Silvia Federici: O capitalismo tenta destruir as nossas memórias

Silvia Federici: O capitalismo tenta destruir as nossas memórias
A historiadora feminista Silvia Federici (Foto: Bob Sousa/ Revista CULT)

 

O livro mais conhecido da historiadora feminista Silvia Federici, publicado em 2004, acaba de ser traduzido para a língua portuguesa pelo coletivo Sycorax sob o título Caliban e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Na obra, Silvia conta a transição do feudalismo para o capitalismo, mostrando a violência empregada para derrotar os movimentos que organizavam a vida a partir da comunidade e do compartilhamento das riquezas e não pelo feudo ou pelo Estado. O cercamento das terras comunais, o colonialismo, a escravidão e a queima às bruxas – que aprisionou os corpos e a sabedoria das mulheres – foram, no que relata a pesquisadora, essenciais à estruturação do capitalismo.

Em sua primeira visita ao Brasil, a convite do Programa de Ações Culturais Autônomas (P.A.C.A.), com apoio do Instituto Goethe, Silvia Federici fez palestras em São Paulo e no Rio de Janeiro. A entrevista a seguir aconteceu no apartamento onde esteve hospedada, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo, em um inglês pausado, que há quase 50 anos é o idioma cotidiano da pesquisadora italiana.

Nascida em Parma, Federici emigrou para os Estados Unidos em 1967 para cursar o doutorado. Foi quando mergulhou no movimento feminista como militante e pesquisadora. Entre o final dos anos 1980 e 1990, foi professora na Nigéria, e então voltou a Nova York, para a Universidade de Hofstra. Com olhos arregalados e expressivos, a generosa professora de 74 anos falou sobre a noção do comum, a ancestralidade, o trabalho doméstico e as lutas das mulheres. As vozes dos escravos, na figura do personagem shakespeariano Caliban, e das mulheres, condenadas como bruxas, estão vivas nas lutas do nosso tempo e na produção da autora.

CULT – No Brasil, a palavra resistência, muito presente nos seus textos, ganha ainda mais força. Como as mulheres vêm resistindo?

Silvia Federici – Na minha limitada pesquisa histórica, em especial sobre a Europa, entre a Idade Média e o presente, a mulher está na linha de frente das resistências contra o capitalismo, o extrativismo e o neoliberalismo. Em Caliban e a bruxa, investigo essa resistência nos movimentos sociais nos quais as mulheres tinham um papel prioritário na luta contra a igreja e os proprietários de terra, depois continuaram lutando contra o capitalismo. Não é um incidente que milhares delas tenham sido mortas acusadas de bruxaria. Nos séculos 17 e 18, por exemplo, quando a vida comercial tem início na Europa, o grão passa a ser o principal produto para alimentar as populações. Há uma série de rebeliões, mulheres indo para as plantações e para os portos, atacando as cargas, porque os grãos estavam sendo exportados e o preço local do produto subia enquanto pessoas passavam fome. A história é semelhante quando as mulheres vão para as fábricas durante a Revolução Industrial. Em quase todos os campos das lutas, na América Latina, na África, em Bangladesh, na Índia, as mulheres estão na linha de frente contra a privatização da terra e a intitulação individual que têm destruído o comum.

Como Vandana Shiva [física, ecofeminista e ativista ambiental indiana] aponta, historicamente, mais do que os homens, as mulheres dependem dos recursos da natureza, pois elas não têm acesso facilitado aos recursos monetá- rios. Há muitas lutas também, especialmente na Bolívia, contra o desastre que têm sido os microcréditos distribuídos pelo Banco Mundial, apresentados como a solução para o fim da pobreza, mas que resultam em mais e mais dívidas.

As mulheres também estão lutando para proteger florestas, mananciais de água e tudo o que é bem comum. E travam batalhas contra o controle de seus corpos para liberar o aborto, ir contra a esterilização, ter condição de cuidar de seus filhos sem que essa decisão tenha o terrível preço de limitar suas próprias vidas. A perseguição e o aumento da violência contra a mulher atualmente, mundo afora, é uma resposta à luta, à resistência diária de cada mulher contra a opressão.

Qual a importância de ter vivido na Nigéria para o seu entendimento do que é o bem comum?

Muito importante! Primeiro, por viver em um país africano que tem um passado de colonização. Uma coisa é ler sobre o colonialismo pelos livros, outra é viver ali e ver. Na Nigéria, descobri que, em muitas partes da África, o regime comunal de terras ainda está em uso. Naturalmente, esses regimes comunais já haviam passado por muitas transformações. Por causa do colonialismo, eles mudaram, se adaptaram. Mas, em grande parte do país, muitas pessoas vivem em comunidade na zona rural, e a base material dessas vilas é o bem comum: a terra partilhada para o cultivo. Eu me dei conta de que isso possibilita uma forma diferente de vida.

