Arcas de Babel: Simone Brantes traduz Hilde Domin
Simone Brantes e Hilde Domin (Fotos: Caio Meira e Divulgação)
Nunca estivemos tão isolados e nunca vivenciamos de maneira tão intensa o fenômeno da globalização. Sim, estamos no mesmo barco, e ele é do tamanho do planeta. Apesar das fronteiras fechadas e das restrições à circulação de aviões, cientistas do mundo inteiro comunicam dados, formam-se redes internacionais de pesquisa. Isso implica passagens entre as línguas, a capacidade que temos de nos abrir ao outro, e traduzir.
A poesia, que nos leva ao mais singular em cada língua, desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras singularidades. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior da língua, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro…
Daí veio a ideia de convidar poetas a compartilharem seus trabalhos de tradução em curso, e fico grata à Revista Cult por acolher a série em seu site. Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
Iniciando a série, Simone Brantes nos presenteia com traduções de poemas de Hilde Domin, importante poeta alemã, ainda inédita em português, que ela também apresenta. Mestre em Filosofia e Doutora em Letras pela UFRJ, Simone Brantes é autora de três livros de poesia publicados pela editora 7Letras: Pastilhas brancas (1999), O caminho de Suam (2002) e Quase todas as noites (2016), que recebeu em 2017 o Prêmio Jabuti.
Brantes publicou poemas e traduções de poesia em jornais e revistas como O Globo, Inimigo Rumor, Poesia sempre, Polichinello, Revista Piauí, Action Poétique, Lyrikvännen e Nuovi Argomenti. Participou de algumas antologias como A poesia andando: treze poetas no Brasil (Lisboa/Cotovia) e Roteiro da poesia brasileira. Anos 90 (São Paulo/Global), Simultâneos pulsando – uma antologia da poesia fescenina brasileira (São Paulo: Corsário-Satã) e O Nervo do poema: antologia para Orides Fontela (Belo Horizonte: Relicário).
Recentemente, publicou um volume de tradução e comentário de outra grande poeta de expressão alemã, Rosa Ausländer (Coleção Ciranda da Poesia, Eduerj/Editora UFPR, 2019). Leia abaixo a apresentação de Hilde Domin por Simone Brantes.
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Hilde Domin é uma das mais importantes poetas de língua alemã do pós-guerra. Nascida Hilde Löwenstein, na cidade de Colônia em 1909, emigrou, antes da declaração da guerra, para a Itália, acompanhada por seu futuro marido e grande amor de sua vida, Erwin Walter Palm. Ela se dizia uma espécie de Cassandra, pois não conseguira convencer a todos os familiares e amigos judeus do perigo que representava a contínua ascensão de Hitler. Da Itália, após o pacto assinado por Hitler e Mussolini, partiu para a Inglaterra, que deixaria em breve de ser um lugar seguro, não apenas por causa da guerra, mas também pela desconfiança diante de refugiados alemães, como seu pai, que se tornou, por um curto período, prisioneiro. Da Inglaterra o casal parte para a República Dominicana, onde vive sob a terrível ditadura de Rafael Trujillo.
Hilde Löwenstein trabalha ao lado de seu marido, auxiliando-o como fotógrafa, e também como ele se dedica à tradução de poesia. Traduz do italiano, do inglês, e do espanhol. São muitos anos de vida nesta “ilha do Caribe”, onde como ela diz, num de seus poemas, as mangueiras e as macieiras crescem lado a lado em seu coração. Mas é apenas depois de anos e anos de vida “nos confins do mundo”, muito perto do retorno do casal à Alemanha que ela escreve, sob o impacto da notícia da morte da mãe (o pai morrera cerca de dois anos após a viagem para a República Dominicana), seu primeiro poema. Ela está já na casa dos quarenta anos quando tem início o que chama de sua segunda vida: “Eu sou espantosamente jovem. Vim ao mundo somente em 1951, chorando como todos vêm ao mundo. Não foi na Alemanha, ainda que o alemão seja minha língua materna. Falava-se espanhol e o jardim defronte à casa era cheio de palmeiras. Para ser exata, eram onze delas. Todas palmeiras-macho e sem frutos. Meus pais estavam mortos quando vim ao mundo. Minha mãe tinha morrido poucas semanas antes.” É esta mulher espantosamente jovem que se chamará então, em homenagem à sua ilha, Hilde Domin. Aqui apresento cinco poemas de sua obra que venho traduzindo há alguns anos.
