Com pauta antimanicomial, bloco de carnaval quer desconstruir estigma da loucura
No bloco de carnaval 'Tá pirando', pacientes de saúde mental participam de todo o processo (Foto: Luís Costa)
“Estou no Hospício ou, melhor, em várias dependências dele, desde o dia 25 do mês passado. Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra aqui pelas mãos da polícia.” Lima Barreto abriu com essas linhas o seu diário no dia 4 de janeiro de 1920, dias depois de ser levado ao Hospício Nacional de Alienados, após crises por consumo excessivo de álcool. Morto em 1922, o escritor, feito estandarte, agora volta ao mesmo lugar, às margens da praia carioca de Botafogo, em meio à folia insana do carnaval.
Lima Barreto é o enredo do Tá pirando, tá pirado, pirou, bloco de carnaval que reúne pacientes (ou usuários, como alguns preferem ser chamados) e profissionais da rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro. O “barracão” funciona no Instituto Philippe Pinel, hospital de referência no atendimento a pacientes com quadro psicótico agudo. Foi ali ao lado, no prédio vizinho onde hoje está instalado o Palácio Universitário da UFRJ, que Lima passou seus dias de asilado de manicômio.
Criado há 15 anos na esteira de um duplo movimento – a volta dos carnavais de rua e a reforma psiquiátrica –, o Tá pirando tenta desconstruir estereótipos sobre a loucura. Um dos fundadores do bloco, o psicanalista Alexandre Wanderley cita o conceito de “duplo da doença mental”, do psiquiatra italiano Franco Basaglia (1924-1980), para quem a exclusão não é efeito só dos muros do hospício, mas também da resistência à diferença. “Muitas pessoas ficam admiradas quando percebem a qualidade de uma composição musical ou a participação ativa dos usuários na organização do desfile”, afirma.
No Tá pirando, os pacientes participam de todo o processo, em meio a oficinas de música e artes plásticas. Decidido o enredo, começa a pesquisa para a composição dos sambas – escolhido em concurso – e a elaboração das fantasias e alegorias. O músico Eneas Elpídio, usuário da rede de saúde mental, coordena oficinas de composição. Ele diz que o Tá pirando fez com que se percebesse distante da imagem estigmatizada do louco.
“Não me vejo mais só pelo aspecto de um estereótipo que eles te impõem e você traduz como realidade própria, sem noção do poderio que você tem como ser humano, como agente de transformação”, diz. Poeta e compositor, ele compara a inspiração a um deus que conecta consciente e inconsciente. “Quando você evoca uma inspiração, abre o inconsciente e ele começa a criar. Como Nietzsche fala, o grande liberto é o artista, porque ele só tem compromisso com seu próprio inconsciente”.
O samba vencedor deste ano veio do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) Maria do Socorro, da favela da Rocinha, onde mora a falante e animada Jaqueline Silva, de 44 anos que, no entanto, fala com tristeza do tempo de Lima Barreto. “Hoje o tratamento é com mais humanidade”, diz. “O usuário não pode ficar sem terapia. A ocupação do usuário é sempre estar fazendo alguma coisa para não ficar doente.” Ao lado dela, o colega Richard Moura, 34 anos, com sorriso e fala contidos, conta que, quando subiu ao palco para defender o samba vencedor, o acanhamento foi embora. “Sou um rapaz tímido mesmo, mas se tiver que cantar, eu canto. Quem carrega o estandarte do Tá pirando é a porta-bandeira Maria Aparecida Nascimento, a Cida, que ensaiava, sorridente, rodopios com o pavilhão da agremiação. “Quando descobri o corpo e a mente numa aula de dança, descobri ser alguém”, diz. “Parece que cada passo que você dá é um problema que você joga pra trás”, conta. “Hoje eu posso sorrir, porque eu só sabia chorar.”
