O voto feminista é revolucionário

O voto feminista é revolucionário
Manifestação 8M em Belo Horizonte, 2020 (Foto: Catarina Barbosa)

 

O voto feminista emancipa as mulheres de forma arrebatadora. É um romper de silêncios profundos, do esmagamento cotidiano, do quase não existir. É a possibilidade de escrever de próprio punho o projeto de vida (de rua, de cidade, de país) onde a justiça social seja meta primeira e a agenda sócio-político-econômica tenha um sentido concreto na vida das mulheres, especialmente as mais vulneráveis, mas não somente elas; que seja palpável na realidade cotidiana de todas as pessoas. Da megalópole à cidadezinha mais distante.

Em 23% das câmaras municipais não houve vereadoras eleitas em 2016, segundo dados do TSE. É um dano social gigantesco, que penaliza ainda mais as mulheres e todo o seu entorno. O exemplo da creche é simbólico, pois ela altera imediatamente a vida da mulher e das crianças. A médio prazo, mexe na vida de toda a rua, e por fim, da cidade inteira. Com creche qualificada, uma mulher pode trabalhar, conquistar o valioso tempo da reflexão, aumentar sua renda, estudar, fazer circular a economia do bairro. A criança, bem cuidada, aprende mais, melhor, cria raízes positivas na comunidade e chega na escola com muito mais preparo, desfazendo uma desigualdade que era quase destino. Pois bem, a quem interessam as creches? Quem vai mais lutar por elas?

A força do voto das mulheres pode ser medida pela resistência a ele. Somente em 1932 o Congresso brasileiro aprovou o voto feminino, nos primeiros anos ainda parcial, com a inaceitável exigência de autorização do marido ou do pai. Hoje, em 2020, toda mulher é livre na cabine eleitoral. Não é um pormenor. Ali, de cara com a urna, talvez mais do que em qualquer outro momento da vida cotidiana, o poder, o sonho e a autonomia ocupam a mesma frase, o mesmo espaço. É revolucionário o poder de poder!

Ainda há mulheres que chegam no dia das eleições com o voto determinado, no “cabresto”, pela ala masculina da família ou das relações sociais, como se estivéssemos nos anos 1920, quando ao universo feminino só cabia obedecer, executar e silenciar. É um tempo passado que é presente, e essas mulheres merecem toda a acolhida… sabemos o quanto as violências paralisam.

A elas, dois lembretes: 1. na cabine eleitoral transformamos números na esperança de ser livre também fora dela. 2. Lutamos pela emancipação de todas, incluindo as que nem nasceram, as que ainda não conseguem, as que não querem – pois no fundo entendemos que esse “não querer” é um provável desejo ensinado para sustentar o estado de coisas. Como sentencia Rebecca Solnit: “o que chamamos de boa educação, muitas vezes significa aprender que o bem-estar alheio é mais importante”.

Todas serão feministas, é só uma questão de tempo. O processo de conscientização sobre as injustiças, no entanto, é dolorido e exige maturação. Do tempo da troca e da reflexão – quando a dor individual e moralizante se mostra coletiva e politizada; e do tempo contínuo, do assentamento dos saberes, da transformação interna na nova pessoa que nasce ressignificando o corpo, a narrativa e o contexto que anteriormente existiam. A tomada de consciência – semente do feminismo –, tal qual uma nova alfabetização sobre a nossa existência no mundo, é irreversível e avassaladora. Nos move contra o curso do rio, impelidas a construir uma estrutura social que seja mais justa e democrática. Que nos caiba, que nos enxergue.

E é possível. Pesquisas mostram que, onde há prefeitas, é menor o número de mortes de crianças, pois a atenção a políticas voltadas à primeira infância é mais consistente. As mulheres conseguem captar mais recursos, fazer mais parcerias. Estudos também mostram que em gestões femininas há menos corrupção e processos por fraude. São gestões competentes, de superação, da busca por soluções criativas, dialogadas. Claro, o gênero não determina a boa gestão ou o caráter. O que os números indicam é que não há motivos para não eleger prefeitas e vereadoras.

 

Essa explosão de vontade
consciente, coordenada,
compromissada e qualificada
emoldura o voto feminista.

 

 

Um voto que está na urna, mas principalmente fora dela, na ação política do cotidiano, de resistência em várias frentes pela emancipação de todas, superando o bem-viver para chegar no que a ativista feminista boliviana Julieta Paredes prefere chamar de viver bem, fazendo com maestria uso da semântica como estratégia política para narrar o mundo como o queremos:

“Dizemos viver bem pois primeiro vem o viver, depois o bem. O ‘viver’ envolve a água, o pão, a tapioca, como dizem aqui. Primeiro é necessário cuidar da vida. E depois, construir o ‘bem’, que é com todos e com todas, não somente com a humanidade, mas também com a mãe e irmã natureza. E não é o “Viver Bem” de uma pessoa. Você não pode viver bem se ao seu lado tiver uma comunidade, um vizinho, um irmão ou pessoas na rua passando fome”.

Novos reconhecimentos sobre a realidade exigem uma nova linguagem, uma outra postura. Um voto feminista. A linguagem-ação do corpo, da prática política, das estratégias de luta, o poder em disputa, tudo precisa ser essencialmente diferente para mover a pesada engrenagem cultural. Sem uma vigorosa agenda antissistêmica, o pouco que sai do lugar é empurrado de volta.

