Uma filosofia prática

Uma filosofia prática

O comunismo é a multidão que se tornou comum

Giuseppe Cocco

Gilles Deleuze escreveu um dia que “nenhum livro contra o que for jamais terá importância; somente contam os livros escritos para algo de novo e que sabem produzi-lo”. Em uma entrevista sobre “Capitalismo e Esquizofrenia”, o mesmo Deleuze afirmava: “O problema não é saber qual será a ciência humana por excelência. O problema é saber de qual maneira um certo número de máquinas dotadas de uma possibilidade revolucionária vão se juntando”. Creio que essas afirmações nos introduzem diretamente à obra de Antonio Negri: uma filosofia prática, diretamente fundada na vivência militante. É impossível apreender seu pensamento separadamente dos diferentes momentos de sua militância.

A análise neo-marxista da composição da classe operária fordista e de suas novas formas de luta corresponde ao período militante – no operaismo italiano – que antecipou e acompanhou a insurreição social de 1968 contra a sociedade disciplinar. A crítica da modernidade como crise nunca resolvida do poder constituinte e o resgate da “via maldita da metafísica moderna” – com os estudos sobre Baruch Spinoza, o Livro de Jó e o Poder Constituinte – correspondem à vivencia da derrota: o primeiro período de prisão (1979-1983) e o início do exílio francês. Seus livros são puros atos de resistência: o sofrimento da prisão apreende a transmutação da dor de Jó em resistência ontológica. Na anomalia selvagem da filosofia spinoziana, Negri apreende o conceito de potência que lhe permite afirmar, definitivamente, a primazia da resistência, de um poder constituinte que – mesmo que possa ser reduzido a poder constituído – nunca poderá ser eliminado: no meio das celebrações apologéticas da pós-modernidade como fim da história e de qualquer revolução. Negri afirma a impossibilidade de terminar (“termidorizar”) a revolução. Seu “estilo visionário” – escreveu Pierre Macherey – “é o da utopia, no sentido de um pensamento que não se satisfaz com o que existe e se projeta, em alta velocidade, em direção à representação de um mundo diferente, de um mundo outro do qual ele prefigura e antecipa a realização”.

No final dos anos 1990, na passagem do moderno ao pós-moderno simbolizada pela queda do muro de Berlim, a proposta teórica e política de Negri se afirma como uma potente máquina de renovação da crítica. Império, Multidão e Comum são os três tomos – escritos com Michael Hardt – desse trabalho inovador sobre as novas formas da soberania, a produção de subjetividade e o horizonte da democracia.

Em Império, a crise do sistema mundo construído em torno do Estado-nação e de sua divisão hierárquica entre o centro e a periferia, entre o que está dentro e o que está fora, é colocada em uma nova perspectiva: a da formação de uma soberania supranacional que funciona como um não-lugar que não tem mais um fora, uma rede de poder descentralizada e desterritorializada. O pensamento da crise é aqui esforço de apreensão da mutação e ao mesmo tempo investimento em suas conseqüências revolucionárias, pois a crise é uma determinação das lutas e a elas está aberta como terreno da potência, da democracia, do poder constituinte.

Em Multidão, o poder constituinte é apreendido em suas dimensões produtivas, justamente desde o ponto de vista das novas configurações das forças produtivas na passagem do fordismo ao pós-fordismo. Por um lado, a crise do paradigma disciplinar (baseado no chão de fábrica) se desdobra em poder de controle sobre uma produção cada vez mais difusa nos territórios das redes sociais. Por outro lado, por trás da fragmentação social que a reestruturação determina, o trabalho vivo encontra uma centralidade que torna obsoletas as tradicionais partições e oposições (entre trabalho vivo e trabalho morto, produtivo e improdutivo, concreto e abstrato) sobre as quais se organizava a lei do valor (a acumulação). Se na era industrial a exploração se exercia a partir da separação do tempo de vida em tempo de trabalho e tempo livre, hoje em dia é a vida como um todo que é subsumida – em sua heterogeneidade – dentro do capital: exclusão, precariedade, informalidade e fragmentação social se tornam a regra e o devir do trabalho. Essas são as dimensões do biopoder, poder sobre a vida. Ao mesmo tempo, nessa vida posta para trabalhar, o trabalho vivo encontra um potencial de autonomia imediatamente produtiva. Na tendência, capital variável e capital fixo se recompõem na carne de uma multidão constituída por singularidades que cooperam entre si, mantendo-se tais, ou seja, sem convergir nas figuras fusionais da classe, do povo ou da nação.

