Vicissitudes do belo
O belo é difícil”. Com essas palavras Platão se expressou na República, reportando-se a um provérbio que se vale da semelhança de ambas as palavras no idioma grego: kalós (belo) e kalepós (difícil). O conteúdo do dito que, nesse contexto, talvez não seja mais do que um momento retórico, pode se aplicar, por um lado, à própria concepção platônica de belo e, por outro, pode ser entendida como uma espécie de premonição, nos primórdios da Filosofia, das errâncias desse conceito por toda a história posterior desse âmbito.
No que tange ao pensamento de Platão, observa-se que a noção de belo aparece de modo filosoficamente relevante, ainda que em contextos bastante diferenciados, em diálogos como Íon, Górgias, Crátilo, Banquete, Fédon, República, Fedro e Sofista. Sem poder abordar aqui todas as implicações de cada um desses enfoques, eu gostaria de relembrar aqueles que tiveram uma influência mais marcante na história do belo posterior a Platão.
O Íon trata da conversação de Sócrates com o rapsodo que dá nome ao diálogo, o qual, imediatamente antes do encontro, recebera o primeiro prêmio de declamação nas festas de Esculápio. Ao inquirir Íon sobre um possível domínio racional que ele deveria ter sobre o seu métier artístico, Sócrates constata que o rapsodo atua de modo completamente intuitivo, o que o leva a generalizar na afirmação de que as coisas belas ditas pelo poeta não são produto de uma arte, mas de uma inspiração divina. É interessante observar que, apesar de ser um diálogo que trata de um tema diretamente relacionado à qualidade de obras de arte (no caso literárias), a beleza aparece nele de modo apenas adjetivo, referente às “coisas belas de que trata o poeta”.
No Górgias, em que pese o fato de não ser um diálogo voltado para questões que hoje denominaríamos “estéticas”, já há uma referência à beleza – ainda que num sentido muito genérico – enquanto substantivo abstrato. Trata-se de uma passagem em que Sócrates dialoga com Polo sobre uma possível identidade do belo com o bom, na qual aquele, admitindo que os belos corpos, as cores e os sons produzem deleite sensível, estabelece – ainda de modo sensualista, comparando-se com os padrões platônicos posteriores – que a beleza advém ou da utilidade ou do prazer que o objeto belo proporciona (ou ainda de uma combinação de ambos).
Numa espécie de transição para as posições de Platão posteriormente consagradas sobre o belo, encontra-se um trecho do Crátilo, diálogo dedicado à investigação do significado das palavras. Depois de Sócrates e seus interlocutores refletirem sobre a origem de diversos termos no idioma grego, surge a questão acerca da noção de belo. Considerando-a, em concordância com a epígrafe deste texto, como difícil de compreender, Sócrates sugere a origem da noção de belo no ato de atribuir belos nomes – o verbo kaloûn – às coisas que nos deleitam: “Assim, pois, denomina-se belo justa e exatamente o pensamento que realiza as obras a que atribuímos nosso assentimento satisfeito ao chamarmo-las de belas”. Se aqui não temos ainda a concepção do belo como idéia transcendente, há pelo menos o realce do trabalho intelectual envolvido na determinação das coisas enquanto belas, mesmo que num sentido muito genérico e inespecífico.
Posteriormente, no Banquete, diálogo que tem como tema o amor, Platão apresenta, através do discurso de Sócrates, a idéia de que a beleza sensível possui um alcance limitado quando comparada com a inteligível, na qual se realiza a própria idéia do belo. A exemplo de tantas outras passagens de Platão, nas quais a introdução de um conceito fundamental novo é feita pela mediação de um mito, Sócrates narra o seu encontro com a sacerdotisa Diotima, no qual se revela a natureza do amor como a procura do belo. O percurso se realiza, aqui, sob o modelo da “dialética ascendente” platônica, na medida em que é inegável que a busca se inicia no desejo dos belos corpos – nível mais elementar e mortalmente prisioneiro do mundo sensível – terminando, se corretamente conduzida, na contemplação da beleza em si mesma: na própria idéia do belo.
A partir de então cristaliza-se progressivamente na filosofia de Platão o conceito de um belo em si transcendente, que fundamenta toda a beleza que se manifesta nos objetos sensíveis, sem ser, como esta, corruptível ou passível de qualquer relativização. O que no Banquete aparece como oriundo de uma narrativa mitológica, portanto cercada de nebulosidade, no Fédon é manifestamente declarado pelo Sócrates que se prepara para morrer: “Assim, pois, se alguém me diz que uma coisa qualquer é bela, seja por sua cor brilhante, ou por sua forma, ou por qualquer outro motivo desse tipo (…), tenho em mim essa simples e talvez ingênua convicção de que não a torna bela outra coisa que a presença ou participação daquela beleza em si, tenha-a por onde for e de que modo for”.
