Slavoj Žižek e a renovação do marxismo
Nada é o que parece ser
Christian Ingo Lenz Dunker
A queda do muro de Berlim não representou a derrocada do comunismo nem o fim da história, muito menos a abolição da esquerda. Para a maior parte dos movimentos sociais e pensadores ligados à tradição crítica ou marxista, esse fato simbólico foi o pretexto que faltava para a formação e radicalização de um novo discurso. A revista britânica New Left Review foi um ponto de encontro para essa esquerda alternativa, que havia passado por sucessivas decepções: o humanismo marxista, a reação estruturalista de Louis Althusser, o ativismo maoísta, as inúmeras formas de troskismo, sem falar no socialismo real. A Nova Esquerda tem em comum a desconfiança do fetichismo do Partido, a crítica do economicismo marxista clássico e a recusa da concepção ingênua da ideologia considerada como uma espécie de erro cognitivo da consciência. No lugar soberano e onipotente do Partido, a Nova Esquerda se preocupa em mostrar a precariedade da noção de política em Karl Marx bem como sua ligação instável com políticas claras e definidas que deveriam ser seguidas em obediência silenciosa. No lugar do reducionismo econômico, a Nova Esquerda pretende redescrever a noção de classe, levando em conta o gênero, a cultura e o consumo, e não apenas o paradigma da produção. Finalmente, no lugar da ideologia, entram em cena complexas estratégias de desconstrução, crítica e resistência discursiva ao lado do reconhecimento de que faltaria ao marxismo clássico uma boa teoria sobre a subjetividade.
É nesse contexto que surge a figura de Slavoj Žižek. Ele foi rapidamente percebido como alguém capaz de dar voz a essa renovação do marxismo com sua surpreendente releitura de Georg Hegel aliada a uma potente junção com conceitos do psicanalista Jacques Lacan. Žižek não é um pensador sistemático que nos convida para a arqueologia e a reconstrução de teses, ao gosto da prática universitária corrente; mas também não é um intelectual edificante, ensaístico ou opinativo, interessado apenas em questões pontuais e intervenções localizadas. Seu estilo é o de um intelectual engajado, um pensador que, sobretudo, toma posições. Em geral, tais posições nos fazem rever o próprio mapa, ou as coordenadas simbólicas de que dispomos para localizar a questão tratada. Daí a importância da noção de ato que atravessa seus escritos.
Žižek nasceu em 1949, em Liubliana, capital da Eslovênia, a mais próspera das províncias da antiga República da Iugoslávia, e a primeira a se tornar independente em 1991. Em 1971, ele completou sua graduação em filosofia e ciências sociais e, em 1975, apresentou sua tese sobre A relevância prática e teórica do estruturalismo francês. Filho de comunistas linha-dura, ele vê fracassar sua aspiração ao rápido ingresso no sistema burocrático-universitário. É reprovado no concurso para professor de filosofia e amarga a dura e contemporânea experiência de desemprego. Dois anos depois encontra uma curiosa ocupação no Comitê Central da Liga Comunista da Eslovênia. Sua função é redigir discursos para a burocracia stalinista. Nessa condição, Žižek acompanha a formação do discurso nacionalista sérvio e, particularmente, a construção ideológica da importância da região de Kosovo. Esse minúsculo enclave territorial precisava ser elevado à condição de um lugar glorioso na história do país. Uma espécie de mito das origens necessário para manter a unidade iugoslava. Tudo se passa como se Kosovo, lugar onde os sérvios detiveram o avanço das tropas otomanas em 1349, representasse uma espécie de núcleo traumático, reativado 600 anos depois, adquirindo nessa reativação um valor simbólico estratégico para justificar a ideologia nacionalista nos Bálcãs. Žižek se encontra, portanto, no interior desse projeto de engenharia discursiva às voltas com a produção de uma mitologia histórica. Além disso, fica cada vez mais claro que o marxismo edulcorado dos herdeiros de Josip Tito (o socialismo de empreendimento ou o socialismo de mercado) se legitimava teoricamente como socialismo apenas na tese da burocracia como classe universal. Porém, essa tese é mais hegeliana que marxista. Isso nos dá uma primeira indicação do caminho teórico de Žižek, que vai de Marx a Hegel e não o contrário.
