O que fazer com “Via Ápia”? A literatura de guerra de Geovani Martins

O que fazer com “Via Ápia”? A literatura de guerra de Geovani Martins
(Foto: Chico Cerchiaro/Companhia das Letras)

“Somente os bárbaros podem se defender”
Nietzsche

A leitura de Via Ápia como literatura de guerra pode causar espanto ao leitor que se encontra nas primeiras páginas do segundo livro de Geovani Martins, indicado como o melhor romance de 2022 ao Prêmio Jabuti. Invadimos uma casa de festa infantil, passando pelo banheiro onde um monitor do “brinquedão” é flagrado pela gerente comendo hamburguer escondido e termina por se demitir com alívio de nunca mais ter que servir “àquela gente que não tem capacidade de cantar parabéns dos próprios filhos sem ajuda profissional”. A festa infantil, para onde desce a trabalho o jovem da Rocinha, é o contraponto envernizado no asfalto da guerra que eclode no morro. Incoerente, violenta e como toda guerra, ou festa infantil, é sempre pior do que se imaginava.

O romance acompanha a vida de cinco jovens do morro da Rocinha às vésperas do processo de instauração da Unidade de Polícia Pacificadora no ano de 2012. Organizado como um diário que vai de 27 de julho de 2011 a 23 de outubro de 2013 acompanhamos da perspectiva dos irmãos Washington e Wellington e dos amigos Murilo, Biel e Douglas o impacto da intervenção na vida cotidiana da favela. Geovani Martins coloca o leitor muito próximo de um pedestre onisciente da Via Ápia, que atravessa o fluxo contínuo dos acontecimentos desta importante localidade da Rocinha, sem poder escapar de nada que o cerca: da macropolítica à batalha no front, do micropoder ruidoso da vizinhança à opressão da vida no asfalto, do impacto molecular das relações afetivas ao sangue do irmão derramado no chão. A narrativa é veloz como a vida urgente da guerra com intervalos de descanso na marola do baseado que sobe como uma bolha de sabão carregando toda a esperança do futuro e estoura com o barulho do fuzil.

As narrativas de guerra, que tem Ilíada como um arquétipo, podem ser organizadas a partir de alguns elementos estruturais: a natureza da guerra, o modo do indivíduo de agir na zona de combate, o retorno de um homem da batalha e a narrativa do homem que retorna e conta, glorifica o que aconteceu. A partir do século 20, com o avanço tecnológico das armas, estas estruturas e a literatura de guerra se modificaram. Do corpo a corpo ao arco e flecha chegando ao bombardeio, a distância entre quem mata e quem é morto fica cada vez maior. Apaga-se a figura do herói, tornando o soldado cada vez mais desconhecido e a guerra, impessoal. O herói volta morto e a glorificação não pode se realizar.

Chegamos na Via Ápia e estamos em guerra civil molecular, o front é doméstico, não existem fundamentações ideológicas claras e tampouco uma ideia consistente de futuro. Tudo é um eterno presente no tempo da urgência. O soldado desconhecido, sabemos, é nosso personagem que, fardado, aponta o fuzil na cara do seu próprio vizinho, ou ainda, que faz cair o camarada do morro para a alegria dos playboys do asfalto que o perseguiam. Neste espetáculo, somos capturados como em um filme de ação e a torcida é para que fiquemos todos vivos, os personagens e os leitores.

O trabalho da linguagem, realizado de maneira primorosa por Geovani Martins, é construído a partir da oralidade, enraizado na língua viva da rua em sua forma radicalizada que lhe confere legitimidade e garante as condições para a assimilação das experiências traumáticas. No beco sem saída da guerra civil, quem ficou vivo precisa contar o que viveu. Não se trata mais de partir, como um herói arquetípico, em busca de “quem sou eu?”, mas talvez de tentar responder com urgência: “o que fazer?”.

Marília Velano é psicanalista, mestre em Psicologia pela Université Paris VII e doutora em Psicologia pela USP. É professora do Instituto Sedes Sapientiae e autora de Razão onírica, razão lúdica: perspectivas do brincar em Freud, Klein e Winnicott (Blucher, 2023).


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