Essas idéias, ensaiadas nos diálogos anteriormente mencionados, têm sua apoteose na República, diálogo em que Platão, ao investigar as condições em que uma cidade poderia ser (na sua concepção) perfeita, ao mesmo tempo em que reconhece o imenso poder de sedução das formas sensíveis merecedoras do qualificativo “belas”, procura enquadrá-las dentro de limites que as impeçam de desviar o caminho rumo à contemplação da beleza em si mesma, isto é, da idéia do belo. Tal é o significado da famosa passagem em que é declarado o imperativo de expulsar o poeta da cidade, não sem antes prestar homenagens ao seu poder divino, e de submeter todas as artes a uma implacável censura. De acordo com ela, só seriam admitidas as artes em que estivesse explicitamente aceita a subordinação da beleza corpórea à idéia do belo, tanto no âmbito de seus criadores quanto de seus apreciadores. No que tange àqueles, haveria que se exercer uma vigilância sobre os poetas no sentido de admitir apenas os que conhecem a verdadeira origem do belo, ou seja, a idéia do belo. No que concerne ao público, o Sócrates platônico propõe uma exigência semelhante, condenando veementemente os “amantes das audições e dos espetáculos” que “se comprazem em degustar boas vozes, cores e formas e todas aquelas coisas, nas quais entram esses elementos”, mas cuja “mente não é, ao contrário, capaz de ver e abraçar o belo em si mesmo”.
A posição tipicamente platônica sobre o belo, que teve uma enorme influência em toda a posteridade, ao mesmo tempo em que o entroniza como idéia transcendente, se não proíbe, pelo menos limita drasticamente suas manifestações sensíveis, especialmente realizadas na forma de obras de arte. Tal posição poderia ser sintetizada na frase lapidar, também contida na República: “Convém que a arte das musas termine no amor à beleza”, sendo que a flexão do verbo “terminar” nela presente, pode, a meu ver, ser interpretada tanto no sentido de “desembocar” quanto no de ter efetivamente o seu término.
A supramencionada grande influência dessa posição platônica já pode ser sentida, por exemplo, no pensamento do neoplatônico Plotino. Toda a sexta seção de sua primeira Enéada é dedicada ao belo e, não obstante algumas diferenças metafísicas no tocante ao modo como o belo inteligível se articula com a beleza das coisas sensíveis e uma ênfase especial na sua dimensão ética, a mesma concepção da superioridade da idéia do belo sobre suas manifestações perceptíveis, que encontramos em Platão, ocorre novamente aqui: “Quanto às belezas mais elevadas, que não podem ser percebidas pelos sentidos, mas que são vistas pela Alma e a respeito das quais ela se pronuncia sem o auxílio dos órgãos dos sentidos, para contemplá-las temos que nos elevar ainda mais, abandonando os sentidos embaixo. Assim como aqueles que nasceram cegos não podem falar a respeito das belezas sensíveis, assim também não é possível se falar a respeito da beleza das condutas, das ciências e de outras coisas semelhantes sem ter antes se interessado por essas questões” (Plotino, Tratados das Enéadas).
É interessante observar que com o advento do Cristianismo, de cujos primórdios Plotino foi testemunha (tendo também influenciado decisivamente a doutrina dos “Padres da Igreja”), essa noção do belo inteligível como infinitamente superior ao sensível foi reforçada tanto no tocante à beleza do reino de Deus quanto no que tange à proscrição dos prazeres sensíveis, inclusive aqueles tão somente orientados para percepções que hoje chamaríamos estéticas, isto é, das cores, formas, sons etc. Uma instância privilegiada dessa simbiose entre o essencialismo platônico do belo e o ascetismo cristão dos primeiros tempos pode ser encontrada em Santo Agostinho, que, nas suas Confissões, se refere inúmeras vezes às belezas corpóreas como desprezíveis quando comparadas com aquelas associadas à providência divina. Cito aqui um exemplo: “Não amo a formosura corporal, nem a glória temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos, nem as doces melodias das canções de todo o gênero, nem o suave cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão flexíveis aos abraços da carne. (…) E contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume e abraço do homem interior (…)” (Santo Agostinho, Confissões).