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LINGÜÍSTICA
Tu deves conversar com a fruteira.
Inventa uma nova língua,
a língua da cerejeira em flor,
palavras da macieira em flor,
palavras brancas e rosas,
que o vento
carrega
em silêncio.
Confia-te à fruteira
quando sobre ti recai a injustiça.
Aprende a silenciar
na língua branca
e rosa
ORIENTAÇÃO
Meu coração, este girassol
no encalço
da claridade
Para qual dos
fulgores que há tanto já se foram
ergues a tua cabeça
nos dias de escuridão?
INVERNO
Os pássaros, frutos negros
em galhos desfolhados
As árvores brincam comigo de esconder
caminho como se entre pessoas
que ocultam seu pensar
e pergunto aos ramos escuros
quais seus nomes
Creio que podem vicejar
– dentro é verde –
que tu me amas
e guardas segredo
MAIS BELOS
Mais belos são os poemas da alegria.
Como é mais bela a flor do que a haste
que a faz todavia despontar
são mais belos os poemas da alegria.
Como o pássaro é mais belo que o ovo
como é belo quando o dia raia
é mais bela a alegria
E são mais belos os poemas
que nunca escreverei
NO FUTURO IRÃO LER SOBRE NÓS
Nunca desejei despertar no futuro
a compaixão do aluno de escola
Aparecer em seu caderno
desse modo
Nós, condenados
a saber
e nunca a agir.
Nosso pó
não volta a ser terra
PROMESSA A UMA POMBA
Pomba,
procurei por uma mesa
e então encontrei
a ti,
pomba,
deitada sobre as costas
os pés rosas premidos contra o corpo claro
despencada
da luz,
botim,
em um bricabraque
Pomba,
se minha casa se incendiar
se de novo eu for escorraçada
se eu perder tudo
levo-te comigo,
pomba de madeira carcomida
só pelo suave impulso
de tua única
intacta
asa
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Poemas originais
LINGUISTIK
Du musst mit dem Obstbaum reden.
Erfinde eine neue Sprache,
die Kirschblütensprache,
Apefelblütenworte,
rosa und weisse Worte,
die der Wind lautlos
davonträgt.
Vertraue dich dem Obstbaum an
wenn dir ein Unrecht geschiet.
Lerne zu schweigen
in der rosa
und weissen Sprache.
ORIENTIERUNG
Für Minne
Mein Herz, diese Sonnenblume
auf der Suche
nach dem Licht.
Welchem
der lang vergangenen Schimmer
hebst du den Kopf zu
an den dunklen Tagen?
WINTER
Die Vögel, schwartze Früchte
in den kahlen Ästen.
Die Bäume spielen Verstecken mit mir,
ich gehe wie unter Leuten
die ihre Gedanken verbergen
und bitte die dunklen Zweige
um ihre Namen.
Ich glaube, dass sie bluhen werden
– innen ist grün –
Dass du mich liebst
Und es verschweigst
SCHÖNER SIND DIE GEDICHTE DES GLÜCKS
Wie die Blüte schöner ist als der Stengel
der sie doch treibt
sind schöner die Gedichte des Glücks.
Wie der Vogel schöner ist als das Ei
wie es schön ist wenn Licht wird
ist schöner das Glück.
Und sind schöner die Gedichte
die ich nicht schreiben werde.
VERSPRECHEN AN EINE TAUBE
Taube,
ich suchte einen Tisch
da fand ich
dich,
Taube,
auf dem Rücken liegend
die rosa Füsse an den hellen Leib gepresst
abgestüzt
aus dem Licht,
Botin,
in einen Trödelladen.
Taube,
wenn mein Haus verbrennt
wenn ich wieder verstossen werde
wenn ich alles verliere
dich nehme ich mit,
Taube aus wurmstichigen Holz,
wegen der sanften Schwungs
deines einzigen
ungebrochenen
Flügels.