A antipoesia de Nicanor Parra
O poeta chileno Nicanor Parra, morto nesta terça (23), aos 103 anos (Divulgação)
Considerado um dos mais influentes poetas em língua espanhola do século 20, Nicanor Parra teve uma obra longeva e diversa que abarca, além dos conhecidos antipoemas, canções populares, poemas visuais e discursos de intervenção cultural, sempre marcada por uma inflexão irônica e provocativa, que procura profanar o que o próprio autor chamava de “vacas sagradas” da literatura e da cultura dita “oficial”, além de realizar paródias de discursos religiosos e escrever poemas ecológicos de forte tom apocalíptico, refletindo sobre a possibilidade e as consequências de eventuais catástrofes nucleares e ambientais. Em um desses poemas, Deus toma a voz para dar um alerta à humanidade:
Francamente no sé qué decirles
estamos al borde de la III Guerra Mundial
y nadie parece darse cuenta de nada
si destruyen el mundo
¿creen que yo voy a volver a crearlo?
(Poesía política, 1983)Francamente, não sei o que dizer
estamos à beira da III Guerra Mundial
e ninguém parece se dar conta de nada
se vocês destruírem o mundo
acham que eu vou criá-lo outra vez?
O antipoeta Nicanor Parra, que morreu na madrugada desta terça (23), em Las Cruces, no Chile, aos 103 anos, pertenceu à primeira geração daquela que viria a se tornar uma importante família chilena de artistas, que entre músicos, arquitetos e artistas plásticos, inclui a cantora popular Violeta Parra, irmã mais nova do poeta. Parra nasceu em 5 de setembro de 1914, na pequena cidade de San Fabian de Alico, próximo a Chillán, no sul do Chile. No início dos anos 1930, mudou-se para Santiago, retornando a Chillán em 1937 para ensinar física e matemática no colégio onde havia estudado durante a infância. Poemas seus apareceram em Ocho poetas chilenos de 1938, antologia organizada por Tomás Lago, um dos primeiros intelectuais no meio literário chileno a reconhecer a importância da antipoesia, tendo sido também amigo pessoal do autor. Em 1949 mudou-se para Oxford, onde estudou cosmologia. Na Inglaterra, Parra leu Pound, Eliot e Kafka, e desenvolveu boa parte do que viria a ser a sua antipoesia. Em 1954, lançou Poemas y antipoemas, até hoje considerado um dos mais importantes livros da poesia hispano-americana do século 20.
O contexto cultural chileno da primeira metade do século passado, tanto popular quanto da chamada cultura oficial, é fundamental para a gênese antipoética, mesmo ela tendo tido lugar, em boa medida, durante o período vivido em Oxford. As correspondências entre Nicanor Parra e Tomás Lago referentes a esse período revelam de um lado a consciência, por parte do autor, de estar elaborando um tipo de literatura radicalmente diferente do que até então se produzia em língua espanhola, incorporando a linguagem popular e a experiência da psicanálise de uma maneira distinta daquela que as vanguardas realizaram, décadas antes; de outro, mostram a ansiedade em tornar visível esse fato diante do juízo do amigo. Em carta de 1949, Parra descreve seus experimentos poéticos a Lago, dizendo que “a arte não pode ser outra coisa que uma reprodução objetiva de uma realidade psicológica, e esse fim não se alcança tratando de mostrar apenas o que se considera revestido de certa dignidade. Um poema deve ser uma espécie de corte praticado na totalidade do ser humano, no qual se vejam todos os nervos, fibras musculares, todos os ossos e artérias, todos os pensamentos, imagens e associações” (carta a Tomás Lago, Oxford, 1949).
É contra essa pretensa dignidade de uma poesia que o autor chamava de “poesia do Olimpo” – notadamente a poesia lírica tradicional, mas também muitas das experiências das vanguardas do início do século – que a antipoesia se insurge, e a experiência literária de Parra, desde aquele tempo até pouco antes da sua morte, aos 103 anos, é a travessia dessa busca pelas contradições, defeitos, incoerências e loucuras da vida humana, sempre atento ao que chamava de “cultura propriamente tal”, em oposição a uma certa cultura elitizada que circulava em associações de escritores, círculos literários e universidades: isso é, a cultura popular, a fala comum e a experiência banal do cotidiano, em todo o seu absurdo.
Em 1962, saiu em Santiago Versos de Salón, livro escrito quase na sua totalidade em decassílabos, o que, dado o conteúdo cotidiano e irônico dos poemas, causava uma tensão formal que surpreendeu seus primeiros leitores. Em 1969, o autor publicou Canciones Rusas e Obra Gruesa. Em 1972, com a publicação de Artefactos, o autor inicia uma pesquisa com poesia visual, caligrafia e colagens poéticas, que se estenderá pelas décadas seguintes. Em 1977 e 1979, reagindo ao golpe militar chileno de alguns anos antes, publica Sermones y prédicas del Cristo de Elqui e Nuevos sermones y prédicasl del Cristo de Elqui, em que faz, segundo suas próprias palavras, “um espantalho” do discurso tradicional, religiosos e autoritário. Em 1982, publica Ecopoemas, em 1983, Chistes parra desorientar a la policía poesía, e em 1985, Hojas de Parra. Em 2004, vem a público Lear: Rey & Mendigo, tradução da peça de Shakespeare. Em 2006, as suas Obras completas & algo + saem pela editora Gutemberg, de Barcelona. Ao longo dos últimos 70 anos, a obra de Nicanor Parra atravessou diversas fases, do verso livre ao decassílabo e aos poemas visuais, da poesia ecológica ao chiste, da pregação religiosa à profecia do fim do mundo, na procura de uma poesia que estivesse mais próxima da vida real, como dizia o autor.
