É culpa dos políticos e da mídia! Sobre o cidadão irresponsável

É culpa dos políticos e da mídia! Sobre o cidadão irresponsável
O cidadão brasileiro nunca se engana nas suas escolhas eleitorais, mas é enganado pelo político ardiloso (Arte Revista CULT)

 

O brasileiro é um sujeito engraçado. Ele decidiu, há muito tempo, que o país é composto por duas entidades, justapostas e independentes: os políticos e os cidadãos. E divide as responsabilidades pelo destino da nação de maneira muito decidida: 90% do que somos ou deixamos de ser enquanto país são de responsabilidade dos políticos; 10% são divididos aleatoriamente por clima, história, religião e mentalidade. Diretamente, os cidadãos não são culpados por nada.

Os políticos são maus, torpes e insensíveis; os cidadãos brasileiros são bons, mas parvos e dependentes dos primeiros. Os políticos conduzem o país pelo nariz, como se fazia com bois de arrasto, para lá e para cá. Sobretudo para lá: para o atraso a que somos destinados.

Todos os nossos problemas, portanto, têm a ver com os nossos políticos. Que são privilegiados e atuam exclusivamente com base em interesses próprios. Como não somos responsáveis por nada e os políticos são culpados de tudo, quando entramos em nossos períodos de depressão (que alternamos com fases de euforia), decidimos que os políticos devem ser punidos. Como fazemos com crianças pequenas, precisamos apenas identificar alguma coisa de que eles gostem e as tomamos. Uma pedagogia simples.

Eles gostam de foro privilegiado? Pronto, não tem mais, vamos ver se agora eles aprendem. Eles gostam de financiamento privado de campanhas? Vamos acabar logo com isso e quero ver agora como vão roubar. Eles gostam de ir arrastando as suas condenações de instância em instância do Judiciário, até que as penas prescrevam ou a idade chegue com as suas bonificações? Vamos mandá-los para a cadeia assim que o processo passar pela segunda instância, que é só assim para que temam o braço pesado da Justiça. Eles gostam de se candidatar sem ter que passar por qualquer crivo, nem mesmo a obrigação de ter bons antecedentes criminais? Pois vamos fazer uma lei segundo a qual só os de ficha limpa podem ser escolhidos nas eleições e assim eles entenderão que com a Lei não se brinca. Nem vou mencionar aqui os que gostariam mesmo é de acabar com a raça toda, pois político nenhum presta.

E os cidadãos comuns? Nada têm a ver com o que esta nação resultou ser? Aparentemente, na percepção mais compartilhada, o cidadão é uma vítima, como o próprio país o é. O cidadão, por exemplo, não se engana nas suas escolhas eleitorais, mas é enganado pelo político astuto e ardiloso. E quando se dá conta de que foi enganado, o que ele faz? Pune, claro. Votando no adversário daquele falso que o iludiu. A cidadania brasileira, coitada, está sempre alternando nos papéis que lhe incumbem o próprio drama, entre ser iludida e enganada, de um lado, e se entregar à retaliação e à punição, de outro. Parece o enredo de um bolero.

A cadeia de consequências, em que pessoas adultas fazem escolhas razoavelmente conscientes e assumem responsabilidade pelo que daí resulta, não parece que se aplique aos cidadãos brasileiros. Gostamos mais, para explicar fracassos e erros, das noções de destino e de fatalidade, de um lado, e de engano e trapaça, do outro. O fracasso como nação, principalmente em educação, saúde pública, infraestrutura e segurança (as coisas que tanto admiramos nos outros países), é associado a certos atavismos que nos atam a este destino: patrimonialismo, corrupção, clientelismo. Os erros na escolha das lideranças políticas, por sua vez, são diretamente correlacionados a engano nosso, em geral explicado com ênfase no que sobra aos políticos (argúcia e malandragem) e no que falta à população (educação, discernimento, esclarecimento).

Do ponto de vista da cidadania, o quadro que descrevo acima tem como primeiro efeito transformar o eleitor, o manifestante, o militante, o cidadão político em um sujeito politicamente irresponsável. É vítima, coitadinho. Não tem discernimento, pobre criatura. Como pode ser implicado na cadeia das consequências da sua ação política, seja ela materializada no voto ou concretizada nas manifestações públicas de que participa, se é manipulado pela mídia ou ludibriado pelos políticos? Este cidadão-infantil é uma marionete do jogo político, mesmo quando ocupa as ruas ativamente ou ativamente participa das campanhas eleitorais, a ferro e a fogo, para que as suas preferências prevaleçam.

Ou vocês acham que em uma nação em que os eleitores se vejam como adultos seria tão celebrada a ideia de que as pessoas precisam de uma lei para impedir que elas votem em criminosos condenados em duas instâncias da Justiça? A Lei da Ficha Limpa existe, literalmente, para nos proteger do nosso desejo de votar em criminosos. E a celebramos com despudor inquietante. Nada mais tranquilizador do que alguma interdição que nos poupe das aflições de lidar com as nossas pulsões, certo Sigmund?