Mesmo num período da Cristandade medieval em que a influência de Platão e do neoplatonismo já não era tão forte, como o escolástico, não se pode dizer que uma sólida ponte tenha sido erigida sobre o abismo entre a beleza sensível e aquela atribuída ao reino de Deus, mas apenas que se iniciou um processo no sentido de um possível equilíbrio desses pólos. Tomás de Aquino, por exemplo, de um lado pensa o pulchrum (belo) como um grau adicional de adequação entre matéria e forma de uma coisa, associando a beleza também aos conceitos de proportio (proporção), integritas (integridade) e claritas (luminosidade). Uma vez que ele atribui tais qualidades a coisas sensíveis, não é errado dizer que tenha dado um passo importante na emancipação do belo com relação à “idéia” platônica. De outro lado, a metafísica cristã continua influindo de modo decisivo em seu pensamento, como se pode depreender do trecho a seguir: “Pois se diz que Deus é belo por causa de sua perfeita harmonia e de sua claridade. Do mesmo modo, a beleza do corpo consiste na justa proporção dos seus membros e na claridade da pele. A beleza espiritual consiste em que a vida do homem, quer dizer, suas ações, sejam bem proporcionadas segundo a claridade ou a luz espiritual da razão” (Tomás de Aquino, Suma teológica).
Além desse importante desenvolvimento da Escolástica, outra oportunidade concreta de conferir à beleza sensível um certificado definitivo de cidadania no âmbito da cultura ocorreu no Renascimento. Capitaneadas pela pintura, todas as artes assumem uma posição de força, que, apesar disso, não encontra em toda a filosofia um apoio real, já que parte dela, tornada a ser temporariamente neoplatônica, tem que realizar, diante da pujança sensorial exibida pela arte do período, uma série de compromissos entre teorias metafísicas, de acordo com as quais haveria uma luz inteligível da qual emanaria toda a beleza sensível, e pontos de vista que de algum modo legitimassem as melhores criações pictóricas, escultóricas e musicais renascentistas. É verdade que os próprios artistas tentaram suprir a demanda conceitual que os filósofos ainda não estavam preparados para atender, fato que é atestado pelas reflexões mais genéricas dos tratados renascentistas de pintura, como, por exemplo, o de Leonardo Da Vinci (Leonardo Da Vinci, Leonardo on art and the artist). No seu Tratatto della pittura, embora não faltem referências técnicas ao modo como a beleza pode ser produzida pelas criações pictóricas, inexiste uma noção filosófica do belo que pudesse fazer frente ao predomínio de quase quinze séculos de platonismo sobre esse assunto.
Desse modo, a cultura ocidental teve ainda que esperar mais de dois séculos para que surgisse a primeira forte aliança entre o âmbito das criações artísticas e um conceito filosófico forte de beleza, o que veio a ocorrer no século 18. Ao longo de todo esse século surgem obras que progressivamente incorporam a noção do belo enquanto um atributo típico dos objetos sensíveis (coisas da natureza ou as suas imitações pelas obras de arte), tais como as Reflexões críticas sobre a pintura e sobre a poesia (1709), de Jean Baptiste Dubos; As belas artes reduzidas a um mesmo princípio (1746), de Charles Batteux ; Estética – A lógica da arte e do poema (1750), de Alexander von Baumgarten (obra que originou o uso atual do termo “estética”); e Investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo (1757), de Edmund Burke.
A década de 1790 trouxe à luz um conceito filosófico de belo que acaba por recolher elementos de todas as contribuições do século 18, lançando-as, no entanto, num patamar superior ao liberá-las de suas parcialidades, seja no tocante à sua ênfase no momento empírico da percepção, seja em virtude de restrições no aspecto mais teórico da formulação. Trata-se da noção kantiana de belo, tal como expressa na Crítica da faculdade do juízo, especialmente na sua primeira parte, denominada exatamente “Analítica do belo”. Nela, Kant se propõe a caracterizar o juízo de gosto, como o ato judicativo especialmente voltado para a beleza de objetos sensíveis, de acordo com o modelo – anteriormente empregado na Crítica da razão pura – da tábua de juízos da lógica aristotélica, segundo a qual os juízos se classificam segundo sua quantidade, sua qualidade, sua relação e sua modalidade.
