Vinte e quatro horas em Santiago: formas de lutar

Vinte e quatro horas em Santiago: formas de lutar
Protesto do dia 21 de outubro, em Santiago, no Chile (Foto: Rodrigo Garrido)

 

A primeira sexta-feira de dezembro em Santiago começa inquieta: o anúncio de novas manifestações, convocadas pelas redes de sociais, levou ao aumento do efetivo da polícia nas ruas, com blindados espalhados pelo centro. Na véspera, o Palácio La Moneda fora alvo do escracho pacífico de centenas de garotas com a canção contra o feminicídio, que cita explicitamente os policiais, o Estado e o presidente, apontando para a cara daqueles que, detrás de um gradil, faziam a guarda do edifício. No dia seguinte, o gradil aumentara em muito seu perímetro, fazendo com que quem quisesse atravessar a Alameda, precisasse passar pelo controle dos policiais e enfrentar então outra barreira, seja para ter acesso à rua Teatinos, lateral do Palácio, seja para visitar o Centro Cultural La Moneda. A Casa do Governo estava evidentemente entrincheirada.

Há caveirões pela cidade, caminhões do choque, viaturas menores e policiais – homens e mulheres – no estilo tropa de choque, em grupos de ao menos três, em alerta. Dois dias antes, ao menos dez mil mulheres de mais de 40 anos de idade fizeram a mesma performance do Las Tesis em frente ao Estádio Nacional, local de tortura nos primeiros tempos da ditadura de Augusto Pinochet, cantando em coro: “O estuprador é você”. Tanto a performance das “seniors” na quarta, quanto a das professoras na quinta foram pacíficas e não resultaram em nenhuma forma de repressão policial. Manifestações assim que, à luz do sol, fazem pensar que se está chegando a um certo grau de pacificação. A passividade diurna dos carabineiros dava a falsa impressão de que o clima arrefecera.

Quem se aproximasse da Praça da Dignidade ao fim da tarde de sexta, com os últimos raios de sol, que no verão chileno acontece após as oito da noite, poderia sentir uma atmosfera nova e única do ambiente, e custaria conseguir entender, classificar o que presenciava. No grande complexo verde que começa com o Museu de Belas Artes até o início da praça Itália, há diversas formas de interação com o espaço. A população distribui-se pelos mais de 170 mil metros quadrados do enorme Parque Forestal: passeando, tomando cerveja, andando de bicicleta, patinete ou simplesmente espalhada pela grama. É possível ver uns poucos idosos e crianças, mas a maior frequência é da faixa que vai da adolescência até a casa dos cinquenta anos.

O que singulariza o vasto grupo são alguns acessórios que muita gente traz consigo: máscaras de gás, máscaras pra proteger os olhos, capacetes ou apenas uma “pañoleta”, o lenço pendurado no pescoço. Quem veio à praça sabe que a qualquer momento vai precisar proteger os olhos, a garganta, o nariz ou, caso esteja no front do ataque, a própria cabeça. Gás e cassetetes agora fazem parte da atmosfera urbana. Não faltam também algumas bandeiras: a mapuche, criada no começo dos anos noventa para representar as populações nativas do sul chileno, mas também a redesenhada bandeira chilena, em que o azul e o vermelho deram lugar ao negro, para se adaptar ao momento de conflito; quanto aos lenços, embora sejam estampados de muitas cores, predomina o verde, da campanha pelo aborto legal, difundida a partir da Argentina.

