Um tiro na vidraça, outro no coração

Um tiro na vidraça, outro no coração

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Na última quinta-feira (20), a Folha de S.Paulo colocou na capa da sua edição impressa uma imagem feita pela talentosa fotojornalista Gabriela Biló. A imagem era acompanhada de uma legenda em que constava: “Foto feita com múltipla exposição mostra Lula ajeitando a gravata e vidro avariado do ataque”.

A imagem fotográfica é feita de uma foto de uma vidraça trincada sobreposta à foto de um Lula que sorri contente enquanto se arruma. Acontece que o ponto central que gera o trincado na vidraça, na sobreposição, localiza-se exatamente sobre o peito esquerdo de Lula. Foi o que bastou para gerar uma enorme polêmica que arregimentou petistas e simpatizantes contra a Folha e a fotojornalista por alegada injúria semiótica contra o presidente Lula.

Gabriela Biló é uma fotojornalista já reconhecida e que tem se destacado na cobertura fotográfica da política em Brasília, cobrindo ultimamente o novo governo e os eventos que o cercam. Há lindas fotos dela da festa da posse de Lula, da posse de vários ministros, assim como da Intentona Golpista do dia 8 de janeiro. É inegável que ela tem um olhar simpático com relação a Lula, Janja e aos seus ministros mais progressistas, pois embora as suas fotos contem histórias, tenham posição, sugiram interpretações dos eventos fotografados, não se vê uma tese iconoclasta, crítica ou hostil ao governo. Ao contrário.

A técnica de múltipla exposição, para quem não a conhece, é simplesmente a superposição de dois ou mais registros fotográficos numa mesma foto. Não é uma técnica de edição ou montagem, mas de composição por superposição. No caso, há a superposição do registro de uma vitrine, com o vidro ainda trincado pelo ataque de golpistas no início do mês, com um registro do presidente se preparando para discursar. Tudo em um frame ou  uma foto só. Há quem ache que uma imagem feita com essa técnica não é o que se espera do fotojornalismo. Tese discutível, ainda mais que a técnica não é uma inovação que se inaugurou com esta foto. Além disso, há uma imagem de Marina Silva sobreposta a copas de árvores, da mesma fotógrafa, feita com a mesma técnica e publicada no mesmo jornal uns dias antes, sobre a qual não há registro de polêmicas.

A partir desta fotografia em específico, houve uma série de batalhas no debate público nesta quinta-feira. A primeira batalha foi hermenêutica e política, ou de politização partidária da interpretação de uma imagem. Como interpretar o que queria dizer a tal foto? A pergunta teórica chega tarde demais, pois as pessoas já decidiram o que a foto quis dizer e já se convenceram de qual a tese política embutida nela.

Para uns, a foto claramente queria mostrar um Lula que levou um balaço no coração e se estatelou, mortinho da Silva, na capa da Folha. Como Lula está vivo e saltitante, a foto só podia ser uma pilhéria de mau gosto, quiçá um inaceitável mau agouro da Folha, ou até mesmo um modo nada sutil de incitar que alguém passe do simbólico ao rifle, uma incitação à violência contra o presidente.

Para outros, a foto representava um Lula resiliente, contra quem se voltam os brutos e os maus; que, porém, trinca mas não quebra, arruma a gravata, sorri e vai à luta. A interpretação confessa da fotógrafa é esta, mas, na política como na filosofia, quem disse que o autor controla a compreensão de sua obra? Mais do que isso, segundo alguns, a autora sequer tem direito a oferecer uma interpretação alternativa.

Os do pelotão de ataque inferiram coisas terríveis sobre as más intenções da Folha, da mídia e de Gabriela Biló contra Lula. A pensadora Marcia Tiburi, como sempre, não teve dúvida. “O que a Folha pretende com essa montagem? Incitar o ódio contra Lula?”, indagou. Do registro do incômodo pessoal ao juízo sobre intenções políticas perversas se chega em um segundo: “Trata-se de uma montagem criminosa, pois sugere um tiro no coração”.

Estão aqui, compostos na mesma sentença, o juízo hermenêutico sobre o único sentido possível da fotografia – sugerir um tiro no coração de Lula – e o juízo penal: cometeu-se um crime aqui. E rematou com a solicitação de que providências fossem tomadas contra o editor ou a fotógrafa: “O responsável por essa montagem deve ser intimado a se explicar!”. Crime identificado, requisita-se o braço pesado da Lei.

Uma professora de jornalismo foi na mesma direção: “A publicação dessa foto se torna grave e até criminosa”. O jornalista Lira Neto fez eco ao discurso dominante: “Isso não é jornalismo. Isso é uma perversa adulteração da realidade. No caso, perigosíssima, pela gravidade da atual situação do país”. Um perfil anônimo famoso no Twitter decretou ser no mínimo irresponsabilidade “uma montagem sugerindo um tiro no peito de um presidente que enfrenta o golpismo, fomentado e relativizado pelo próprio jornal que a publicou”.

Houve no pelotão de ataque posições mais mitigadas, mas ainda assim claramente condenatórias. Lilia Schwarcz, com o zelo de sempre na proteção das causas progressistas, conclui sem hesitação que “há um tiro na altura do coração do presidente ressoando o suicídio de GV”. Imagens assim, conclui, “omitem as mentiras que carregam”. Aqui se vai de uma decisão hermenêutica a um julgamento epistemológico com igual celeridade. Tiburi fala de sugestão, Schwarcz fala de ressonância; a primeira menciona assassinato, a segunda se refere a suicídio; a primeira fala de crime, a segunda, de mentira, logo, de mau jornalismo.