Em Comum, o trabalho constituinte aparece como produção do comum a partir do comum. Uma vez desdobrada a crise da soberania dentro das dimensões constituintes de um trabalho vivo que – quebrando e subvertendo a disciplina fabril – afirma sua autonomia, Negri (e Michael Hardt) podem reformular a questão da política em termos de atualidade do comunismo: “o comunismo, afirma Negri em uma longa entrevista realizada pouco antes de voltar do exílio francês para a cadeia na Itália, é a multidão que se torna comum”. A multidão precisa lutar contra as modulações de um poder de controle que captura as singularidades reduzindo-as a fragmentos que competem entre si. Ao mesmo tempo, as singularidades só podem reafirmar sua liberdade como algo interno, imanente ao processo de sua produção. Essa produção é comum: as singularidades que cooperam entre si, o “fazer-multidão”.

Mas então, o que é o comum? São as formas de vida da multidão, as dimensões políticas e ao mesmo tempo produtivas da vida: o que Michel Foucault chamava de biopolítica: a potencia da vida. É nesse sentido que a construção política da subjetividade corresponde a uma produção da subjetividade política, ao “fazer-multidão”. Uma outra pergunta se coloca: por meio do que esse comum se produz? Para responder, Negri mobiliza o paradoxo da pobreza. Com efeito, na figura do pobre temos uma descontinuidade do ser, um momento de não-ser (de crise ontológica) e ao mesmo tempo um insistir no ser, uma conservação da vida que se torna desejo potente e não pode mais ser reprimido. O vazio do não-ser (da miséria) se transforma em escolha de vida e libertação. A pobreza é, pois, o primeiro e fundamental momento da construção ontológica do comum. Negri recupera em Spinoza essa seqüência, ou seja, a continuidade da conservação da vida (conatus) em seu desenvolvimento (a cupiditas: a potência do sujeito). A pobreza significa abrir-se em direção a um possível aumento do ser. O comum é, pois, o produto de uma dinâmica que se forma do interior: é a figura móvel da ação de uma potência a partir da pobreza: o nome dessa potência é – diz Negri – amor.

Podemos agora perguntar, onde encontramos a potência (o amor) do pobre na materialidade de nosso mundo atual? No fordismo, o “pobre” era incluído na ordem fabril e suas necessidades padronizadas: a disciplina operava uma hierarquização entre o conatus (a persistência do ser) e a cupiditas (o seu desenvolvimento). A virtude do trabalho (o desenvolvimento do ser, a produção da riqueza) era subordinada à fortuna (dos ricos). A fortuna (o capital) se tornava a condição paradoxal da virtude (do trabalho) e nisso a exploração encontrava uma legitimidade técnica. Emblemáticos dessa legitimidade, os temas do desenvolvimentismo terceiro-mundista assumiam a industrialização capitalista como uma etapa inevitável e necessária na emancipação dos povos dominados pelo “imperialismo”. No pós-fordismo, a fortuna dos ricos continua, talvez de maneira ainda mais violenta, a parasitar a virtude do trabalho. Mas, hoje em dia, a expropriação da riqueza é um mecanismo de captura a posteriori, pois o trabalho vivo do “pobre” se torna produtivo diretamente nas redes sociais, sem entrar no chão de fábrica. Por um lado, isso nos aparece nas formas da exclusão e da fragmentação social. Mas, pelo outro, isso significa que o trabalho dos “pobres” contém uma inevitável continuidade entre necessidade e desejo (amor), conatus e cupiditas. A exploração não é mais “também” organização da produção. Liberação e emancipação podem e devem avançar juntas, inclusive e sobretudo nas periferias.

Na centralidade do trabalho vivo há uma nova e potentíssima dimensão de autonomia: a virtude pode se recompor com a fortuna, e a produção da riqueza se emancipar da reprodução dos ricos. É a que encontramos no trabalho colaborativo em rede: desde o movimento do copyleft até as redes dos pré-vestibulares comunitários. Organização da luta e da produção são os mesmos terrenos de constituição de um trabalho que se mobiliza segundo as dinâmicas do dom e do saque: da criação, da citação, da mixagem, da cópia. A produção de subjetividade coincide com a produção de subjetividade política: a organização da produção coincide com a radicalização da construção democrática, do fazer-multidão.

Esse é um otimismo da razão que Negri mobiliza para além do pessimismo da vontade.

Giuseppe Cocco
é professor da UFRJ, escreveu com Antonio Negri, GlobAL: biopoder e luta em uma América Latina globalizada, Record, 2005

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