Há aglomerações diversas pelo parque: uma apresentação de rap mobiliza centenas de pessoas; um cantor solitário canta e dança um roquinho dos anos sessenta sob o olhar complacente de alguns transeuntes. A paisagem muda à medida que se chega mais próximo da Praça, epicentro do terremoto, verdadeiro significante em disputa: os manifestantes, num gesto para lá de significativo, passaram a chamar de Praça da Dignidade aquela que originalmente, em sua inauguração ainda em 1875, se chamara Praça da Serenidade, mas que teve seu nome trocado primeiro para Praça Cristóvão Colombo, para a celebração do quarto centenário da Conquista da América, passando então por um breve período a se chamar Praça Itália (1910-1928), nome pelo qual ainda é bem conhecida, mesmo após ter sido rebatizada para homenagear o General Baquedano, um comandante da Guerra do Pacífico, cuja estátua ainda está no local, mesmo que totalmente transformada, a partir de uma série de intervenções com tecidos, tintas, faixas cartazes com as imagens, símbolos e frases do atual momento de rebelião. Mais próximo da estátua de Baquedano, aglomeram-se os manifestantes, os que gritam palavras de ordem, os que soltam fogos, os que tocam apitos, os que batem palmas e se manifestam contra a polícia, o governo, o Estado, e pela mudança, a liberdade e a transformação. É por esse perímetro onde é possível sentir, durante vários momentos da tarde, o gás lacrimogênio nos ardendo nos olhos e fechando a garganta. Os manifestantes, acostumados à nova contingência, já se protegem com seus apetrechos, andam com bicarbonato e limão. Há inclusive pequenas brigadas voluntárias de apoio, para os primeiros atendimentos, quando se faz necessário. A polícia é dura, violenta, implacável.

Nas proximidades, onde o ar é mais respirável, um grupo de artistas de rua com rostos cobertos por máscaras de caveira descontrai o ambiente, e com seu naipe de metais acompanha as pessoas que gritam “O povo unido jamais será vencido!”. Todos têm os braços em riste, enquanto um par de caveiras dança com uma bandeira vermelha, verde e branca em punho, na qual se lê: “Renuncia, Piñera!” A pequena multidão festeja, mas o ápice só vem depois, quando com uma interpretação pungente de Il Partigiano (Bella Ciao), a canção italiana contra os fascistas, o par de caveiras salta, dança e interage com os presentes. Naquele momento, quem está na praça se emociona e acredita que outro mundo é possível, que a arte pode com o totalitarismo.

Poucos segundos depois a comunhão se dissipa, os instrumentos cessam e todos abrem passagem para um grupo de cerca de dez pessoas que, aos gritos, indica que tem um homem ferido precisando de atendimento, pois acaba de ser golpeado na cabeça pelos policiais. O temor toma conta dos presentes, pois não se sabe ao certo se a polícia está vindo em nossa direção.

Caminhando em vários rumos, as pessoas se preservam de qualquer tentativa direta de ataque, conseguindo se proteger; e a polícia, por sua vez, consegue seu objetivo de difundir o terror e desmobilizar, ainda que momentaneamente, o grupo. O ferido, que tem já a cabeça enfaixada, vai sendo levado numa maca improvisado para um… teatro, a metros dali. É o Teatro da Ponte, espaço alternativo, construído sobre a estrutura de uma ponte sobre o rio Mapocho, que corajosamente decidiu desde novembro suspender suas atividades e sua programação de modo a transformar-se num posto de primeiros socorros “para atender os feridos em manifestações”. Lá, quem sofre os impactos dos cassetetes das forças de segurança do Estado, é acolhido por voluntários. Uma ambulância do SAMU local aguarda ao lado, para os casos de maior gravidade.

A rede de solidariedade criada ao longo das semanas de manifestação se deixa ver por toda parte: na rua Merced, por exemplo, há uma loja de produtos veganos que avisa: “Se você precisar de limão, bicarbonato, água ou ajuda, basta pedir #naoestamosemguerra #govegan!” A rede, porém, não é apenas de defesa, mas também de ação. Caída a noite, parte considerável das pessoas começa a se deslocar da Praça Itália em direção à Plaza de Armas, pela mesma Merced. Vão em pequenos grupos, o que dificulta a ação policial. Em meio à discreta passeata, alguns pegam sacos de lixo e vão deslocando para o meio da estreita via de mão única; outros vão colocando fogo no que serão as barricadas para interromper o trânsito e facilitar a passagem dos manifestantes. Os motoristas, confusos, dividem-se entre subir pela calçada, voltar pela contramão ou aceitar as indicações de algum flanelinha improvisado que aproveita a situação para, depois de dar as dicas, pedir uma caixinha.

