “eu” civil, assumi este compromisso de refletir criticamente sobre as práticas de violência dos humanos contra seus semelhantes, contra a natureza e as vidas não humanas. São crimes terríveis, que têm dizimado comunidades indígenas, envenenado as águas e os alimentos com agrotóxicos, condenado animais à vida e à morte cruéis nas granjas e fazendas industriais, destruído florestas e inúmeras espécies de viventes.  É de fato uma tristeza sem fim ver a situação catastrófica que vivemos hoje no nosso país e no mundo. Pelo menos, encontro algum alento na poesia. Ando, por exemplo, muito apaixonada pela obra da portuguesa Fiama Hasse Paes Brandão, que tem tudo  a ver com o que busco, neste agora, para o meu trabalho com as palavras.

Reynaldo Damazio – Nas faculdades de letras, ensina-se a interpretar o poema; nas oficinas, a escrevê-lo. Mas como fica a poesia nesses dois processos de aprendizagem? É possível ensinar poesia?

Pois é, sempre me pergunto isso. Cheguei a oferecer duas oficinas de poesia na graduação, mas depois não quis mais trabalhar com essa atividade. Creio que minha contribuição é maior quando trato de poetas, poemas e teorias da poesia. Ensinar a escrever poesia é algo que não consigo. Gosto de ler poemas em voz alta, comentar o ritmo, as imagens, falar das sensações que me provocam e ouvir o que as pessoas têm a dizer sobre eles. Os cursos de Letras oferecem instrumentos para a compreensão dos mecanismos de composição poética e podem despertar o interesse dos alunos pela leitura de poesia e pela atividade poética. Ou não. Tudo vai depender da maneira como isso é levado para sala de aula. Em todos os meus cursos de teoria da poesia, geralmente começo com uma roda de leitura de poemas. Levo um monte de livros de poetas variados, a turma se divide em pequenos grupos de dois ou três pessoas, distribuo os livros e peço que cada grupo leia alguns poemas durante certo tempo e depois escolha um para ser lido me voz alta. Se, depois da leitura, alguém quiser comentar o texto lido, abro espaço para isso e aproveito para falar algo a respeito e dar informações sobre os autores. Só nas aulas seguintes começo propriamente a trabalhar os textos teóricos, buscando sempre dar prioridade aos escritos por poetas. Praticamente todos os teóricos da poesia que incluo em minhas aulas são de poetas-críticos. Enfim, é isso. Tento estimular a leitura. Mas ensinar a escrever poemas, transformar uma pessoa em poeta, isso não é bem a minha praia.

Manoel Ricardo de Lima – Há uma falta de leitura e de mundo, como política, numa projeção de pessoalidades em muito do que se produz recentemente no que se toma como “poesia brasileira”. É esta mesma produção que se vende como notícia, logo como domesticação e nenhuma estranheza, no jogo entre editoras maiores [relatos e temas ao “redor de si mesmo”], instituições culturais vinculadas a bancos e prêmios e certo jornalismo médio. Um trabalho mais sofisticado, mais perto da vida, do mundo e dos empenhos da biblioteca, como o seu, entre a sala de aula, o ensaio, a narrativa e o poema, numa deliberação até a imagem e suas implicações, provoca um convite a um leitor mais incorporado. Que tipo de furos você imagina que o poema ainda é capaz de fazer como implicação à vida de agora ?

A poesia que de fato faz jus a esse nome, que busca o núcleo irrequieto das coisas e da vida, não se deixa domesticar e nem se rende à mercantilização/midiatização. Quem escreve poemas para atender a demandas comerciais, midiáticas e institucionais não tem, a meu ver, uma relação intrínseca com o que entendo como poesia. Isso acontece também com outras formas textuais. Lembro-me de uma vez que conversei com uma agente literária estrangeira que trabalha com literatura brasileira e perguntei sobre a possibilidade de publicação de O livro dos nomes em um outro país. Ela, que havia assistido a uma apresentação minha, que incluía a leitura de fragmentos, simplesmente me disse: o seu livro não vende; nem adianta apresentá-lo às editoras estrangeiras. E é isso mesmo que tem acontecido.  E eu me recuso a escrever o que querem que eu escrevo, só para ganhar um lugar no mundo fashion da literatura. Também não quero apenas os leitores incorporados para os textos que escrevo. Então, como fica? Não sei.

Quanto aos “furos” que imagino que o poema possa fazer como implicação à vida de agora: cabe ao poema, a meu ver, estar sempre onde não se espera que ele esteja.

Tarso de MeloO que é escrever poesia em 2020?

Não sou capaz de dar uma resposta viável a esta pergunta tão importante a quem se dispõe a escrever neste ano infernal. Talvez, escrever a contrapelo. Ou, como diria o poeta Herberto Helder, “pensar com delicadeza/ imaginar com ferocidade”.  Acho que escrever, nesta hora do mundo, é atravessar as fronteiras de nossa própria humanidade para ver se ainda há caminhos possíveis para uma vida digna de ser vivida e escrita.


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