De Mikhail Bakhtin a Milan Kundera, os intérpretes de Dostoiévski

De Mikhail Bakhtin a Milan Kundera, os intérpretes de Dostoiévski
Fiódor Dostoiévski foi um escrito russo nascido em 1821 e falecido em 1881 (Foto: Pintura de Vassili Perov, 1872/Reprodução)

 

“O universo dostoievskiano de gestos exacerbados, profundezas tenebrosas e sentimentalismo agressivo era-me repulsivo”, escrevia Milan Kundera para o New York Times Book Review, numa polêmica com Joseph Bródski reproduzida em 9/6/ 85 pelo suplemento Cultura de O Estado de S. Paulo. E, referindo-se à proposta, que teria recusado, de adaptar para o teatro O idiota, o romance favorito de Dostoiévski, durante a ocupação russa na Tchecoslováquia, continua: “O que me irritava em Dostoiévski era o clima de seus romances: um universo em que tudo se transforma em sentimento; por outras palavras, onde os sentimentos são promovidos à categoria de valor e de verdade.”

“Esta afirmação em si mesma”, retruca o exilado Bródski ao racionalista Kundera, “é, no mínimo, uma distorção altamente sentimental. (…) Esses sentimentos (uma hierarquia deles) são reações a pensamentos expressos altamente racionais” – e continua explicando que Dostoiévski parte do pressuposto de que o homem é uma entidade espiritual que se debate entre o bem e o mal (essas as “profundezas tenebrosas”) e que, onde Kundera vê universos de sentimento (o radicalismo emocional oriental como que opondo-se ao universo da razão ocidental), Dostoiévski vê a propensão humana ao mal, sendo, portanto, a ideia kunderiana de equilibrar sentimento e razão, além de uma abordagem reducionista, algo condicionado, quando não redundante. “Qualquer ideia que valha tão somente um tostão é reconhecível e medida pela qualidade da resposta que suscita. Pois bem, se a literatura tem alguma função social, talvez seja ela a de mostrar ao homem seus parâmetros extremos.” (Por sinal diz Dostoiévski, via Henri Troyat, seu biógrafo: “Quanto a mim, o que eu fiz foi somente empurrar até o extremo, em minha vida, o que vocês só têm coragem de empurrar até a metade”.) “A esse respeito” – conclui Bródski -, “o homem metafísico dos romances de Dostoiévski é de maior valor que o racionalista magoado do senhor Kundera – não importa o quão moderno, não importa o quão comum. (…) Privado da graça,” – embora talvez fosse melhor dizer consciência – “cujo único equivalente racional é a resolução de parar de se torturar, o indivíduo racional muda para um hedonismo culposo.”

 

Desafios e revides à parte, vale a
pena ver o que teriam a dizer sobre
o assunto os dois críticos, ainda hoje,
mais reconhecidamente importantes
de Dostoiévski: Leonid Grossman e
Mikhail Bakhtin.

 

 

O leitor discute com as personagens de Dostoiévski, diz Bakhtin no seu famoso livro Problemas da poética de Dostoiévski, e verifica, coisa bastante curiosa, que elas podem insurgir-se contra o autor. O que é, de fato, a tão decantada “polifonia” senão a multiplicidade de consciências, plenamente qualificadas, cada uma com seu mundo e seu pensamento por trás, que a justifica? Consequência disso é a não-objetividade (objetualidade) da consciência dos protagonistas, contrariamente ao que costumava acontecer no romance tradicional: o acontecimento profundo da narrativa de Dostoiévski dá-se num mundo de sujeitos, não de objetos, e não se presta à interpretação via enredo, via desenvolvimento da ação, via monólogo filosófico, onde impera a concepção privilegiada de uma personagem (na maioria das vezes, coincidindo com a “voz” do autor). Qualquer pensamento é considerado por Dostoiévski como a tomada de posição de um indivíduo, sua ideia-sentimento, sua ideia-força.

Mais ainda, o próprio princípio da visão literária que Dostoiévski tem do mundo é justamente o de saber se o herói conseguirá ou não permitir que o eu do outro se coloque, se afirme enquanto sujeito, superando o egoísmo moral de cada um. O conteúdo dos romances de Dostoiévski gira, segundo Bakhtin, essencialmente em volta desse tema: a catástrofe que ronda uma consciência isolada.