Algumas mulheres africanas, colegas da universidade, me perguntavam: “Você só depende do seu salário? Você não tem nenhuma terra em sua vila?” E eu respondia que vivia do trabalho remunerado. “Mas você não fica ansiosa, com medo? E quando ficar velha?” E eu me dei conta do significado, para elas, da comunidade e da terra. Elas nasceram pertencendo a alguma terra, e esse era um tipo de segurança, de paz mental. “Se alguma coisa der errado na cidade, eu volto para a minha vila.” Infelizmente, eu conheci os bens comuns africanos no momento em que eles sofreram o ataque mais massivo, porque, além da crise da dívida externa, tínhamos o Banco Mundial tentando convencer o governo nigeriano a privatizar as terras. As pessoas rejeitaram ver seus bens comuns serem destruídos.

Atualmente existe uma grande parcela de pessoas passando fome no norte da Nigéria.

Sim, em Maiduguri [capital e maior cidade do estado de Borno, na Nigéria] há crianças esqueléticas morrendo, como se via na Etiópia. Isso é consequência de muitos camponeses não terem mais acesso à terra e não cultivarem mais suas plantações. A maioria não tem o que comer. É uma situação muito grave, criada pela presença do Boko Haram. Quem são eles? Não se sabe ao certo. Mas há uma compreensão geral de que não vieram de baixo, não expressam algo do povo. A principal função do Boko Haram é desterritorializar as pessoas, expulsando milhares de suas terras. E se elas não se mudam ou resistem, são mortas. A serviço de quem estão trabalhando?

Propaga-se a imagem de que, na África, tudo é destruição porque as pessoas não vivem no capitalismo.

Quando o desenvolvimento significa você sair da sua terra e viver dentro das regras de trabalho disciplinadas pelo capitalismo, é dessa forma [na vida comunal, chamada subdesenvolvida] que se expressa a resistência. De fato, ir à África foi uma experiência de empoderamento, uma revelação, porque descobri que muitas pessoas vivem no mundo sem se submeter às leis do capitalismo, como se elas fossem naturais. Estou me referindo àquela famosa frase de Marx, de O capital: “Na evolução da produção capitalista, desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição, costume, reconhece as exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes”. Isso não é verdade, e na África é menos verdade ainda, porque existe uma forte resistência, que vem dessa conexão com a terra, que não é só o meio de produção, mas a conexão com sua ancestralidade, com a natureza, é o espaço para o trabalho coletivo e geradora de inúmeras relações de solidariedade. A terra é tudo.

Essa ideia de desenvolvimento foi muito difundida no governo Dilma, infelizmente.

Eu entendo, mas não me sinto confortável em comentar essa realidade do Brasil, ainda mais neste momento, eu vindo dos Estados Unidos. O Partido dos Trabalhadores (PT) não fez o que prometeu. Ele poderia ter devolvido a terra para as pessoas e combatido com mais força a herança escravocrata. Em vez de proteger, promoveram a destruição e a comercialização do bem comum. A exploração da Amazônia, por exemplo, tem sido um enorme desastre. E o PT foi tão popular… Estou impressionada por não ter, neste momento, milhões de pessoas nas ruas. Talvez hoje a resistência ao golpe fosse muito maior se tivessem captado, de fato, as necessidades das pessoas

Você falou da terra como possibilidade de conexão com a ancestralidade. Essa é uma palavra cara às religiões afro-brasileiras.

A ancestralidade é a memória coletiva, é a habilidade de preservar a si mesmo neste mundo que é maior do que você. E o capitalismo tenta destruir nossas memórias. Ele nos isola da natureza, das outras pessoas. Esse individualismo, em que ficamos fechados em nossas casas, acabou com o trabalho coletivo. Tudo o que importa é o futuro, o progresso, o desenvolvimento. Isso enfraquece e esvazia a nossa existência. Porque você só pode resistir se se sentir parte de um corpo maior que você, se conhecer as histórias de quem lutou antes. Uma feminista historiadora mexicana descobriu que, em comunidades onde as memórias coletivas estão presentes, as pessoas são muito mais aptas à resistência. Conectadas ao passado, temos um sentido de pertencimento ao lugar, ao terreno onde se planta comida, às pessoas que reconhecemos.

No Brasil, as mulheres negras têm um lema: “nossos passos vêm de longe”.

Eu gostei disso. Espere um minuto, vou pegar um papel para escrever: our steps come from the far.

E qual a relação do bem comum com a vida cotidiana?

Essa é a importância de se trazer uma perspectiva feminista para a discussão sobre o bem comum. É colocar sobre a mesa que temos de enfrentar o trabalho reprodutivo: o trabalho doméstico, o cuidado com as crianças, com os doentes, com os idosos e tudo aquilo que tem a ver com nossa vida cotidiana. Na sociedade capitalista, não à toa, essas atividades não são remuneradas e, para exercê-las, as mulheres passam a ficar dependentes dos homens ou têm de assumir dois ou três trabalhos para sobreviver. Além disso, essas tarefas todas vêm sendo organizadas de maneira isolada, nós as fazemos cada uma em sua casa, separadamente, e isso também nos enfraquece. Parte de nossa luta deve ser imaginar alternativas para que a gente possa fazer o trabalho de reprodução de forma coletiva. E isso já está acontecendo. Em muitos lugares, inclusive na América Latina, há formas de reprodução baseadas no trabalho coletivo, na solidariedade. E onde o trabalho coletivo se coloca, ele é forma de sobrevivência e também de resistência, criando novos tecidos sociais que permitem não estar isolado no confronto contra as forças do Estado.