É nessa posição crítica – entre a impostura do socialismo iugoslavo e o crescente interesse do capital ocidental na emancipação da Eslovênia – que Žižek procura uma alternativa, engajando-se na resistência cultural e política em torno da NSK (Nova Cultura Eslovena). Tal grupo é constituido por uma ampla frente de resistência à burocracia, que inclui o teatro, as artes plásticas, a música e a Escola Lacaniana da Eslovênia. Uma figura emblemática dessa frente é a banda de punk rock chamada Laibach. O manifesto cultural dessa frente adota uma curiosa estratégia: recusa-se a ser reconhecida como uma dissidência e ocupar assim o lugar de oposição. Tal lugar está prescrito e calculado pelo próprio sistema burocrático, de tal forma que toda dissidência se torna inócua e, no fundo, uma paródia. O dissidente, o “alternativo” ou aquele que se acredita “fora do sistema” joga apenas o papel estabelecido pelo sistema que, para se legitimar como democrático, precisa tolerar e estimular a diferença. Os exemplos vão dos expurgos periódicos à pseudo-oposição necessária para manter a burocracia como discurso hegemônico e produzir um efeito ilusório de liberdade de pensamento. Contra isso, a estratégia de resistência adotada pelo NSK está baseada no que Žižek chamou de superidentificação (overidentification). Um exemplo: o Partido Socialista Iugoslavo propõe um concurso nacional para selecionar o cartaz em homenagem ao Dia da Juventude (data de nascimento do general Tito). Os dissidentes decidem que não vão participar, afinal, eles repudiam o personalismo contido na idéia de Dia da Juventude. O NSK, ao contrário, envia para o concurso um garboso ensaio fotográfico com musculosos corpos atléticos segurando tochas no mais autêntico estilo social-realista. De fato, vencem o concurso, mas no dia da entrega do prêmio, eles decidem “explicar” sua obra. Tratava-se de um “remake” de um cartaz feito em homenagem a Hitler por ocasião dos jogos Olímpicos de Munique. Ou seja, o prêmio não podia ser entregue, pois se tratava de plágio, e mais, o Dia Nacional da Juventude, junto com seus críticos, fãs e dissidentes mostrou abertamente sua face totalitária ao lado de seu anacronismo estético. Resultado: jamais houve outro concurso de cartazes para o Dia Nacional da Juventude Iugoslava.
Na tática da superidentificação, trata-se de recusar a distância cínica entre a cultura “oficial” e a cultura “alternativa”, distância que produz uma separação artificial e enganosa, alienando o sujeito em uma falsa posição “externa” ao sistema. Pela superidentificação, ao contrário, trata-se de tomar as formas simbólicas dominantes pelo seu valor de face e a partir de sua repetição reflexiva produzir desestabilizações internas ao sistema. Renúncia da consciência pessoal, de gostos, juízos e convicções, aceitação voluntária e deliberada do papel da ideologia. Um exagero da falsa aparência cujo objetivo é mostrar seu caráter insensato. A superidentificação tenta reverter, através de intervenções pontuais, a oposição tradicional entre Estado e Sociedade Civil, tematizada por Antonio Gramsci e amplamente explorada pela Liga Comunista Eslovena. Tal estratégia será empregada, com inúmeras variações, nos textos, entrevistas e declarações públicas de Žižek. São intervenções que, tomando ao pé da letra o enunciado ideológico, mostram, em ato, a falsidade de sua enunciação. Em parte, essa nova estratégia de oposição está ligada à experiência intelectual de Žižek, que cresceu em um ambiente no qual a teoria crítica da Escola de Frankfurt ou a fenomenologia de Martin Heidegger formavam um amálgama ideológico utilizado amplamente pelo Partido Socialista Iugoslavo. Ou seja, nenhuma teoria é crítica ou ideológica em si, mas apenas sua articulação.
A teorização dessa estratégia se alimentará da experiência em Paris, durante a década de 1980, quando Žižek estuda psicanálise. Sua tese de doutorado, acerca das relações entre Hegel e Lacan, bem como a análise pessoal empreendida nesse período, começam a sedimentar uma combinação entre crítica da cultura, prática política e estudos acadêmicos, baseada em autores clássicos, que raramente se encontra.
É nesse contexto que, em 1990, Žižek se lança como candidato à presidência da Eslovênia em uma curiosa aliança com o partido Liberal Democrata. O partido Liberal Esloveno reunia, nesse momento, uma diversidade de minorias organizadas que iam do feminismo aos ecologistas, da contracultura artística aos radicais independentes. Vê-se, por isso, como o contato com a diversidade político-cultural emergente não se reduz em Žižek apenas a uma experiência teórica.
