Uma armadilha do querer saber: a incredulidade crédula

Uma armadilha do querer saber: a incredulidade crédula
Predestination, 2014, Minjung Kim (Divulgação)

 

O jornalista Leonardo Sakamoto alertou recentemente para um prognóstico aterrador: “Eleição vai parir um país que não se importa em separar ficção da realidade”. O artigo descreve as condições de um “infocalipse”, situação drástica a que seremos conduzidos pelo mau uso das tecnologias de informação, equipamentos que estruturam a atividade política de uma ponta a outra nos dias de hoje. Para além dos que deliberadamente executam ações de desinformação, o indivíduo médio está passível de erro nessa seara por uma série de condicionantes, dos quais Sakamoto elenca:

“(…) a falta de educação formal, que dificulta a leitura e a interpretação de textos; a falta de capacitação para a mídia, o que impede a análise de discursos e a uma reflexão sobre o ato de compartilhar informação não checada; a ultrapolitização, que faz com que seres humanos normais se vejam em uma guerra política, encarando toda informação contra o “inimigo” como verdadeira; e a perda de relevância de instituições, que faz com que as pessoas desconfiem das informações que vêm do Estado e da imprensa”

Outros já apontaram o quanto estamos despreparados, enquanto sociedade, para lidar com o que seria a “barbárie da informação”. Quero aqui seguir por um outro caminho, identificar quais sejam os momentos de verdade nisso que parece somente a difusão do obscurantismo. Essa expressão, comum na prática filosófica brasileira, serve para insistir que em todo discurso, por mais contrário que seja ao que nos parece racional, funciona também por meio de elementos consistentes. De minha parte, acredito que isolar esses componentes permite visualizar os pontos de apoio de práticas e pensamentos, definir com clareza a nossa distância em relação a eles e reconhecer o quanto conversam com o que aceitamos nós mesmos. Sobretudo, dá as chaves para enfrentá-los efetivamente.

Assim sendo, a minha questão é: que racionalidade contraditória podemos encontrar na irracionalidade que permeia os fluxos informacionais entre os quais vivemos? A solução passa, me parece, por abandonarmos por um momento diagnósticos, como os referidos acima, que se baseiam no déficit dos sujeitos. Pensemos por outro lado no que buscam e no que alcançam. Os indivíduos não são somente determinados a cair nesses erros por conta das suas condições de alfabetização informacional e dos seus vieses políticos; eles encontram nos atos pelos quais recusam fatos e fontes e pelos quais espalham enganos meios de valorizar-se — primeiro, como indivíduos; segundo, como seres sociais. Penso em falar desse segundo âmbito em outro texto. Enfoquemos o primeiro.

Agora estou certo

No que se refere à instância individual, o sujeito vê nos procedimentos citados a chance de maioridade, no sentido kantiano de independência intelectual e política. Perceba que peças retóricas do tipo “o seu professor de história mentiu para você” — que contribui com os revisionismos históricos de direita contemporâneos — extraem toda a sua força de uma promessa de desvelamento. Haveria uma verdade, mais completa, por trás, que libera aquele que a aprende de uma influência maléfica. O nó está em que a ferramenta do desvelo é produtiva de fato; correntes teóricas inteiras dedicam-se a tornar visível o que é feito invisível. No mesmo sentido, todos aqueles que se deixam levar pela ladainha da “doutrinação” onipresente anseiam por exercer sua capacidade mental sem peias.

Tudo se passa como na alegoria platônica: o protagonista é libertado de assistir à dança das sombras e é conduzido à luz. O movimento vivido não é exatamente esse? Deixo de ser enganado; atravessei um aprendizado e agora sei uma verdade. Aliás, muitas vezes nos debates de internet confrontam-se adversários que guardam ambos essa convicção.

A pesquisadora de tecnologia e mídias sociais Danah Boyd disse algo no mesmo sentido, em um artigo (transcrição de uma palestra) com título instigante: “You Think You Want Media Literacy… Do You?” (você acha que quer alfabetização midiática… você quer mesmo?). A provocação de Boyd é que a postura, digamos, crítica que é estimulada para os estudantes pode também ser problemática. Isto é, ao passo que “questionar tudo” é geralmente descrito como a atitude filosófica, que se orienta a avaliar com recuo o que a mídia informa e que se denunciam as “histórias únicas”, tudo isso opera igualmente a favor do anti-intelectualismo, da demonização da imprensa, da adesão a ideologias sem lastro teórico aceitável. E, num contexto de “guerra cultural”, ela ressalta, “todos creem ser parte da resistência”. Todos são os verdadeiros esclarecidos.

É por essa queda dogmática que destaquei esse “digamos” antes de enunciar o adjetivo “crítica”. Pois o que parte de uma vontade de não se deixar enganar conduz à construção de uma autoimagem que expressa “sou uma pessoa que não se deixa enganar” — o que, paradoxalmente, trava qualquer potencial crítico. Vindo menos de um ceticismo e mais de uma incredulidade, o sujeito se reduz a um crédulo de outros enganos. Para manter a parábola de Platão, é como se deixasse uma caverna e seu espetáculo de sombras para se acorrentar noutra e admirar jogos análogos de claro e escuro. De todo modo, o gesto em direção à verdade é justificável: é o momento de verdade desse processo.

Reconhecendo-o, como reparar os problemas inscritos em tudo o que discutimos aqui? Se voltarmos a Boyd, encontraremos a proposta de reforçar o caráter intersubjetivo das discussões, ressaltando que um dos seus valores maiores está no esforço por entender o outro (uma ideia, aliás, que encontramos no diálogo socrático Górgias) e, também, no ser capaz de perceber que posições contraditórias podem ter igual consistência interna. A autora, partindo do jornalista e escritor Cory Doctorow, também nos leva a perceber que se trata não de uma briga pelos fatos, mas uma disputa epistemológica — de qual sejam o sentido e os meios do conhecer. Consequentemente, não deveríamos deixar de lado as questões menores e discutir diretamente os critérios de análise? Não apontar o dedo, simplesmente, às fake news; fazer ver como o indivíduo chegou a aceitá-las.

E que isso não o desabona. A crítica que se deixar ser uma menorização dos demais será alimento da postura “crítica” que se fecha em si. Também não caiamos na demagógica afirmação de que todas as opiniões são equivalentes. Mais do que isso, o que parece ser necessário é aprofundar aquele querer saber, o querer ser autônomo — o momento de verdade que identificamos — e reabilitar a partir dele o ethos filosófico e/ou científico, ou seja, a compreensão de que o amadurecimento intelectual é sem termo, e que não há pensamento que permaneça autônomo sem ser capaz de tensionar a si mesmo.


Duanne Ribeiro é jornalista, escritor e pesquisador em ciência da informação e filosofia

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