A caça às bruxas é uma história do presente, diz Silvia Federici em lançamento de livro em SP
A historiadora italiana SIlvia Federici (Foto Bob Sousa)
Quando se fala das origens do capitalismo, geralmente as bases teóricas usadas são Marx e Foucault – homens que estudaram as formas pelas quais o sistema se impôs sobre a sociedade e sobre os corpos, respectivamente. Uma mulher, no entanto, notou que há algo faltando nessas análises: um olhar sobre o feminino.
Trata-se da historiadora italiana Silvia Federici que passou trinta anos em busca desse feminino ausente. A conclusão de seus estudos aparece em Calibã e a bruxa (2004), livro que investiga o que houve com as mulheres durante a lenta e gradual instalação do capitalismo – e que coloca a caça às bruxas como o grande evento responsável por aniquilar a participação, a força e a resistência femininas, que até então eram comuns nas comunidades praticamente do mundo inteiro.
Treze anos depois, Calibã e a bruxa ganha uma edição em português, graças aos esforços das mulheres do Coletivo Sycorax, de São Paulo. Em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo e com a revisão de diversas mulheres nas redes sociais, elas passaram meses no processo de tradução até chegar no livro de 460 páginas repleto de ilustrações e gravuras do período medieval.
Silvia Federici participou do evento de lançamento, que aconteceu ontem (20), no centro de São Paulo. Ela falou sobre sua obra, explicando como a caça às bruxas lançou as estruturas para a construção da exploração capitalista – e como esse tipo de violência ainda acontece nos dias de hoje.
Em Calibã e a Bruxa, Federici pinta um quadro do feudalismo muito diferente daquele explicado à exaustão nas salas de aula e nos livros didáticos. “Não foi um período monótono, com suas damas e cavaleiros. Pelo contrário: havia muita luta, porque as pessoas percebiam que estavam sendo afastadas da terra e de suas vidas comunitárias naquele tempo que viria ser reconhecido como um embrião do capitalismo”, disse, durante o lançamento.
Até aquele momento, existiam mulheres com acesso à terra: eram lavradoras, pedreiras, parteiras e curandeiras. Mulheres que possuíam conhecimentos sobre ervas e sobre a natureza, e que, principalmente, tinham autonomia sobre seus corpos, decidindo elas mesmas sobre a gravidez ou o aborto. “Ali, os processos reprodutivos estavam em pé de igualdade com a produção”, afirmou.
A caça às bruxas, então, teria vindo como uma forma de sequestrar das mulheres toda a autonomia de que desfrutavam. As “bruxas”, postas como “servas do diabo”, eram todas mulheres sábias, independentes, irreverentes e muitas vezes pobres e solteiras. Enquanto morriam nas fogueiras, queimava junto com elas a resistência ao incipiente capitalismo.
“Ocorreu assim, muito lentamente, uma separação da produção e da reprodução, e uma hierarquização da divisão sexual do trabalho”, diz Federici, explicando que, enquanto as mulheres eram condenadas como bruxas ou relegadas ao lar, os homens passaram a trabalhar fora de casa e a receber um pagamento por isso. O que sobrou para as mulheres, então, foi o trabalho reprodutivo – ter filhos, ou, em outras palavras, reproduzir a mão de obra.
“O grande problema é que a reprodução dentro do sistema capitalista não é vista como um trabalho, mas como um dom natural, biológico”. Por isso, as mulheres foram, pouco a pouco, afastadas do trabalho e tornando-se dependentes dos homens, já que eram eles ganhavam dinheiro. Por ter sido implantada de forma tão gradual, a opressão feminina e seu afastamento do trabalho passaram a ser vistos como normais, quando, na verdade, “eram bases criadas para o sistema capitalista, e que funcionam até hoje”.
Para a historiadora, a caça às bruxas é um mecanismo que se repete, ainda que com outras roupagens, sempre que o capitalismo passa por alguma crise e precisa se reafirmar. No livro, ela cita como exemplos a perseguição e catequização dos povos nativos durante os processos coloniais na América e na África, os processos de escravidão, a Guerra Fria e, atualmente, a crescente violência contra mulheres, negros e grupos LGBT, no que ela chama de um processo de “colonização global”.
“Estamos acostumados a pensar na caça às bruxas como algo que já passou, mas sempre que o capitalismo bambeia, voltamos a experimentá-la. É uma história do presente”, coloca.
Otimista, porém, Federici diz que sempre houve resistência às imposições capitalistas – durante a primeira caça às bruxas, por exemplo, muitas mulheres capturadas pelos tribunais preferiam morrer a delatar outras “bruxas”. Hoje, ela vê que essa resistência persiste: “Quando vejo mulheres unidas, trabalhando juntas para traduzir um livro sobre resistência feminina, sei que a força dessas bruxas ainda está viva.”
(5) Comentários
É muito bom resgatar a história com novo olhar.
A força da mulher não está apenas na reprodução, na continuação da vida .Está no poder da criação. Gaia.
Pelo resumo publicado aqui imagino que esse livro vem elucidar a resistencia da mulher
Caríssima, Sílvia Federici, que orgulho temos nós mulheres por trabalhos como o seu. Correrei as livrarias a procura do seu recente lançamento Caliba e a Brucha. Me considero,literalmente, meio a meio fada e bruxa, titubeando pela sobrevivência neste mundo capitalista e masculino. Junto-me à União das mulheres que buscam o conhecimento e o entendimento do mundo e das questões sociais. Sei livro é um presente para nós, Que , mesmo sem tê -lo lido, ainda, agradeço. Abraços fraternos de bruchas, para você.
Foucault era homossexual, portanto não faz parte da lógica heterossexual cisnormativa. Inclusive, acho que por ser homossexual, Foucault conseguiu teorizar com esse olhar Outro não só sobre questões de sexualidade e gênero, mas também sobre o sistema carcerário e psiquiátrico. Não acho que a colocação feita no primeiro parágrafo seja justa.
Vai sair uma revista com entrevista de Sílvia Federici