A dificuldade e as contradições para articular um projeto político nesse contexto levam Žižek a participar de uma posição política que resulta em apoiar o “choque de capitalismo” em 1995. Finalmente, diante da alternativa de bombardear a Sérvia – desacreditando completamente o papel da ONU – ou não bombardear a Sérvia – e condescender com o morticínio da purificação étnica – Žižek afirmará: “como alguém de esquerda, minha resposta ao dilema ‘bombardear ou não’ é: as bombas não são suficientes, e elas vêm muito tarde”. Em outras palavras, o bombardeio não é um meio legítimo e eficaz, como quer a chantagem ocidental, e para Milosevic as bombas deveriam ter vindo antes. Dois enunciados verdadeiros mostrando a falsidade da enunciação, ou seja, do próprio lugar impossível de onde o dilema é colocado, inclusive desde sua lógica temporal (muito cedo e muito tarde). Estratégia semelhante será assumida diante do ataque de 11 de setembro a Nova York, bem como no caso da invasão do Iraque.
O engajamento de Žižek deve ser encarado de modo diferente da participação ritual em movimentos sociais. Ele está sempre desconstruindo sua própria posição, produzindo aberturas e se relocalizando em novos debates. Como ele afirma em uma entrevista: “Não se esqueça de que comigo as coisas sempre são o contrário do que parecem.” O chiste, o humor, a capacidade de reunir erudito e popular, trafegando pela vasta gama de problemas e autores das ciências humanas, do passado e do presente, em linguagem clara e provocativa, colocaram Žižek definitivamente em evidência no final da década de 1990. Žižek conseguiu assim absorver aspectos da retórica do pós-modernismo sem endossar suas teses.
Boa parte dessa recepção pode ser atribuída ao que se supunha estar presente no programa de Žižek. Um autor que parecia representar uma verdadeira e fiel reflexão acerca da desintegração dos Estados socialistas do Leste europeu. Um novo alento para os teóricos da democracia radical e do pós-marxismo. Mas também um autor que parecia colocar finalmente o pensamento lacaniano para fora de sua clausura institucional, pondo-o em contato com as grandes questões do pós-estruturalismo francês, com a filosofia da linguagem anglo-saxônica e com a tradição dialético-fenomenológica germânica. Um autor que trazia, a partir de sua forma original de tratar a cultura, uma franca interlocução com o universo popular do cinema, com a teoria feminista e com o ativismo multiculturalista, sem contar a vasta presença de seus textos na internet. Três públicos que tornaram Žižek convincente no ambiente acadêmico norte-americano. Além disso, suas reflexões sobre a religião e sobre a fragmentação política do capitalismo pós-moderno o tornaram um autor palatável para um público amplo.
Após essa entrada fulgurante, verificou-se uma espécie de decepção. O Marx, que se pressentia reinventado em suas primeiras publicações na New Left Review, trazia consigo a perigosa sombra de Hegel e a ausência de uma teoria sobre os movimentos sociais. Hegel, rejuvenescido pelo contato com as questões da cultura contemporânea, acabava encoberto por sua sombra lacaniana e sua problemática herança recebida de Alexandre Kojève. Finalmente, o Lacan, arejado e funcional, que se intuía de sua colaboração com Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, ressentia-se de reflexões mais verticalmente clínicas. Como o próprio Žižek já avisara: nada é o que parece ser. Pois não seria o caso de reaplicar esse dito à própria decepção? Não seria Žižek mais crítico agora que ele parecia dizer o oposto do que gostaríamos de ouvir?
Obras de Žižek publicadas no Brasil:
– O sublime objeto da ideologia. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1989.
– O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1996.
– “Como Marx inventou o sintoma”, in Um mapa da ideologia. Contraponto,
Rio de Janeiro, 1999.
– Bem vindo ao deserto do real. Boitempo, São Paulo, 2004.
– Às portas da revolução – escritos de Lênin de 1917. Boitempo, São Paulo, 2005.
Sobre Žižek:
Dunker, C.I.L. & Aidar Prado, J.L. – Žižek crítico – política e psicanálise na era do multiculturalismo. Hacker, São Paulo, 2005.
Christian Ingo Lenz Dunker
é psicanalista, professor e livre-docente pelo Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP
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