Essa é uma questão ainda mais complexa para as mulheres negras brasileiras; além do trabalho de reprodução não remunerado, há o trabalho mal remunerado como empregada doméstica.

Quando falamos do trabalho doméstico, temos em mente a condição de mulher assalariada na Europa e nos Estados Unidos. Há uma diferença importante entre o regime que o capitalismo impôs à classe trabalhadora na Europa e o colocado nos lugares onde existiu escravidão. Na Europa, foi constituída essa classe de esposa- -trabalhadora em tempo integral. Mesmo que muitas mulheres também trabalhassem fora de casa, era entendido que o trabalho primordial era cuidar dos trabalhadores. Isso foi parte de um projeto capitalista de investir na classe trabalhadora dando a ela uma casa e um salário para que fosse mais produtiva. Na África e na América Latina, essa realidade sempre foi bem diferente. Porque o Estado nunca esteve preocupado em investir nos trabalhadores, mas sim em consumi-los. Então, a tarefa das mulheres nunca foi reproduzir sua comunidade, mas reproduzir a vida dos ricos.

Você não ignora, em seus textos, a questão racial.

De jeito nenhum. É uma questão fundamental. Todos os movimentos feministas americanos foram criados depois dos movimentos contra a escravidão e em defesa dos direitos civis. A primeira iniciativa do movimento feminista, em 1840, foi influenciada pelo movimento abolicionista. Em 1970, o feminismo se fortalece a partir dos blackpowers. Os movimentos socialistas e marxistas sempre olharam para os movimentos negro e de mulheres como marginalizados. E há muitas semelhanças entre o sexismo e o racismo: trabalho não remunerado, a noção de cidadania relativizada, já que não eram humanos completos. Racismo e sexismo são a expressão de uma forma muito específica de exploração.

Muitos autores trabalham com a ideia do bem comum em relação ao conhecimento, à comunicação e às tecnologias.

Eu sou muito crítica a essa visão, por diversas razões. Primeiro, eles nunca falam dos bens comuns em relação à terra, à água, e essas são as bases da nossa reprodução. Falar sobre uma sociedade do bem comum só em relação ao digital é absurdo. Segundo, o mundo digital está completamente privatizado. Essa ideia de trabalho colaborativo, criando redes de solidariedade, é porque temos Facebook ou Twitter? Sim, nós podemos usá-los. Mas os proletários, as classes trabalhadoras serão sempre usadas. Pensamos que agora estamos em um novo mundo e que temos novas formas de trabalho com essas possibilidades comunitárias quando a maior parte do mundo das tecnologias é fruto de trabalho escravo. É uma distorção imaginar que finalmente entramos em uma nova era em que o digital eliminaria a exploração e criaria novas formas de solidariedade comunal. Qual a condição de vida das pessoas que fazem o trabalho tecnológico?

A produção de smartphones e computadores…

Você tem de destruir uma quantidade enorme de bem comum. Cada computador é um desastre ecológico! Você tem que usar muita água, mover e destruir uma enorme quantidade de terra em busca dos minerais. Esse solo era o bem comum de alguém. Muitas guerras em território africano têm alguma conexão com a presença de minerais necessários para produzir computadores ou celulares. Em lugares como o Congo, falam em “computadores de sangue”, alusão aos diamantes de sangue e à toda a produção e o comércio de diamantes, tão cheios de violência, que mata e tira pessoas de seus lugares. O mesmo acontece com os computadores. Você tem expulsões, desapropriações e um processo de exploração inimaginável, em que milhares de africanos, sem suas terras, escavam para extrair minérios como a cassiterita, o tungstênio, porque nada mais sobrou para eles. Esses commons digitais, de que estão falando, são na verdade resultado da destruição dos commons das terras, das florestas, das águas. Isso é inaceitável. É como se você mantivesse seus olhos fixos em apenas uma parte da população do planeta e não visse todos esses que vêm sendo escravizados por esse tipo de produção.

Em Caliban e a bruxa, você pergunta se as pessoas que consumiam o açúcar na Europa pensavam sobre a escravidão no Brasil.

Eu pergunto agora se quem usa os computadores, nós, se pensamos nas pessoas que têm suas terras destruídas na África, nas mulheres na China que estão trabalhando em condições de escravidão. Como podemos ser tão cegos em nos perguntar o que os computadores podem fazer se não nos perguntamos de onde eles se originam?

TRANSCRIÇÃO E TRADUÇÃO LIA RANGEL


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