Leonid Grossman, autor de Dostoiévski artista, começa procurando os germes do sistema narrativo de Dostoiévski, seus traços estilísticos e as leis complexas de sua composição em sua formação familiar e profissional (ele era engenheiro de fortificações), e nas ávidas leituras por ele empreendidas de centenas de autores da literatura mundial, acompanhando depois seu desenvolvimento nos diferentes contos e romances.

Em Gente pobre, o primeiro romance do autor (1841), por exemplo, Grossman encontra três camadas constitutivas: l) o fundo realista, expresso através do assim chamado ensaio fisiológico (característico da escola natural russa da década de 1840, que descrevia “daguerreotipicamente” a vida da população pobre da cidade e tinha implicitamente caráter de protesto), e que provinha muitas vezes de crônicas da imprensa diária; 2) o desvendamento de tensões, ou dramas sociais e individuais; e 3) a generalização concludente, ou seja, a crença numa justiça universal ou utopia do julgamento, a ilusão de uma justificação definitiva do homem, que se repetem, naturalmente, em outros romances do autor.

Em termos literários, essas três camadas conferem a cada obra do escritor o aspecto de um poema filosófico, composto de poesia, drama e epopéia e cuja composição obedece à lei da “multiplicidade de planos”, acoplada à lei de “não sei que outra narrativa” e seus desdobramentos.

 

 

Segundo Grossman haveria sempre,
porém, um tema-diretriz, um centro
moral definido de antemão, regendo
a composição de cada obra , e é aqui
que Bakhtin discorda dele.

 

 

Assim, por exemplo, no Romance de um grande pecador (é como deveria chamar-se originariamente Os irmãos Karamazov), o episódio do Grande Inquisidor é uma “outra narrativa” que se entrelaça ao romance e cujas fontes podem ser procuradas nas leituras que Dostoiévski fez de Schiller (Dom Carlos), pelo empolgamento moral, de Balzac, pela demolição desmistificadora, de Nicolai Fiódorov, pelo misticismo que prega a transformação da libido em Eros universal e espiritualidade. Nesse novo reino espiritual, segundo a utopia que Dostoiévski sugere, os homens já não precisam do Estado, substituído pela hagiocracia dos espíritos. Os grandes startsi (velhos considerados santos, fora da hierarquia eclesiástica e sem nenhuma ligação com o Estado) recebem as confissões, ministram as penitências e aceitam o mal como fenômeno humano inelutável.

Só que, aos poucos, no romance, vai se avolumando e tornando-se mais alta uma voz que se opõe a essa diretriz – a do irreligioso Ivan Karamazov. Embora convencido de que o mal é característico da condição humana, ele culpa a Deus por isso. Não é apenas contra a Roma Católica e a “espada de César” que se dirige a acusação de Ivan; é contra qualquer organização religiosa, qualquer tentativa de encontrar um sentido de predestinação neste mundo. Para que seja feita justiça é necessário que os homens, pecadores por natureza, se arrependam e procurem eles mesmos a sua expiação.

Como se vê, diz Bakhtin, a multiplicidade de planos e o mundo de associações heterogêneas submetidos à unicidade do projeto filosófico não dão conta da composição dostoievskiana. Da mesma forma que não pode manter-se um centro moral unificador definido de antemão – continua ele -, não há unicidade de estilo em Dostoiévski: à polifonia das vozes só pode corresponder a multiplicidade de estilos, ou seja, a multiplicidade de linguagens.

É por isso que, quando o crítico Joseph Frank se insurge contra o fato de Bakhtin ter dito que as personagens de Dostoiévski são autônomas e que se torna impossível e esteticamente indesejável querer estabelecer a diretriz unificadora (a mesma que propunha Grossman), sua crítica não procede. Se os materiais díspares de Dostoiévski se desenvolvessem num mundo unificado e se referissem à consciência de um autor monologante, o problema que ele coloca incessantemente, o da reunião do que é antinômico ou incompatível, não teria sido resolvido e o escritor teria realizado tão somente colagens.

O segredo que Grossman (e, em escala menor, Kundera) não descobriram é este: as diferentes consciências não são levadas a um denominador ideológico comum e nenhuma consciência acaba se tornando completamente objeto de outra. A ideia (e não a sensação) não é nem leitmotiv, nem princípio de representação do autor: ela é sujeito para o herói e objeto para o escritor. É uma ideia livre, sem passado, sem meios que a condicionem, ignora as categorias de gênese e causa – ela vive inteiramente no presente de cada um.

Aurora Fornoni Bernardini é professora de pós-graduação em Literatura Russa da USP.


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