A questão da relação entre arte e vida remonta a diversas experiências poéticas anteriores à antipoesia; é uma questão que está presente, por exemplo, já na relação entre o Dom Quixote e os romances de cavalaria que a personagem de Cervantes devora na sua loucura. Parra era um grande admirador do escritor espanhol, e o que distingue a sua antipoesia das obras dos poetas que o precederam, nesse sentido, é algo que o aproxima de certa maneira de Cervantes e o distancia tanto da poesia lírica do século 19 quanto das vanguardas do século 20. Nos antipoemas, não é simplesmente a vida cotidiana que se transforma em poesia, mas a forma poética que assume o ritmo da vida.
A “cotidianização” da poesia, na antipoesia, não carrega necessariamente um sinal de valorização positiva da vida cotidiana. Muitas vezes o sujeito sofre porque sofre o sujeito que acorda cedo, que ama e teme a deus, que dorme mal e que se mata de trabalhar. A sua obra pode ser lida, é bem verdade, como uma tiração de sarro com uma tradição acadêmica degradada, com o erudito, cuja vida em meio aos livros e ao ensino lhe cortou a conexão com a vida verdadeira, a vida das ruas, a vida cotidiana.
Mas a julgar, por um lado pelo fato de que o próprio Parra foi também durante muitos anos um professor, e por outro pelo grau de autoironia que o próprio autor, nos poemas, descarrega sobre si próprio, é difícil sustentar que a antipoesia se limite a ser apenas uma troça do intelectual, já que para que se faça troça de alguém, é preciso que esse alguém leve a si mesmo a sério, em primeiro lugar. E os sujeitos dos poemas de Parra definitivamente não se levam a sério – esta é uma grande novidade com relação ao sujeito lírico tradicional, usualmente crente da autoridade da sua sensibilidade. Mais do que um ataque aos “outros”, que meros atentados a personalidades literárias e culturais, os antipoemas são um ataque do sujeito contra si mesmo; quando falam os sujeitos de Parra, é contra si mesmos que eles falam, em primeiro lugar.
Esse sujeito antipoético pode chegar ao ponto de considerar-se, por sua vez, ridículo; a sua mirada diante da própria vida é a de um profundo realismo resignado. São sujeitos que muitas vezes abrem-se a si mesmo como se fossem um experimento científico (“Considerem, companheiros… a minha língua roída pelo câncer”, diz o poema “Autorretrato”, de Poemas y antipoemas). É uma situação bastante diferente daquela em que se via o poeta lírico, dobrado sobre si mesmo na vertigem voluptuosa da vida interior, que se depara com “sangue, sinceridade e chamas”, na definição de lírica do filósofo Emil Cioran. A carne, o sangue, o suor, nos antipoemas de Parra, são todas figuras do cansaço. É uma carne roída, podre; um sangue e um suor sujos – que contaminam a comida, que inutilizam a parca recompensa da batalha diária; são figuras da mesma ordem de banalidade que o pó de giz com que o professor se intoxica ao longo de uma vida dando aulas e, em última instância, não se diferenciam, na dureza das coisas que é a sua fatura, “da cara do burguês”, como diz o mesmo “Autorretrato”. Aquilo que para um certo lirismo da vertigem efervescente da vida individual é o imperativo da purificação através de uma “expressão de si”, é em Parra uma busca por uma voz que seja a voz de todos, “uma voz da tribo”, como ele dizia – por um sujeito múltiplo, “desindividualizado”, dissolvido no mar da linguagem comum.
Esse oceano de expressões populares, piadas, trocadilhos e ironias arrasta o sujeito dos poemas de Parra para a baixeza onde vivem as coisas toscas e os homens “embrutecidos”. Nada é perdoado, mas não há propriamente culpa; não há muito menos o imperativo de poetizar: há a existência – e o fato de a existência ser uma batalha com poucas chances de vitória é a sua loucura. Mas não há desespero. Não há redenção nos antipoemas porque não há necessidade para redenção; porque o sujeito concebido assim, com a comicidade de um quase cadáver, não a demanda. Há, com tudo isso, uma enorme força de libertação na poesia de Parra: a libertação, no limite, da linguagem de todas as amarras que qualquer noção pré-concebida de poesia traz consigo. A experiência antipoética sustentou, até o final, o signo dessa tragicidade cômica que foi a marca deixada por Parra para a literatura porvir.
JOÃO GABRIEL MOSTAZO LOPES é escritor, tradutor e pesquisador. Trabalha desde 2012 com a obra de Nicanor Parra, e atualmente desenvolve junto ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP uma pesquisa de doutorado sobre a antipoesia.
(2) Comentários
Eu estou escrevendo, em espanhol, um livro que reúne cuentos cortos, poemas e relatos. Mas quando soube da força da Antiposia de Nicanor Parra, decidí escrever todos meus poemas no estilo antipoético.
Outra coisa que me aproximou do Sr. Parra foi que meu pai morreu, na semana passada, com 104 anos. Vou tentar publicar meu lvro quando retorne a EU, na próxima semana, onde eu morei até 2004.
Lhes desejo muita sorte na divulgação do trabalho do Sr. Parra.
Nossa que lindo Revista Cult, me sinto honrado por ser metade chileno também conheço um pouco da obra desse poeta. Como sempre vocês me fazem refletir, é por isso que visito esse site todos os dias, aqui o conhecimento é difundido. Obrigado