Desse modo, no que tange à qualidade, Kant estabelece que o juízo de gosto é estético, isto é, não-lógico, na medida em que não atribui um predicado a um sujeito. Em vez disso, ele se liga ao sentimento de prazer desinteressado (ou seja, independente de inclinações que comprometessem a “imparcialidade” do juízo) ocorrido no sujeito, em presença do objeto a ser considerado belo. No que diz respeito à quantidade, o juízo de gosto é universal, embora preserve a característica de subjetividade supramencionada, o que só é possível em função de sua qualidade “estética” (e não-lógica). No que concerne à relação, Kant introduz uma noção, à primeira vista paradoxal, que é a de “finalidade sem fim”, designando que o objeto belo sugere, pela harmonia de suas formas, uma finalidade que, no entanto, não é capaz de explicitar qualquer fim inequivocamente a ela associado. Essa proposição kantiana até hoje é tida como um poderoso fundamento filosófico para o fato de que a beleza não deveria estar associada a um uso imediato. No que diz respeito à “modalidade”, Kant afirma que o juízo de gosto é “necessário”, ancorando essa necessidade no que ele chama de sensus communis aestheticus, isto é, o imperativo de toda a humanidade poder se reunir em torno do ajuizamento sobre a beleza de um objeto sensível que seja digno desse atributo.
Com tudo isso (e outros aspectos que eu não poderia tratar aqui), Kant estabeleceu um paradigma do belo que se afasta radicalmente do platônico, na medida que é a forma dos próprios objetos sensíveis (e não uma idéia num mundo separado) que cria em nosso ânimo a disposição de, mediante o prazer desinteressado que sentimos em sua presença, considerá-los belos, sem, no entanto, recair num agrado estético meramente empírico (que, para Kant, denota apenas o “agradável”, e não o belo).
Entretanto, a posteridade de Kant, que já seria demasiado longa para caber nestas poucas linhas, teve que se preocupar com duas características da estética kantiana que absolutamente não eram um problema para ele, tendo em vista as exigências do seu sistema: a primeira é o fato de que a ênfase no prazer desinteressado do sujeito tira do objeto estético o peso principal, dificultando o desenvolvimento de uma estética voltada para as características dos construtos sensíveis belos. O segundo motivo de preocupação teórica posterior à estética de Kant foi o fato de que seus conceitos funcionam muito melhor quando os objetos a serem considerados belos são naturais e não feitos pelo homem (como, por exemplo, as obras de arte).
Essas duas preocupações são explicitamente colocadas por Hegel, nos seus Cursos de estética, obra em que o autor, mesmo reconhecendo a inestimável contribuição de Kant, critica tanto a ênfase no aspecto subjetivo da apreciação do belo quanto a presumida superioridade do belo natural sobre o belo artístico. Segundo Hegel, só há sentido em falar em beleza substantivamente quando se trata de algo que, além de ser sensível, foi objeto de intervenção humana – o próprio ato de criação –, fato que caracteriza a passagem do espírito pela coisa que pode ser considerada bela. Daí vem a conhecida definição de Hegel do belo como “aparência sensível da idéia” (G.W.F. Hegel, Cursos de estética), a qual fundamenta seu caráter de sensibilidade, de algo manifesto em obras de arte, sem admitir a precariedade do que é apenas empírico, sensível enquanto apenas corpóreo.
Da época de Hegel a nossos dias muitos acontecimentos, tanto filosóficos quanto artísticos, têm colocado a noção de belo em xeque. Do ponto de vista da filosofia, críticas robustas ao belo partiram, ainda no século 19, de Nietzsche, por exemplo, como parte de um programa de denúncia dos próprios fundamentos da cultura ocidental, nos quais, como se viu, as referências à beleza sempre desempenharam um importante papel. Para Nietzsche, o belo, quando de fato existente, não seria caracterizado por essa placidez que Kant e, depois dele, Schopenhauer lhe atribuíram, mas seria algo da ordem do “pulsional”, de um tipo de estímulo mais adequado à definição por Stendhal, enquanto “uma promessa de felicidade” (Stendhal, De l’amour ). Nesse sentido, pode-se dizer que a associação de Nietzsche do belo com um sentimento estético mais turbulento abre caminho para sua aproximação ao sublime, embora a tradição anterior distinguisse mais ou menos rigidamente o modus operandi de cada um desses dois sentimentos estéticos. Parece-me acertado dizer que, em muitas abordagens da estética contemporânea, tais sentimentos parecem ser realmente tomados como muito mais próximos do que anteriormente era lícito conceber.
Para concluir, parece óbvio que os desenvolvimentos na própria arte, desde as primeiras décadas do século 20 até hoje, obrigaram a Estética a continuamente rever suas posições sobre o belo, já que tais desenvolvimentos, além de incorporar mais explicitamente o sublime, ampliaram o escopo dos sentimentos estéticos considerados dignos das expressões artísticas, integrando o feio, o radicalmente prosaico e até mesmo o asqueroso nas criações contemporâneas. Mas a consideração desse tema deve ficar para uma outra oportunidade.
Rodrigo Duarte
é professor titular do Depto. de Filosofia da UFMG. É presidente da ABRE – Associação Brasileira de Estética.