Votar com convicção numa mulher feminista, acreditando em seu compromisso, na sua competência e no projeto político que ela carrega é empurrar a pedra com toda a força. Imagina a engrenagem sendo empurrada milímetro a milímetro em cada voto feminista! O impacto cumulativo é de uma potência inigualável.

É uma jornada inconclusa, em curso, fundada na experiência feminista que vem de longe e nos transcende, convocando à ação. Por todas e por cada uma, pela radicalidade – da raiz – sem intransigência. Para que as mulheres, em toda a sua diversidade, negras, LBTQI+, brancas, latinas, com deficiência, periféricas sejam atrizes múltiplas da política: como eleitoras, candidatas eleitas, cidadãs, profissionais, ativistas. Para que todas possam comandar a gestão de uma sociedade mais justa, democrática e livre.

 

O voto feminista é uma rasteira
nas certezas cristalizadas como
leis da natureza. É nó em pingo
d’água para desconstruir o castelo
de superioridades descabidas.

 

 

Não haverá vida digna sem o enfrentamento dessas desigualdades, que tendem a se perpetuar até que a tomada de consciência seja amplamente coletiva e o voto feminista alcance a massa crítica, que é aquele número mínimo a ser atingido para que grupos desfavorecidos consigam somar uma força capaz de se manter e ampliar suas condições de disputa

Com 30% de mulheres diversas eleitas para as câmaras municipais e as prefeituras (e em todas as esferas de poder) é possível alterar a correlação de forças, ainda em bastante desvantagem, porém não mais em desamparo ou exclusão. A onda do voto feminista nessas eleições pode acelerar o lento crescimento feminino nos poderes executivo e legislativo.

De 1995, quando tiveram início as frágeis iniciativas institucionais para reduzir a assustadora disparidade de gênero na política, chegamos à exigência de preenchimento do mínimo de 30% e máximo de 70% de candidaturas de cada gênero, além das determinações para direcionamento de 30% do fundo de campanhas, do tempo de TV e rádio, e a recente definição pela distribuição de recursos com base na proporcionalidade racial. São avanços vindos de muita luta dos movimentos de mulheres e organizações sociais diversas, mas, ainda assim, os dados nos chocam: em 2016 foram eleitas apenas 11,5% de mulheres para as prefeituras e 13,5% para as câmaras municipais.

Sabemos o que fazer: “tá na hora de reagir, entender que somos gigantes, ocupar o nosso lugar. Acolher nossas almas”, canta, contundente, Flaira Ferro. O voto feminista é capaz de reduzir as violências do processo eleitoral para as mulheres, especialmente as negras e periféricas, que pela série de exclusões são as mais desconhecidas e distantes do mínimo apoio.

O voto feminista é capaz de representar uma mensagem-repúdio aos partidos que fraudam o sistema eleitoral, burlam as cotas e desviam (ou barram) recursos para impedir a presença competitiva de mulheres e manter uma vantagem ilícita na disputa pelo poder. Votar nelas é uma reação pessoal, social e política contra as violências econômicas, partidárias e simbólicas que fraturam a democracia e excluem as mulheres dos espaços onde tudo sobre nossas vidas é decidido.

 

O voto feminista é capaz de eleger
mais vereadoras e prefeitas e com
elas remar para equilibrar corpos,
agendas e direitos na política.

 

 

Não é mágica e nem começou agora, mas no nosso tempo histórico podemos alavancar a retomada da verdadeira democracia feminista, que é para todas as pessoas.

É uma agenda de luta que de tão imensa parece (querem que pareça) abstrata. Mas não é. Está entrelaçada com todos os contextos do viver, num fio condutor irradiado pela política institucional, que por sua vez está relacionada ao voto de domingo (e a todos os que já demos), à postura do guarda de trânsito, ao contrato de aluguel, à definição do orçamento público, ao livro indicado na sala de aula, à linguagem, ao preço do pão.

Está relacionada ao sucateamento da rede pública de saúde, ao assédio no transporte público (e fora dele), às pesquisas sobre células tronco, à falta de creche, à nossa aposentadoria, ao feminicídio, às mulheres na América Latina, ao poste na rua, à internet que usamos, à sentença de estupro culposo, à programação da TV, à água que não chega e até ao lamento do jogador Robinho pela existência do feminismo, numa lista simplesmente infinita.

A condução da cidade, lugar de vivência, experiência, dores e alegrias, precisa estar a serviço da democracia e do Estado de Direito. Garantir a viabilidade das pautas historicamente reivindicadas pelas mulheres, passando necessariamente pelo seu direito de escolha, pela autonomia sobre seu corpo e o direito à vida.

Vamos juntas nessa jornada? Vai ser com emoção, coração batendo forte e muita vontade de atingir a paridade ao lado das Hermanas da América Latina e construir um mundo novo.

Meu Voto Será Feminista

O projeto-ação Meu Voto Será Feminista potencializa lideranças feministas a atuarem nos espaços de poder de modo cada vez mais qualificado, coletivo, solidário e conectado às demandas sociais das mulheres. Funcionamos como uma mandala: incidência política – pesquisa – apoio e fortalecimento das eleitas – fomento ao debate sobre a participação política feminina – impulsionamento de campanhas. O círculo gira a cada processo eleitoral, num momento-pulsão para viabilizar a chegada ao poder de forma multiplicada, em soma às que já exercem a luta nos espaços institucionais, e ativando as demais ações do projeto.

Juliana Romão é jornalista, mestra em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora da inclusão de gênero na linguagem, membra da PartidA e co-criadora do projeto Meu Voto Será Feminista.


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