Outro exemplo? As pessoas vivem exigindo que o PT faça pelo menos uma autocrítica consistente da sua conduta durante os 12 anos de hegemonia do Partido. Deveria mesmo. Hoje sabemos que enquanto o Mensalão, que muitos petistas negam até hoje, era julgado, o Partido e seus aliados estavam operando outros esquemas de corrupção ainda maiores e mais desastrosos para o país. Está certo, o PT nos deve uma autocrítica (o que é diferente da autoimolação que alguns requerem), mas quando chegará a autocrítica da esquerda & amiguinhos que em junho de 2013 ajudaram a eclodir o ovo da serpente que culminou no sombrio bolsonarismo, que ronda as eleições de 2018 como um espectro maligno?

A esquerda celebrou com comoção as tais Jornadas de Junho como uma nova Primavera Democrática. Mas, e agora, quando é evidentemente que foi ali que ganhou corpo, fôlego, método e motivação a mobilização das forças políticas que desembocaram no intervencionismo militar, no movimento ultraconservador de direita e no antipetismo? Evidentemente, não foi apenas por 20 centavos, nem foi para “consertar o Brasil”, como diziam ou alegavam – foi para plantar o que se colhe agora, cinco anos depois. E o que se colhe não é mais democracia nem mais justiça. Nem mais inclusão. Antes.

E quando virá a autocrítica dos Seguidores do Pato, dos paneleiros e dos impitimistas de 2015 e 2016, que mobilizados pelo choro histérico e infantil de Aécio Eu-Que-Devia-Ser-Presidente Neves, ocuparam as ruas, as páginas e as telas dos jornais e as mídias sociais para produzir a mais grave gambiarra política desde a restauração da democracia no país: o impeachment da recém-eleita Dilma Rousseff?

Esta semana, perguntei a um amigo que em 2015 e 2016 tinha certeza de que o mandato popular conquistado por Dilma tinha que ser tomado, na marra mesmo e com urgência, sobre como avaliava as consequências deste ato. Não hesitou: “ela tinha que sair, porque estava roubando demais”. Ante a minha objeção de que o “roubar demais” não passou nem longe das “razões” pelas quais ela foi processada e o seu mandato foi tomado, ele arregalou os olhos. “Claro que sim”, teimou. “Por que mais seria?”. E quando lhe fiz ver que o mandato foi tirado de Dilma para ser dado a Temer, este sim, segundo o Procurador Geral da República, alguém que “roubou demais”, já não havia mais respostas à mesa. E quando insisti que se Dilma tivesse perdido para Aécio, como queriam os antipetistas, aí sim nós teríamos tido um presidente que, conforme todos os atestados disponíveis na Justiça e na imprensa, “roubou demais”, o assunto já estava em “este país não tem jeito”, “os políticos roubam demais, a gente não tem a quem recorrer” e no convencional grand finale “é por isso que estamos pensando em mudar para Portugal”.

As pessoas simplesmente não se implicam nas consequências da sua ação política. Lembro deste meu amigo espumando convicções, pontificando certezas e tremendo de tanto furor ético em 2014, quando Aécio começou a desfiar o rosário das razões por que a presidente que o venceu nas urnas deveria dar licença para que ele, o herdeiro por direito do Trono de Tancredo, assumisse a presidência da República. Agora, o meu amigo alega um conveniente “véu da ignorância” (“a gente não sabia na ocasião das coisas que sabe hoje sobre Temer e Aécio”). E decide que foi vítima, incauta, das “maracutaias dos políticos”. E, em vez de admitir o seu papel nas consequências da sua ação, decreta que não tem nada a ver com isso e resolve que é hora de tentar a sorte em outro lugar, um onde quis o destino que vivesse um povo bafejado pela Fortuna. Os políticos, estes sim, devem fazer autocrítica. Os cidadãos, coitados, estes não têm culpa de nada.
Preparem-se.

Como os cidadãos não têm culpa nem responsabilidade pela política, em 2019 nos cairá do céu a 56ª Legislatura Federal. Que, segundo todos os indícios, será ainda pior que a 55ª, empossada e atuante. Como os brasileiros nada têm a ver com isso, imagino que será produzida pela vontade dos deuses, por conluio dos próprios políticos ou, como fantasiam os bolsonaristas-aecistas do movimento do voto impresso, por homenzinhos minúsculos que moram dentro das urnas eletrônicas. Enquanto isso, a esquerda bem que queria ir para Cuba, onde há saúde e educação para todos, e a direita faz as contas para se mudar para Cascais, onde há céu azul, homens de bem, gente diferenciada e segurança pública. Nem uns nem outros têm algo a ver com o atoleiro em que nos encontramos.

(1) Comentário

  1. Excelente texto. Perfeito nas colocações. Estava falando exatamente isso num debate com alunos hoje pela manhã m

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