A esta altura já não há saques a lojas, nem destruição de bancos e de supermercados. As grandes redes instalaram barricadas de metal, que impedem a invasão. Os comércios menores deixam avisos nas portas: “Estamos com vocês. Favor não saquear”, “Esta banca é do Seu Luis, que tem 75 anos, e é o sustento para a casa dele. Por favor, não vandalize. Ajude a ele, comprando dele ervas medicinais. Abre todas as manhãs.”. Os alvos são inapelavelmente o Estado, o presidente e a polícia. Ondas de pessoas seguem em direção ao La Moneda. Não há um líder, não há um carro de som.

Há diretrizes comum, como a de incendiar o lixo, gritar e chamar as pessoas dos edifícios do entorno. As poucas pessoas que estão na rua, na fila do único mercadinho aberto, que atende detrás de uma grade de ferro, não se exaltam com a passagem dos manifestantes. Uma viatura da polícia cruza a toda velocidade por uma perpendicular, lança uma bomba de gás lacrimogênio e parte. O gás interrompe os cantos e sobe pelas sacadas dos edifícios. Em poucos minutos, os gritos ficam mais fortes, e novas ondas de pessoas chegam e vão passando. A fila do mercadinho se reagrupa, e a noite segue com sua nova normalidade.

Enquanto isso, a algumas quadras dali, outro grupo partiu da mesma Praça da Dignidade pela Vicuña Mackenna em direção ao prédio da reitoria da Universidade Pedro de Valdívia. O edifício do início do século vinte fora saqueado e parcialmente incendiado na noite de 8 de novembro. Nesta sexta-feira, queimou-se o que restava do prédio. Pedro de Valdívia (1497-1553) é persona non grata na região: membro do exército de Francisco Pizarro, governador do Peru, Valdívia conquistou o Chile e foi o fundador de Santiago, em 1541, e de outras cidades na região; seu primeiro grande revés foi ao tentar conquistar o território mapuche, ao sul, onde foi morto em 1553. No atual momento, símbolos urbanos relacionados à sua memória têm sido posto abaixo: na cidade de Concepción, no fim de semana anterior, sua estátua foi arrancada do centro da cidade; em Cañete, na região do Arauco, um busto seu foi destruído.

Na manhã do sábado, nas imediações da zona de conflito da véspera, já não se via um único carabineiro. Em torno ao monumento a Baquedano, dezenas de jovens colocavam placas e cartazes pedindo o fim da SENAME, o Serviço Nacional de Menores, onde, acusam, crianças e adolescentes são submetidos a maus tratos, pressão psicológica, e há casos de estupro e suicídio. Enquanto as últimas das ruínas da Universidade Pedro de Valdívia ainda discretamente subiam aos céus, do outro lado da rua, o coletivo Memorarte inaugurava uma fugaz exposição diante do Centro Cultural Violeta Parra, que também sofrera ataques. A líder do coletivo, Erika Silva, lembrava as origens pobres de Violeta Parra, e disse que ela se estivesse viva também estaria bordando com elas. Violeta tinha o mesmo “vigor das bordadeiras, que nunca acreditaram que essa democracia trançada era a que daria bem-estar e bem viver ao nosso povo. Por isso é que estamos aqui, porque somos um fio contínuo, que não se corta. Porque cada agulhada tem sentido e porque vamos continuar bordando e vamos continuar ocupando a rua, até que a dignidade se transforme em hábito, companheiros!” Sua fala, depois de aplaudida, é acompanhada por outro grito coletivo: “Cozer e bordar, outra forma de lutar!”

Ao fim dessas vinte e quatro horas em Santiago, não se sabe que costura há de se impor no país: se as balas e o gás da polícia, a fúria indômita nas ruas, a queda orquestrada dos ídolos nefastos ou o firme tecer das bordadeiras. O que havia do tecido social está roto, o que há está em chamas e o ar é difícil de respirar. Só é possível arriscar que o Chile nunca mais será idêntico a si mesmo.

Wilson Alves-Bezerra é crítico, tradutor e escritor. Escreveu Vapor barato (Iluminuras, 2018), O pau do Brasil (Urutau, 2016), entre outros

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