Os do pelotão de defesa, em número menor, viram arte, viram um olhar otimista e viram uma poesia – “O Brasil, se já não estava trincado antes, certamente trincou no 8 de janeiro. A foto só evidencia isso. É o chefe de Governo e Estado com uma trinca sobre. O governo sai ferido, mas resiste e sorri”, escreveu o jornalista Cristiano Botafogo, do podcast Medo e Delírio em Brasília. Na mesma linha, a jornalista Cecilia Flesch: “Eu vejo um presidente rindo APESAR do estilhaço. Um homem blindado. Que não se desestabiliza diante da ameaça. QUE FOTO”. Guido Cavalcante também foi por aí: “Lula sorri sem arrogância da inocuidade do vidro estilhaçado (ameaças que sofre)”.

Há uma terceira batalha misturada a essas duas, de natureza epistêmica. É sobre se fotojornalismo é ou não arte ou se a múltipla exposição é compatível com um jornalismo-verdade, que deve mostrar os fatos como um espelho mostra a paisagem, e não os modificar por meio de intervenções, se fotografia no jornalismo é factual ou opinativa, etc. Ora, a mera escolha do enquadramento, dos ângulos, dos elementos da composição e da lente a ser usada é um grau de intervenção consideravelmente importante e pode produzir conotações e denotações muito difíceis de serem controladas.

Temos vários exemplos de fotos jornalísticas que incluem uma tese, fazem sugestões de interpretações, ressoam associações, têm denotações que orientam a leitura dos eventos. Uma superposição de fatos visuais pode acontecer na composição mesma do quadro, sem recurso algum à técnica de múltipla exposição, como vê na famosa fotografia em que a presidente Dilma Rousseff parece atravessada por uma espada. E todos ainda lembram de uma foto em que Bolsonaro parece apontar uma arma para a cabeça de Moro durante uma cerimônia, não? E dos pés trançados no trôpego balé do cambaleante presidente Jânio Quadro, já nos esquecemos? Na Era dos Memes, das imagens condensada, só tolos imaginariam que fotos jornalísticas não contêm uma história ou não ofereçam interpretações dos fatos, mesmo quando não usam recursos de múltipla exposição.

A disputa sobre se o jornalismo pode ou não apelar ao recurso da múltipla exposição fotográfica (fato que, é bom lembrar, não foi ocultado do leitor e constava explicitamente da legenda da foto) me parece, contudo, não mais que uma distração. Ou uma desculpa para desqualificar aquela foto primeiro como mau jornalismo, para em seguida desqualificá-la como uma posição política do mal. A questão realmente importante para o pelotão de ataque tem a ver com o fotografado, Lula, e com a suposição de que a Folha e a fotógrafa queriam “matá-lo” ou incitar que o matassem, nem que fosse simbolicamente. Sequer se deu o batalhão ao trabalho de ver o que Gabriela Biló anda fotografando e refletir serenamente, como diz Juliana Kunc Dantas, “sem xingar, sem gritar, sem querer proibir”.

É mais que isso. Sequer se admitiu a fotografia como uma obra aberta e que uma outra interpretação está igualmente autorizada pelos elementos da composição. Houve quem chegasse a declarar, peremptoriamente, mesmo confrontado com o fato empírico de que outras interpretações brotavam ao seu redor, que “essa foto não é polissêmica”. Não, no batalhão de ataque só uma interpretação é possível e a tese sustentada pela fotografia na capa da Folha é, no mínimo, um insulto, provavelmente uma incitação ao crime, certamente um exemplo de mau jornalismo e de fotojornalismo do mal.

Prova disso é que até a silente e dormente Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal, que demorou duas semanas para ativar o seu perfil em redes sociais enquanto o governo estremecia diante de uma tentativa de golpe de Estado, que nada teve a dizer enquanto as teorias conspiratórias bolsonaristas falavam de campos de concentração e de ditadura de toga, de repente aparece para emitir uma Nota Pública sobre a tal fotografia.

Diz a nota: “É lamentável que o Jornal Folha de S.Paulo tenha produzido e veiculado uma imagem não jornalística sugerindo violência contra o presidente da República no contexto dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro. Trata-se de uma montagem, por não retratar nenhum momento que tenha acontecido”.

Estão aí condensados todos os elementos sustentados pelos petistas, lulistas e simpatizante nas batalhas campais da quinta-feira: a teoria epistêmica de que múltipla exposição é mau jornalismo, a teoria hermenêutica e política de que a foto “sugeriu” violência contra o presidente (a fórmula mitigada tiburiana para “incitou” violência contra Lula), faltou apenas a tese do crime, porque aí também já seria demais. Em vez de chamar a polícia, como recomendou a filósofa, a Secom chamou o ministro para dar uma descompostura pública na Folha pelo pecado, se não crime, de fotografia sugerindo violência contra o mandatário da Nação.

Em suma, a Secom não enfrenta a inundação de fake news e teorias do complô do mundo bolsonarista neste momento ainda tão perigoso para a vida republicana, mas considera da maior importância fazer uma reprimenda pública a um jornal por conta de uma imagem polissêmica. Sim, de fato, nunca na história deste país uma fotografia ameaçou tanto a paz social e a estabilidade das instituições republicanas.

Os bolsonaristas gargalham, ao fundo.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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