Este ano o desfile ocorreu semanas depois da divulgação de uma nota técnica do Ministério da Saúde que, segundo especialistas, põe em risco a reforma psiquiátrica, cujas bases no Brasil foram inspiradas nos estudos de Nise da Silveira (1905-1999). Em 2001, a edição da Lei 10.216 reviu o modelo de atendimento a transtornos mentais, historicamente baseado na internação. A reforma encaminhou a redução progressiva de hospitais e leitos psiquiátricos, antiga reivindicação do movimento antimanicomial. A internação hoje é recurso só acionado depois de esgotados todos os meios de controle da crise. Desde a reforma, a prioridade é o atendimento nos Centros de Atenção Psicossocial, os CAPS, com tratamento multiterapêutico e definido para cada caso.
Entre outros pontos, o documento divulgado no dia 4 de fevereiro (após críticas, retirado da página) contesta o fechamento de leitos psiquiátricos e contrapõe a estratégia terapêutica de redução de danos para dependentes químicos, em nome da abstinência. Uma das medidas mais controversas foi a possibilidade de financiamento da compra de aparelhos de eletrochoque. Para Wanderley, a reordenação da política nacional de saúde mental representa o que chama de “indústria da loucura”. “É alto o risco do retorno de internações prolongadas desnecessariamente”, diz.
Quando Lima Barreto entrou no Hospício Nacional de Alienados – cuja origem era o Hospício Pedro II, o primeiro manicômio da América Latina, de 1852 –, o ideário de tratamento da loucura era repleto de preconceitos médicos. “Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão”, relatou o escritor em seu diário. “Deram-me uma caneta de mate e, logo em seguida, ainda dia claro, atiraram-me sobre um colchão de capim com uma manta pobre, muito conhecida de toda a nossa pobreza e miséria.”
O médico sanitarista Paulo Amarante, pesquisador da Fiocruz, diz que o conceito de alienação na medicina do começo do século considerava o louco um risco iminente. “Ele [o alienado] então se aproximava do que era perigoso, ardiloso, traiçoeiro”, afirma. Amarante explica que vigorava então a ideia de que loucura se curava com disciplina. “O Philippe Pinel [médico francês responsável pelo conceito de alienação] usava até a expressão ‘dobrar o alienado à razão’”, afirma. Um manicômio típico era um lugar de vigilância e orientado por mecanismos de punição e recompensa. O tratamento implicava uma relação de autoridade moral, mas também física, com cela forte, isolamento e restrição alimentar. Segundo Amarante, castigos podiam deixar internos até três dias sem comer. “Era uma verdadeira tortura”, diz.
A loucura foi tema constante da vida e da literatura de Lima Barreto, recolhido por duas vezes ao manicômio – na segunda, escreveria o seu Diário do hospício e começaria o inacabado Cemitério dos vivos. Segundo Lilia Moritz Schwarcz, autora de Lima Barreto: Triste visionário (Companhia das Letras, 2017), naquele momento ainda não havia uma distinção clara entre transtornos mentais e outras desordens – Lima foi internado por causa do alcoolismo. “A loucura era uma espécie de grande caminhão, onde cabia tudo”, diz a biógrafa. “Ele tinha muita consciência desse tratamento incipiente, desse não-tratamento”.
Artista como Lima, a bailarina e coreógrafa Munique Mattos, 34 anos, conheceu o Tá pirando durante tratamento no CAPS Franco Basaglia, a poucos metros de onde o escritor ficou confinado no começo do século passado. “O bloco me reacendeu, me religou com a vida, com o cotidiano da minha cidade”, diz Munique.
“O que tem me encorajado para seguir na trajetória como artista é a loucura, essa noção de um universo sem domínio”, conta a bailarina, formada em Dança pela UFRJ. “Para seguir na arte, você precisa ter essa coragem do louco de fazer exatamente o que deseja fazer. Eu não sei se o Tá pirando me cura ou me enlouquece mais ainda pra vida e pra seguir com os meus sonhos.”
LUÍS COSTA é jornalista e doutorando em História pela UFRJ.
(2) Comentários
ano passado contribuí para o bloco, participei do desfile, mas depois não tive mais notícia, e a vida me levou, só agora estou percebendo que o Tá pirado já tá na rua! Viva!
Tendo em vista um novo ciclo humano, hoje os pacientes estao readquirindo sua dignidade mesmo em meio a uma doença involuntária, e a partir daí reescrevendo positivamente sua história.